sexta-feira, 22 de março de 2013

Finar do dia nos muros exteriores de uma prisão


Há coisas que inesperadamente acontecem e nos conciliam com a vida nos maus dias, outras vezes nem por isso. É tudo um pouco assim: um pedaço de sorte, de acaso. Os finais de tarde em que os raios solares se mantêm com tal intensidade que a noite não se adivinha. O calor acumulado que se conserva na pele doirada. Os olhos que têm dificuldade em se manter abertos perante a intensidade da luminescência. O pôr-do-sol fulgurante que enche de tons rosáceos e laranja o horizonte. Os odores a primavera que invadem as ruas; o odor das plantas que denuncia a chuva recente. Os dias assim são redentores de algo menos bom que tenha decidido ocupar a nossa alma; e têm essa mágica divina de conseguir recompor os níveis da felicidade que carecemos, de um modo gracioso, harmónico, irrevogável.

As estações do ano são a longa metáfora dos estados de alma. Daí se poder dizer: aquele homem está outonal; aquele, mais adiante, parece primaveril; aquela rapariga é um sol! É nestas alturas que se discute com vigor a aplicação correta dos verbos Ser ou Estar, tomando como premissa que os estados mais votados à cronicidade possuem requisitos de «Ser», enquanto os estados passageiros, sazonais, mais dependentes dos ventos do humor, são melhores descritos pelo verbo «Estar».

A semântica da vida, creio, balança-se um pouco no fio condutor das nossas venturas e desventuras; e em todas as horas, em todos os momentos, fazemos os possíveis para que uma infelicidade seja anulada por uma felicidade; que as doses desta última estejam sempre em vantagem, não fora esse o desiderato essencial, o leit motiv que nos faz calcorrear as páginas deste mundo.

Vivemos de compensações - esta é a minha verdade. Não vivemos de eternidades, coisas adquiridas, imutáveis, mas antes num balancear constante, como uma nau navegando no mar aberto, compensando um movimento oscilatório para a esquerda, com um movimento contrário para a direita, tentando manter um rumo estável, que seja o garante da possível felicidade.

Viver é um pouco esta ginástica de cintura, que exige dispêndio de energias, cansa, e, por vezes dá vontade de desistir, apetecendo deixar-nos ir ao sabor da corrente, como a folha da árvore que segue inerte no curso de um regato. É preciso, quantas vezes, coragem para aguentarmos a vida e mantermos os repositórios de energia aptos a serem utilizados nos momentos de maior carência.

E é curioso falarmos com algum à vontade do conhecimento que temos dos outros quando, muitas vezes, nem a nós próprios nos conhecemos. Mas até essa postura é inescrutável em nós. Julgamos, apressadamente, que conhecemos as pessoas com quem interagimos no dia-a-dia, esquecendo que só se conhece de modo razoável alguém quando convivemos com essa pessoa em situações díspares, com relevo para as situações limite. São essas, porventura, as alturas em que a subjetividade se faz mais notar. É nesses momentos que a «natureza verdade», que vive adormecida nas caves esconsas da nossa alma, vem à tona com todo o vigor.

Mas há pessoas que nunca nos dececionam, pois resultam inertes nas nossas emoções as descobertas negativas que por vezes fazemos delas. Esquecemo-las depressa demais; outras, talvez por depositarmos nelas uma maior expetativa, ou porque nos merecem maior importância e admiração, perante atitudes diametralmente contrárias ao figurino que delas concebemos, reagimos adoecendo espiritualmente.

Deste modo, é possível concebermos que um conjunto de atitudes negativas, tidas por alguém que nos era muito próximo, possa fazer anoitecer de repente o nosso coração, como se alguém tivesse desenroscado a lâmpada que alumiava a confiança natural que nutríamos por essa criatura, que partilhava o nosso espaço, as nossas preocupações, sorvia o nosso ar.

Não vale citar nomes. É esse o propósito. Mas podíamos inventá-los, mais não fosse para colorir a ideia. Falamos do Dário, do Elias, ou, porque não, do Ildefonso ou da Hermengarda, todos eles epítetos saídos do correr de uma pena que escrevinhou um conto repleto de parágrafos inúteis e impossíveis, com personagens que usam chapéu de til, as mãos nos bolsos, as golas da camisa bordadas com pontos e vírgulas e calçados com sapatos feitos de verbos macios. Mas vamos, por ora, ignorar que essas pessoas têm uma identidade, que existem no tecido social, que respiram o nosso ar, que parasitam na nossa dor. Delas, apenas guardamos o sentir íntimo duma mágoa que é totalmente nossa.

(escrito algures num tempo e num espaço que a memória já não recorda)

quinta-feira, 21 de março de 2013

A Primavera em flor - Barreiro - 2005

Quando Vier a Primavera

Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
... E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.

Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)