sexta-feira, 21 de maio de 2021

A inveja - um sentimento trivial?

 

Se há sentimento mais desajeitado, infeliz, irritantemente inútil e absolutamente a dar com nada, só posso estar mesmo a referir-me à inveja. E diferentemente do ciúme ou da cobiça, que lhe são parentes próximos, não se relaciona com algum objeto externo, não corresponde a nenhum desejo concreto e nomeável, ou seja, não se quer forçosamente ter ou ser o que alguém é ou tem. Apenas se sente raiva e zanga pela existência de outros designados - os escolhidos a dedo pela felicidade de ser ou ter: sucesso, beleza, inteligência, riqueza, cultura, capacidade de sedução, charme... e se considera em alta voz que essas mais-valias têm necessariamente subjacentes situações de demérito, ocasos da sorte, injustiças profundas, distrações de Deus...

E ainda que muitas vezes os possuídos por tais sentires reconheçam (para si mesmos – deep inside) o mérito e a justeza na obtenção das qualidades ou pertenças de alguém, não conseguem evitar deixar-se inundar pela estreiteza deste sentimento tão trivial e tornam-se cromos indisfarçáveis.

Este sentimento é tão infeliz - muito infeliz mesmo - que não tem qualquer gratificação: alimenta-se a si mesmo em circuito fechado e é feito de ressentimentos que moem e esmagam, que azedam a vida e as relações, o que torna tudo o que se tem sempre pouco, sempre menor, sempre desvalorizado. E é sobretudo um sentimento inútil, pois apesar de todos os argumentos de fundo que se possam mobilizar acerca da “sorte” de uns e do “azar” de outros, não se consegue mobilizar forças, formas expeditas de ação no sentido de eliminar ou fazer desaparecer os “seres” que causam tal desconforto, já que a sua liquidação física, no mínimo, seria um ato de loucura ou de vingança. Acho, entretanto, que mesmo que isso fosse possível, o invejoso precisaria sempre de um “ódio de estimação" e a perda do objeto contra o qual direciona a sua inveja seria rapidamente substituído por outro.

O mais ridículo da inveja é que ela é óbvia e transparente. Apanha-se mais depressa um invejoso do que um mentiroso (não caio no exagero de fazer a comparação com um coxo, pois acho que está ela por ela). A inveja é irreprimível e percebe-se à légua quando alguém destila este fel.
Infelizmente é com este sentimento, de uma vulgaridade quase absurda, com que lidamos no dia-a-dia nas nossas atribulações profissionais, nas relações do quotidiano, e temos de estar preparados para ser a tal “muralha de aço” que não se deixa abater ou azedar com esta água ácida com que muitas vezes nos querem batizar.

Julgo eu, porventura com certeza, que não serei o único que já provou o travo destas mentes acéfalas que serpenteiam sibilinas em redor das horas dos nossos dias. Já não faço nenhum esforço - e consigo ! - para não ser como eles. Há muito que me quedei - esta espécie de franqueza sem cueiros - na admiração pelos mais dotados que eu, em simultâneo com um quase sentimento de desprezo que nutro pela mediocridade subjacente à inveja e aos que a adotaram como praxis do quotidiano.

Parece, pois, que estamos todos condenados a viver com esta estirpe, árida e ignóbil, de gente que ainda não aprendeu a canalizar a imensa energia que despende invejando, ao invés de melhorar a sua auto-estima na realização de algo que lhe traga a gratificação capaz de fazer quebrar o ciclo infernal do ver a felicidade através dos olhos dos outros. Haverá, porventura, algo mais triste do que isso? Quase não consigo imaginar!


domingo, 16 de maio de 2021

Em tua memória, Paula C.


Hoje, quinze anos volvidos após a sua morte, recordo-me da Paula C., uma amiga de infância que escolheu abreviar a vida, porque ela há muito lhe parecia um fardo insuportável. Se fechar os olhos, consigo vê-la no pátio do Liceu de Almada, nos finais anos 70, principio dos anos 80: o cabelo cortado à Malvina, aquela da novela «O Casarão», as mãos sempre enfiadas nos bolsos estreitos de umas Levis ruças, uma camisa justa com folhos nos punhos e o eterno cigarro aperrado no canto dos lábios.

Uma situação tremenda: um ser que, muitos anos antes de morrer – de facto suicidou-se – há muito decidira alhear-se da própria vida e começara a agir como se nada mais tivesse realmente importância. Vivia numa passividade extrema perante tudo e tendia para os excessos, sem cuidar de refletir nas consequências. Essas, pareciam-lhe indiferentes, caretas, risíveis até. Chegou a um estado em que cessou de se projetar no futuro e apenas o presente contava. A sua ligação à existência, parecia-lhe tempo inútil, tempo a mais. A vida era para ser vivida à velocidade de um foguete. E as frustrações da vida, com as quais ela nunca conseguiu lidar, sublimava-as sempre com excessos, compensações desnorteadas, inconsequentes, eternas fontes de sofrimento posterior.

Ainda hoje tenho uma certa dificuldade em incutir no pensamento, a certeza de que a Paula se precipitou para a morte, atirando-se de um oitavo andar e nunca mais a vou ver. Nós, os amigos, nem tivemos tempo para nos despedirmos dela, tal a pressa que ela teve em se despedir da vida.
Que tão fortes motivos pode ter um ser que renuncia propositadamente à vida, numa idade ainda relativamente jovem, antes de chegada a inevitável hora? É um mistério total que encerra razões que a minha razão desconhece.
 
Não lhe conhecia doenças crónicas, mortais, ou enfermidades que justificassem tal atitude. Apenas uma angustia profunda e uma inadaptação constante aos ritos sociais ditos "normais", faziam-na viver num drama interior que constantemente a sobressaltava. Foi doença mental, disseram os entendidos nestes assuntos. Eu digo que ela morreu de tristeza.

Muitas vezes encontrei-a, quer durante os tempos do Liceu, quer mais tarde na Universidade, afundada em desesperos (fomos colegas desde o liceu até à licenciatura). Nem o seu casamento recente, a atual estabilidade laboral (era chefe de divisão num Ministério - quadro superior da função pública - e gozava de alguma folga económica), pelos vistos, lhe trouxeram paz ao seu conturbado espírito.

A braços com os meus próprios dramas e problemas pessoais, hoje assumo que a ameaça do ódio à vida, bem como a ancilose da capacidade de nos amarmos, são conjuras que se podem urdir em qualquer momento e virar-se contra nós. E para além da obscuridade de histórias fragmentadas que me alcançaram, sobre os motivos que a levaram a tomar essa irrevogável atitude, ainda me custa aceitá-las como razões suficientes.

Que lhe diria eu se tivesse podido? Eu que também conheço os silêncios do vazio e a eterna espera da luz? Que poderia eu dizer-lhe, caso fosse a tempo de lhe segurar um braço? Que poderia eu dizer-lhe sem a magoar, sem lhe dar a impressão que não a queria compreender? Sem os ares de quem quer pregar a moral da verdade e é o arauto da felicidade? Dir-lhe-ia, talvez, para tentar manter a esperança e descortinar novos rumos para a felicidade, pois eles efetivamente existem. Mas a obstinação doentia dos suicidas, cedo, ou tarde, acaba por prevalecer. O mal é a fixação apoderar-se deles. A ideação toldar-lhes a mente. Depois só há uma questão: o tempo e o modo.

O desaparecimento da Paula, sempre que o recordo, transformou por completo a minha consciência acerca da morte. Revelou-me tudo o que havia de falso na relação com a minha própria existência e com a minha própria morte. Mudei definitivamente de ideias no que diz respeito a considerar que a morte não tem nada a ver com a vida, que não nos diz nada, que não existe ligação possível entre uma e outra, a menos que nos iludamos. Conseguiu libertar-me dessa absurda convicção de que a morte não tinha nada a ver com a vida, que não representava nada para mim. Pela primeira vez, senti com extrema agudeza, quão ténue, frágil e efémero é o sopro de vida, que toca cada um de nós em cada dia que passa.

RIP, Paula C., hoje que passaram quinze anos sobre o dia da tua morte, relembro o fim que tu própria escolheste para ti: um salto em forma de anjo, às primeiras luzenças da manhã, da varanda do oitavo andar onde moravas, na direção da calçada. És, desde há algum tempo, mais uma estrela no céu.


sexta-feira, 14 de maio de 2021

Manuel Palito



Manuel Palito, a cumprir pena de 25 anos de prisão por duplo homicídio, faleceu. É sempre de lamentar a perda de uma vida humana, mas, neste caso, consigo não sentir qualquer tipo de compaixão por este sub-humano que tirou a vida a duas mulheres e tentou matar outras tantas. Na verdade, sou a favor da pena de prisão perpétua, em casos especialíssimos, em que existem vários crimes de sangue, cometidos com perversidade acentuada.
 
Em Portugal, o limite instituído para pena efetiva de prisão é de 25 anos. Muita gente não sabe, mas na maioria dos países europeus existe a pena de prisão perpétua e nem por isso os deixamos de considerar como Estados onde existe democracia, civilidade, compaixão e legislação tecnicamente adequada.

Em 1884, Portugal aboliu definitivamente a prisão perpétua. Ainda hoje, no seu Artigo 30º, referente aos limites das penas e às medidas de segurança, a Constituição da República Portuguesa determina que "não pode haver penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com caráter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida", fazendo de Portugal um dos 13 países do mundo onde a Constituição proíbe especificamente esta punição.
 
Por toda a Europa, contudo, a aplicação da prisão perpétua varia nos mais diversos moldes. Desde uma pena revista, passando por uma pena sem previsão de liberdade condicional até à prisão perpétua irredutível, o território europeu reúne países com posições diferentes. No entanto, a maioria dos países tem um regime diferente do português. Quase todos permitem penas de prisão perpétua, mas incluem uma adenda para que os condenados possam sair em liberdade condicional depois de terem cumprido um determinado número de anos de prisão efetiva.

Quanto às penas sem revisão, são apenas 7 os países que adotam esta variável de prisão perpétua cuja sentença não é reconsiderada de forma rotineira. São eles a Ucrânia, Eslováquia, Países Baixos, Malta, Lituânia, Hungria e Bulgária.
 
A vida, e depois dela a liberdade, para não falar na saúde, estão no topo dos valores que reputamos fundamentais pela sua especial preciosidade. Sem alinhar em "Populismos Venturianos", há muito tempo - desde os bancos da faculdade - que defendo a prisão perpétua para certas categorias de crimes com especial incurabilidade e censura. Quem pratica tais atos não deve, no mínimo, ter o direito de usufruir a liberdade que todos conhecemos, mas deve terminar os seus dias encarcerado. Nestes casos extremamente restritos, o preço a pagar à sociedade deve sobrepor-se a uma eventual ressocialização do criminoso.

Delimitar quais os crimes, com que características tipificadas, capazes de preencher a moldura penal da prisão perpétua, seria uma tarefa do legislador, após um amplo consenso da sociedade.
Uma Justiça ineficaz, branda em demasia com os criminosos, que oferece mais garantias aos delinquentes do que às vítimas; um processo penal que permite medidas dilatórias e expedientes, capazes de levar os crimes até à sua prescrição; uma Justiça para ricos e outra para pobres; um sentimento omnipresente de impunidade dos criminosos, em especial dos mais poderosos e ricos, é tudo o que a nossa sociedade não deseja e falta uma voz para lhe dar a devida expressão. Tem de haver coragem política para dar corpo a tais medidas que, estou certo, correspondem ao sentimento da maioria dos portugueses.

Ainda na Faculdade, escutei um professor de Direito Penal, uma criatura bem conhecida nas televisões, cujo nome não vou divulgar, expressar com alegria, os olhos quase marejados de lágrimas, que nós possuímos a legislação penal e processual penal mais evoluída da Europa. Consigo dar-lhe razão no que respeita ao desconcerto sem conserto que é o imbróglio entontecido de expedientes legais da nossa Justiça, com malhas demasiado largas, por onde sempre se escapam os figurões do costume.