quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Ilusionismo



As ilusões são talvez tão inumeráveis como as relações dos homens entre si, ou dos homens com as coisas. E quando a ilusão desaparece, quer dizer, quando nós vemos o ser ou o facto tal como ele existe fora de nós, experimentamos um sentimento bizarro, complicado em metade pelas saudades do «fantasma» desaparecido, em metade pela surpresa agradável ante o novo, ante os factos reais. E a reposição da clareza e da verdade, muitas vezes, só sucede depois de desnudado o véu bordado de irrealidades que nos impossibilitava de ver com clareza. 

Se existe um fenómeno evidente, trivial, sempre idêntico e de tal natureza que a respeito dele é impossível estarmos enganados, é o amor maternal. É tão impossível imaginar uma mãe destituída de amor maternal como a luz sem calor, como um sol frio, que não seja no sentido da antítese poética.

Ainda há pouco fui comprar um jornal - eu que faz tanto tempo não comprava jornais, apanhava-os ali, acolá, espalhados pelas mesas dos cafés e dessa forma me abeirava das notícias -, sentei-me num banco de jardim sentindo na face a brisa suave da manhã e deleitei os olhos a observar a doçura com que uma mãe brincava com os seus filhos: os beijos e as ternuras que lhes dava, o brilho que se escapulia dos seus olhos e a incondicionalidade daquele amor ali à minha frente. À nossa volta doidivanavam pássaros e as corolas das flores pareciam cálices que exalavam explosões de odores e cores e tudo aquilo me pareceu fazer sentido como se fora um «ensemble» musical reunindo os ingredientes da beleza nas proporções certas.

Recordei que, em tempos, conheci alguém que, na minha licenciosa fantasia, enchia a atmosfera que me circundava de ideais, cujos olhos espalhavam o anseio da grandeza, da beleza, da pureza e da glória, e de tudo o que me fazia acreditar na imortalidade desse amor. Mas essa pessoa não era quem eu julgava ser. Era uma vez mais um fruto das partidas de elfos das minhas perenes ilusões, algo que eu fantasiara, ou desejara que fosse real. 

Hoje dia primaveril lindíssimo, cobertos os pensamentos acerca dela com os mantos da certeza, da realidade, e da consciência aguda da verdade, sinto-me mais conforme comigo mesmo e guardo-me para o dia em que apareça vinda dos meus turvados sonhos, envolta em tules odoríferos, a princesa que se assemelhe em tudo um pouco à minha ilusão; e, por essas alturas, o que ainda sobrar de mim é seu.

O tempo e o amor marcaram-me com as suas garras e ensinaram-me cruelmente o que cada minuto e cada beijo nos roubam em juventude e em frescura. E estou tão certo, como esta manhã soalheira, em que o ar treme ao tocar na água do lago, de que algures, num cantinho escondido, por entre os áureos véus das nuvens, num país distante, numa terra sagrada, aqui perto de mim, ou nalgum lugar naufragado nas brumas do meu desejo, dormita a musa que se assemelha com verdade à felicidade engendrada pela minha ilusão.

Estas linhas escritas no Barreiro, no conforto da minha sala forrada de silêncios, são uma forma de me refugiar na tarde que ai vem; e procurar trazer à tona algumas palavras, sem outro fito que não seja o de manifestar a insurreição do meu olhar perante estas coisas que, por muito que se afastem, regressam sempre ao entretecido da minha escrita, que é um pouco o cinzel moldado à medida da mão com que vou paulatinamente esculpindo a minha vida. *


*Texto escrito em 2007




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