quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Levar o leite à cama



Nos meus tempos de juventude a maioria de nós o que mais desejava era ser independente. Sonhávamo-nos libertários, encontrar fonte de sustento, arrendar um espaço, uma roulotte, com amigos ou com a namorada, sermos donos do nosso nariz; e, na medida do possível, vivermos de acordo com as nossas regras e valores. Eu, por força de circunstâncias várias, tornei-me autónomo num estádio muito precoce da vida. Antes dos 18 anos de idade já morava sozinho, trabalhava durante o dia, estudava à noite e ganhava para o meu dia a dia. Passei muitas dificuldades, sofrimentos, privações, momentos surrealistas na Lisboa de há mais de 40 anos, mas tudo isso depois de depurado no repositório das memórias, revelou-se um ganho de maturidade e capacidade de resiliência. Se a vida tivesse sido mais fácil, porventura não daria importância a valores que mais tarde vim a considerar essenciais. Refiro-me ao gosto pela autonomia, espirito de sacrifício e capacidade criativa perante circunstâncias adversas.

Algumas pessoas das gerações que vieram depois de mim têm vindo a perder esse amor pela independência, aquele espírito pós hippie que nos forrava a mente e que fazia com que desejássemos ardentemente viver longe da tutela paterna, livres como os pássaros, sem escutarmos constantemente alguém a ditar-nos a forma como tínhamos de viver. Na minha juventude, muitos perderam-se pelo caminho, fosse porque não tivessem horizontes, ambições, planos e força suficiente para levar a vida por diante ou porque circunstâncias demasiado adversas tenham-se revelado obstáculos intransponíveis; outros, pelo contrário, sobreviveram e construíram uma vida com alguma solidez. Os que escolheram o rumo da dependência das drogas, muito usual no final dos anos 70 e durante os anos 80, na sua maioria, faleceram precocemente ou levam uma vida atual lastimável.

Na altura, se alguém com o dom da adivinhação me dissesse que no ano de 2022 existiriam muitas pessoas com 40 anos de idade ainda a morar com os pais, eu provavelmente não iria acreditar. As circunstâncias atuais, pelos motivos que todos sabemos, são péssimas, mas nada que se compare com o inicio dos anos 80, a Troika em Portugal pela primeira vez, o país ainda fora da então CEE, transitando de uma nação quase rural para o universo da Europa desenvolvida, muito focada nos serviços, no comércio e na indústria. O desemprego nesse tempo era endémico e havia muitas pessoas a passar literalmente fome. Os da minha geração recordam-se seguramente, nos anos 80, em Lisboa, ser comum vermos pessoas a comer restos retirados dos caixotes do lixo. Mas - e se calhar até nos faz bem psicologicamente, porque nos defende da lembrança traumática - a nossa memória coletiva é curta e o rodar do tempo faz-nos concentrar em realidades temporalmente mais próximas; e muitos não compreendem, ou ainda não perceberam, que viver é sobretudo competir.

Vivemos num país de subsídio dependentes. Muitos esperam que o Estado Social seja uma espécie de mãe eterna que provê todas as nossas necessidades, como a ave que leva a comida ao ninho. A vontade de lutar, trabalhar, competir para ocupar um lugar razoável na pirâmide social, não é apanágio de todos. São poucos os que se sujeitam a laborar em trabalhos indiferenciados, mesmo sabendo que isso pode ser um trajeto necessário, uma via sacra obrigatória para atingir objetivos maiores.

A imagem do "menino" com 40 anos de idade, cuja mãe ainda lhe leva o leite à cama de manhã, permanece gravada na minha mente. Não tenho nada contra uma mãe levar o pequeno-almoço ao filho, seja qual for a idade que ele tenha. Ainda há poucos anos atrás, sempre que eu passava o fim-de-semana com a minha mãe, estando ela ainda em sua casa, era frequente levar-me um copo de leite com café e uma torrada à cama, quando eu preguiçava até tarde. Sentia nessa sua atitude um gesto de carinho e proteção enorme cuja memória me vai acompanhar até ao final dos meus dias. Para uma mãe, nós somos sempre pequeninos. Sei que ela nunca mais me vai levar o pequeno-almoço à cabeceira da cama, mas foi reconfortante ter tido esse afeto até há poucos anos atrás.

O "menino" com 40 anos que a mãe ainda lhe leva o leite à cama, pode muito bem ser a metáfora perfeita para alguns gentios que se recusam a deixar o lar paterno, alegando que as casas estão muito caras, não há empregos e a vida está complicada. Afinal, para quê deixar o conforto dos pais se têm um ninho acolhedor pleno de facilitismos onde podem resguardar-se das agruras da vida? O problema não está no afeto tremendo que é a mãe levar o pequeno-almoço à cama. O busílis da questão está na dependência total e na incapacidade de lutar pela vida que a excessiva proteção paterna ou materna podem causar. Imagino o meu gato, que nunca caçou - apesar de ser um felino e isso fazer parte da sua genética - nem teve de se preocupar em encontrar a próxima refeição, ser largado na rua entregue a si mesmo, sem qualquer tipo de treino de sobrevivência. O mais certo seria durar uns escassos dias até ser morto por um cão ou atropelado.

Na minha senda musical, toco num grupo com jovens muito empreendedores, que sonham, têm planos de vida, ambições e sobretudo disciplina e foco. É graças a isso que conseguimos aprender e ensaiar canções com bons resultados e cada vez maior rapidez. O sucesso advêm do empenho, perseverança e treino de repetição. Nenhum deles tem insucesso escolar, falta de motivação, preguiça e todos sabem muito bem o que querem para as suas vidas e aquilo que é preciso fazer para atingir os objetivos a que se propõem. Sinto-me honrado por conviver semanalmente com a Beatriz, o Simão e o Adelino, todos com 16 anos de idade, que me aceitam como o baixista da banda, porque partilhamos uma forte empatia que é o gosto pela música. Os meus meninos, como eu lhes chamo, são muito bem dispostos e virtuosos no que à música respeita e não se enquadram no estereótipo do "menino" cuja mãe ainda lhe leva todos os dias o leite à cama. São meninos assim que o futuro precisa.

2022





segunda-feira, 6 de novembro de 2023

FIAT 850



Quando ultrapassamos as seis décadas de vida, começamos inevitavelmente a ter um repositório enorme de memórias do tempo passado.

Nos idos anos 60, uma época que compulsivamente me aflora a mente, talvez por nela ter vivido os tempos mais felizes da minha vida, somente as famílias da classe alta e média alta possuíam automóvel. O carro era um luxo a que muito poucas pessoas tinham acesso, a não ser que fosse uma viatura destinada ao trabalho.

Geralmente os automóveis duravam muitos anos no seio das famílias e não existia este moderno costume de mudar de veículo em cada x anos; tão pouco havia a facilidade de crédito que, nas suas diversas formas, está à disposição das pessoas nos nossos dias. Os Bancos privados eram escassos, pertenciam a famílias muito abastadas, aparentadas com o regime fascista e as taxas de juro cobradas eram altíssimas. Somente se concedia crédito a quem desse garantias reais de poder pagar os empréstimos nas condições requeridas pelos Bancos, geralmente proprietários ou industriais.

A mobilidade social era muito baixa e a linhagem do nascimento, regra geral, definia a condição futura das pessoas. Quem nascia pobre, pobre também seria a sua prole. Para o liceu, iam os filhos das classes alta e média alta, com vista a depois frequentarem a universidade, enquanto os cursos comerciais e industriais destinavam-se aos filhos das classes economicamente menos favorecidas. Ser "doutor" era um luxo de ricos, reservado aos filhos de pais que podiam custear 4 ou 5 anos de Universidade. Os jovens oriundos das classes mais desfavorecidas frequentavam preferencialmente um ensino que rapidamente lhes desse acesso a uma profissão e ao mercado de trabalho.

Recordo-me que eu tinha 7 anos de idade quando o meu pai comprou o seu primeiro automóvel. Era um Fiat 850, modelo de 1968, branco frigorífico, com os estofos vermelhos e o motor traseiro. Aquecia muito em filas de trânsito ou em subidas que exigissem esforço do motor e o espaço interior era bastante reduzido. No dia em que o meu pai o comprou, a família (os meus irmãos mais novos ainda não eram nascidos) decidiu ir ao Cristo Rei para estrear a novíssima máquina italiana, vinda de Turim para o agente da Fiat em Almada. Nunca me esqueci da matrícula - EF-42-31, pois fixar matrículas era um dos grandes passatempos da minha infância.

O meu pai, no início, era bastante maçarico a conduzir e enervava-se com facilidade, mas ninguém, para além da minha mãe, podia rir-se das suas constantes aselhices. Há mais de 6 anos que ele já não está entre nós, e, ainda que consiga ler os meus escritos, com toda a certeza não vai levar a mal que eu conte este episódio por ele protagonizado na estreia do 850.

Todos já estavam a bordo, o meu pai colocou o motor em funcionamento, engrenou a marcha atrás, não sem antes arranhar várias vezes a mudança da caixa de velocidades, mas o carro parecia não querer sair do mesmo sítio. Ele acelerava e nada. Entretanto começava a cheirar a queimado e o nervosismo instalava-se entre todos os membros da família. O meu pai bradava aos céus que a porcaria do carro novo já estava a dar problemas logo no primeiro dia.

Providencialmente, o dr. Silvestre, advogado com escritório frente à nossa casa, junto ao Externato Frei Luís de Sousa, amigo do meu pai e dono de um fabuloso Mercedes negro, passava na rua naquele mesmo instante. Foi ele quem disse para o meu pai destravar o carro, caso contrário nunca iriamos sair dali.

Lembro-me que a manobra de marcha à ré teve a assistência de grande parte dos populares que por ali passavam. Ditavam ordens para o meu pai virar o volante para a direita e depois para a esquerda. No percurso até ao icónico monumento da cidade de Almada, o carro foi abaixo inúmeras vezes, mas chegámos a casa sãos e salvos. Por ordem expressa da minha mãe, o pai teria de praticar sozinho durante mais algum tempo até que a família pudesse viajar em segurança. E assim foi. Ele, entretanto, tornou-se um excelente condutor e levou-nos muitas vezes pelas estradas da Europa e do Norte de África. Em 1971, o 850 foi trocado por um Ford Cortina, um sedan com três volumes que durou muitos anos na sua posse.

Em Almada, as famílias do nosso convívio e as pessoas em geral, eram identificadas pelo automóvel que possuíam. Os Inácio tinham um Taunus 12 M, com uma cor azul peculiar, quase verde; os Lamelas um Opel 1700 Rekord cinzento mate; os Valverde um Austin 1300 verde azeitona; os Rebelo um Ford Cortina 1300 branco; os Santos um Opel Kadett azul claro e assim sucessivamente. Existiam muito menos automóveis e os veículos eternizavam-se na posse dos seus proprietários. Quando alguém se queria referir a uma pessoa que o interlocutor não estava a reconhecer dizia-lhe: - É aquele que tem um Taunus 20M azul escuro!

Os tempos felizmente mudaram para uma maior equidade social, a disparidade entre pobres e ricos reduziu-se bastante e aqueles que se queixam das atuais condições de vida - felizmente não era o caso da minha família - não imaginam o que era ser pobre há mais de 50 anos atrás. Ninguém consegue ser feliz sem ter as suas essencialidades garantidas, bem como a saúde preservada, mas a abastança não é necessariamente um passaporte para a felicidade.

Creio veementemente que é possível ser-se feliz vivendo com os bens materiais essenciais, desde que tenhamos família, harmonia, amor, ética e doses substanciais de alimento espiritual. Se me fosse possível escolher uma viagem na máquina do tempo, não me importava regressar àquelas manhãs chuvosas de outono em que o meu pai me levava no Fiat 850 até à Escola Conde Ferreira. Sentia-me o menino mais importante do mundo quando chegava ao portão da escola.