terça-feira, 23 de outubro de 2018

O vendedor de "banha da cobra"


Das muitas profissões que desapareceram, motivadas pelo abre olhos que os novos tempos trouxeram à população em geral, a que mais saudades me deixa é a do vendedor da "banha da cobra".

O vendedor da "banha da cobra" não é uma personagem de histórias de ficção, como muitos jovens da atualidade pensam. O vendedor de banha da cobra existiu efetivamente e arrecadava imenso dinheiro pelas terras por onde passava.

Todos sabemos que a banha da cobra não serve para nada, mas a convicção que esse vendedor transmitia, através duma oratória bem estudada e estruturada, convencia muita gente sobre as capacidades infinitas dos milagrosos medicamentos que apregoava.

Sentado na cadeira do tempo, recuo meio século e dou por mim, criança, fascinado no meio de uma multidão, composta sobretudo por donas de casa e reformados, junto ao velho mercado de Almada.

Visualizo, junto ao mercado da vila de Almada (Almada só foi elevada à categoria de cidade em 1973), um homem bem parecido, trajando um fato azul escuro com riscas brancas e uma gravata com cornucópias douradas, grossos anéis de ouro enfiados em vários dedos e doses excessivas de Bill Cream no cabelo. Está em cima de uma cadeira (por vezes, sobre o estrado de uma carrinha) que lhe serve de púlpito improvisado, para melhor despejar a sua oratória. Tem um microfone (nos tempos mais arredados usavam um megafone, o que tornava a cena ainda mais feliniana) tapado por um lenço (artefato importante, pois aparava os perdigotos que iam largando, à medida que se empolgavam no discurso) preso por uma armação que lhe deixa as mãos libertas para melhor gesticular e mostrar os produtos que apregoa.

Alega, com veemência, que o conteúdo das saquetas que tem dentro das várias malas abertas que o ladeiam, tudo curam: impigens, mau-olhado, torcicolos, urticária, febre dos fenos, dentes, nervos, escleroses, artroses, entorses, diarreias, sarampo, escarlatina, depressões, espinhela caída, terçolhos, verrugas, cravos, desmanchos, problemas renais e/ou figadais, entre outros.

A certa altura, num passe de mágica, surgindo do nada, exibe numa das mãos um grande boião de vidro com umas grandes pedras esverdeadas e negras dentro; e, de seguida, outro boião, um pouco maior do que o anterior, com aquilo que parece ser uma pequena cobra esverdeada conservada em formol - como aqueles animais que observámos nas aulas de Ciências da Natureza.

A populaça está extasiada e escutam-se gritos de sentido horror e espanto. O vendedor está ao rubro, pois sente que finalmente tem o povo nas mãos. A manipulação começou a surtir o efeito desejado e o clímax foi atingido.

"Minhas senhoras, meus senhores! Estas pedras foram retiradas do ventre de uma rapariga com 20 aninhos. Ela queixava-se com fortes dores na barriga e nenhum médico lhe conseguia valer. Os pais dela gastaram toda a fortuna que tinham e correram tudo o que era hospitais! Após tomar estas saquetas milagrosas durante uma semana, começou a expelir estas pedras. Depois, como se não bastasse, expeliu finalmente esta cobra, que vocemecês estão a ver, que a estava a comer por dentro! E é este remédio que vos quero oferecer. Não custa nem 20, nem 15, nem 10! Custa apenas cinco escudos, e quem levar dois leva um totalmente de graça. Um para aquele senhor, outro para aquela menina... e enquanto eu vou lá à frente receber o dinheiro, a minha mulher vai lá atrás distribuir as saquetas..."

De repente toda uma multidão acena com uma nota de 20 escudos, tudo para ser gasto em saquetas ( o conteúdo era na maior das vezes farinha moída). Completamente suado, com a face rubra do desgaste e a voz rouca, resta ao vendedor da "banha da cobra" ajudar a sua esposa no espoliamento do incauto povo, disposto a levar quatro saquetas ou mais, para um tratamento mais eficaz.

Tanto quanto se sabe, nunca um vendedor de "banha da cobra" foi alguma vez acusado de lesar a saúde pública e é sabido que pagavam licenças camarárias, para uso dos espaços das feiras, como qualquer outro comerciante.

O conteúdo das saquetas, pelo que sei, era simples farinha moída que, tal como o Melhoral, não fazia nem bem nem mal. Mas o efeito placebo devia funcionar, pois escutei casos, relatados à minha mãe, de pessoas que dizem ter melhorado das suas maleitas depois de fazerem um tratamento completo.

Nunca mais vi nenhum vendedor da "banha da cobra", figura tão usual nos mercados e feiras dos anos 60. O mais parecido que conheço são os pastores das Igrejas Evangélicas que por aí pulsam, com as suas gravatas berrantes, fatos de corte datado, mas com formas muito mais subtis e sofisticadas de comunicação.

A promessa de cura de todas as enfermidades, a vida em esplendor que auguram para todos os que neles acreditem, acontece depois da multidão estar hipnotizada com o seu "dom da palavra", artes manipulatórias de pobres de espírito, cativos na orfandade da sua parca inteligência. É nesse momento de irracionalidade e êxtase, que os crentes se despojam do parco dinheiro que possuem, em troca de uma cura ou de um milagre redentor nas suas vidas.

Os vendedores da "banha da cobra", transmudados noutros personagens que se lhes assemelham, sempre hão-de existir, pois faz parte do roteiro do mundo a sempiterna capacidade manipulatória dos mais fortes sobre os fracos de espírito. E nesta coisa de enganos, a fronteira entre o licito e o não licito é ténue. Não há salvação para quem quiser ser enganado. É deixá-los ir, como dizia o outro...


domingo, 21 de outubro de 2018

O AEC Regent III





O AEC Regent III, fabricado no Reino Unido e usado no transporte público londrino, era o autocarro double deck usado pela Carris em Lisboa, desde os anos 50 até meados da década de 80 do século XX.

A sua cor verde azeitona, o matraquear inconfundível do enorme motor de 9.6 litros e o ruído típico dos travões operados por pressão de ar, tornavam-no inconfundível no trânsito lisboeta.

Ainda gaiato, recordo-me de ter por eles um verdadeiro fascínio, agora num desfiar de memórias:

O teto dos autocarros a roçar as ramadas mais baixas das árvores da Avenida da Liberdade, provocando, por vezes, a fuga de muita passarada que por lá abundava; a forma como a carroçaria chiava e adornava completamente nas curvas mais apertadas; a cabine do chofer, parecida com uma cápsula, com uma porta individual, onde o condutor se agarrava a um volante primitivo, sem direção assistida, forrado com fita isoladora verde, fazendo esforços enormes para manobrar o gigantismo do veículo; a escada traseira (nalguns modelos era na dianteira) elíptica, onde mal nos segurávamos quando o autocarro fazia uma travagem ou uma curva mais apertada (nunca esperavam que as pessoas estivessem sentadas para arrancar); os bancos de napa castanha; as luzes dianteiras, a grelha frontal e o tampão do radiador (reminiscências dos calhambeques) - o radiador era frequentemente reabastecido com água pelos motoristas, que transportavam na cabine um jerry can e um funil, ambos verde azeitona (a cor era a marca da empresa), pois os veículos aqueciam muito, especialmente no verão.

Cheguei a ver um chofer que se queimou gravemente quando estava a desenroscar o tampão do radiador.

Nessa época, sem direitos, greves ou reivindicações, os chofers levavam uma vida desgastante: conduziam veículos primitivos, desconfortáveis, lentos e pesados, sem ar condicionado, com mudanças manuais, sistemas de travagem arcaicos e suspensões duríssimas, eram obrigados a usar farda, fosse verão ou inverno e faziam muitas vezes de mecânico, já que a manutenção e as reparações simples ficavam por sua conta.

Delicioso é, hoje, recordar-me criança, numa época que dista 50 anos do mundo atual e trazer à colação algumas sinestesias que então forravam o meu imaginário. Nesses tempos a vida era bastante dura, mas a saciedade era mais facilmente atingida - as pequenas coisas tinham outro sabor, pois sabiam a grandes coisas.




terça-feira, 9 de outubro de 2018

Em memória do Amadeu Ferreira



Hoje, a propósito de nada, lembrei-me do Amadeu Ferreira, de quem fui colega na Faculdade de Direito de Lisboa e dos seus celebérrimos apontamentos baseados nas aulas do Prof. Dr. Rui Pereira (aquele que foi ministro da administração interna, esse mesmo), que eram tão bons a ponto de várias gerações de alunos terem estudado a cadeira por eles. Há casos, inclusive, de alunos que se limitaram a ler a dita sebenta e passaram na disciplina com uma nota nada vergonhosa.

Recordei o Amadeu como o melhor aluno de Direito da minha geração (no 4º ano da licenciatura já era monitor convidado) e que mais tarde se tornou advogado e professor da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Foi também um dos principais responsáveis pela promoção da língua mirandesa e traduziu várias obras importantes da literatura portuguesa para o mirandês. Era presidente da Associação de Língua e Cultura Mirandesas (ALCM), presidente da Academia de Letras de Trás-os-Montes, vice-presidente da Comissão de Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), membro do Conselho Geral do Instituto Politécnico de Bragança e, desde 2004, comendador da Ordem do Mérito da República Portuguesa.


Quis o destino que em 2015, com 64 anos de idade, um tumor cerebral, por ironia, instalado precisamente na parte corporal mais insigne deste vulto da inteligência e cultura portuguesa, lhe colhesse a vida.

Não sei o que teria sido de mim sem os apontamentos de Penal I do Amadeu que, dizem, eram um misto de aulas desgravadas do Prof. Rui Pereira, com interpretações e glosas feitas com mestria pelo insigne aluno.

Gravar as aulas plenárias dos professores ( com o consentimento dos mesmos) e depois passar o conteúdo das mesmas para o papel, era uma tarefa hercúlea, mas, com um pouco de sorte, durante um ano letivo completo, calharia uma única vez a uma parelha de alunos. Claro que todos colhiam o beneficio, pois fazia igualmente parte da tarefa fornecer cópias a todos os alunos que fizessem parte do grupo e receber, do dito grupo, as cópias das outras aulas.

Era um sistema (quase) perfeito mas ninguém podia falhar.

Mas, como em tudo na vida, há sempre um lado anedótico:

A colega X, tendo ficado encarregue de gravar e desgravar uma determinada aula - a cidade universitária é constantemente sobrevoada a baixa altitude por aviões comerciais, pois fica na trajetória de aproximação à pista principal do Aeroporto da Portela - não consegui descortinar determinadas frases e sempre que havia lapsos do texto, desenhava um avião. E foi assim que, um dia, cerca de 80 alunos que integravam um grupo de alunos-desgravadores, recebeu a fotocópia de uma aula desgravada, com frases interrompidas a meio por desenhos de aviões. Era hora de ponta, disse ela. Não sei se a desculpa humorística teve uma boa receção.