quinta-feira, 22 de junho de 2017

Frio em 2004



Estou com frio, tremo de frio, mantenho-me apagado, as emoções enregeladas e só possuo um pequeno candeeiro infantil, com um abat-jour de pano-cru, azuláceo, que esvaece uma luzinha pálida que me dá um pouco de calor de lâmpada. Ele está aceso, eu não. Ele emite uma luz fraca, mas constante, sem arrependimentos; eu já anoiteci, e, há muito, deitei o meu corpo branco ao comprido sobre as bocas de respiração do metropolitano, com a cabeça encostada ao corpo negrito das crianças que se perderam dos sonhos, sentindo, nessa osmose, o verdadeiro sentido do que é anoitecer por dentro...

Vou com os desistentes, todos de mãos dadas, cantando hinos de saudade e abandono. Fiz as malas e coloquei lá dentro nada; irrevogavelmente, quedo-me nos caprichos da correnteza e deixo que sejam os acontecimentos a surpreender-me: não evito as folhas cárneas que se soltam em silêncio das árvores e planam em rodopio até repousar no chão; não acolho, nem repreendo, a vontade do vento, que é inconstante e sopra conforme lhe apetece, sem lógicas ou direções pré-definidas; não me sinto, sequer, destinatário do apito lúgubre da sirene dos bombeiros que lembra que o dia chegou ao meio;

Eu não sou um dos anunciados nem nunca me faço anunciar. Pura e simplesmente, apareço e desapareço, como uma lua desnudada de feitiços que, por vezes, se cobre, com farrapos velhos de nuvens que sobraram do repasto dos banquetes do céu. Mastigo, com dificuldade, estes pensamentos expatriados da Ópera Bufa que é a vida, aquela única que conheço e me circunda como um círculo cabalístico...

Barreiro - 2004

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