sábado, 18 de junho de 2011

O Alfarrabista

Entra-se por uma larga portada de madeira em tons verdete, cravada com rebites ferrugentos, mesclados de laranja e negro, que só abre com um veemente empurrão, que faz soar uma sineta doirada de um tinido frouxo; e por onde quer que a vista avance, divisam-se livros, montanhas deles, posterizados em estantes gigantescas, simetricamente dispostos, como velhas fragatas ancoradas no último porto, guardião de uma quietude de paz, imorredoura de silêncios. O odor carregado a acre que adeja o antro, torna-se mais intenso à medida que as narinas detectam as prateleiras mais esconsas, onde repousam os alfarrábios e as antigualhas que faz muito tempo perderam a afoiteza de se deixarem manusear. Os acordes de 'Claire de Lune' de Debussy, quase em surdina, conferem a sobriedade que o sacro lugar almeja. Por detrás de um balcão, que mais parece um féretro tisnado de negro azeviche, está o alfarrabista: a tez esquinada, a cabeça cabisbaixa, quase calva, luzindo intensamente por entre a escassa cã. Veste uma camisa de popelina esbranquiçada, que mais parece a vela de um navio; e, aperrado ao cesto da gávea do colarinho, uma gravata de nó eterno, arroxeada, acaba abruptamente, pouco abaixo da zona do umbigo. Nas suas longas mãos de esterlina, lídimas como um papiro, move-se com desenvoltura uma esferográfica comum que rabisca algo que me suscita invulgar curiosidade. O vendedor de alfarrábios, finalmente erguendo a cabeça, como um grande vaso que se retira de um poço, deixa cair uns óculos ovais embaciados, encavalitados no terminal de um nariz adunco; e, esboçando um sorriso quase glicérico, estende  um manual de ornitologia de lombada carmesim a uma jovem com ar de estudante afincada.

Os meus olhos, a principio ludibriados pela luz espúria, pousam numa estante dedicada aos temas de grave questiúncula: os intimoratos ensaios de Filosofia. Deixei para trás a 'Utopia' de Thomás Morus, o 'Elogio da Loucura' de Erasmo, o 'Organon' de Aristóteles, ou a 'A República' em três volumes de Platão, tudo obras que já lera por dever de estudante, para me debruçar nos ensaios do meu pensador preferido do século XX: Bertrand Russel. A clareza e utilidade imediata das suas ideias e, sobretudo, o incisivo poder de ortografar, de uma forma serena, sistemática e bem enquadrada, uma linha coerente de pensamento, sempre acolheram a minha dilecta atenção. Russel foi um pensador do mundo; que sempre encarou como um todo.

Sem pressas, escolhido o livro de Russel, paguei e saí para a rua com ele debaixo do braço. Lá fora esperava-me um sol flavo e um dia de esplendor; e, se por sortilégio do acaso, me perguntassem onde é que eu tinha estado o tempo todo nessa linda manhã  primaveril de Lisboa, responderia que tinha andado a explorar as margens da vida, entretido nas caves de mim, cada vez mais convencido que a vida não é para ser vivida dentro dos limites. Quem sonha a dormir sabe que, de manhã, ao acordar, tudo era uma ilusão, mas os que sonham de olhos abertos acham que o estofo do futuro será feito desses sonhos. Eu quero acreditar nisso, assim como estou convencido que o Paraíso, a existir, deve ser parecido com um alfarrábio.

Odeta


O teu nome tem por étimo a palavra Ode, aquela composição de poesia maior destinada ao canto? Não creio. A tua graça mais parece conotar-se com um género novo: A Ode menor. Se não existirem Odes menores, como, aliás, estou convicto ser verdade, arrogo-me autor deste neologismo: Odeta - com essa novíssima significação. Se te chamasses Odete, caberias no meu dicionário antroponímico, que vive, algures, obeso, em permanente estado de hibernação, refastelado em cima de livrinhos, magriços e resignados, esmagados pelo seu peso. O teu nome não consta lá. É mais uma daquelas aberrações vindas de um qualquer Conservador do Registo Civil, infestado de carepas, em estado de artrite dolorosa, virado para os francesismos tardios. Nem tens lugar no lupanar dos nomes mais feios que por lá existem: Odeberta, Odefrida, Odorica...És, sem mais mistérios, uma vogal truncada, pela mera infelicidade de um descuido ortográfico.

Odeta. É estranho ter de chamar-te assim. Apetece-me rebaptizar-te: Odete, mas não posso, não posso mesmo. Tenho de chamar as pessoas pelos seus nomes correctos. É apenas por uma questão de coerência, nada mais. Não me interpretes mal. Sabes onde eu estava da primeira vez que falei contigo? Estava junto a uma gaiola enorme, cilíndrica e esguia, que afunilava até formar uma espécie de campânula, repleta de pássaros de bico de lacre, a assistir a uma chilreada tão grande que quase tinha de gritar para me conseguires ouvir. O dia estava lindo. Um sol esplendoroso flamejava ao de leve os pêlos dos meus braços, criando em mim uma sensação de energia tão agradável, que um estremecimento percorria em constante todo o meu corpo. Era o alvor de uma estação neófita, parida nas faldas esconsas das olheiras cavas e depressivas de um Inverno venéreo: estação escura, medieva, sempre acocorada com um medo inexplicável do poetar do sol. Eu a assistir a tudo isto e tu metida em casa. Francamente, Odeta, com um dia assim!

Odeta. Eu sei que ambos comungamos do mesmo padecimento, desbotado e feio, que habita dentro de nós, como uma vontade férrea, aclimatando-se ao nosso organismo, tal como o parasita vive à custa do seu hospedeiro. É isso, Odeta. É essa empatia que nos une, o íman que nos magnetiza para o alvoroço de um conhecimento mútuo. Receio não conseguir resistir ao teu apelo, enquanto me enleio neste solilóquio, passeio de adágio, que percorre estradas bordejadas por enormidades a que chamamos árvores: formas excêntricas, nodosas, com raízes que há muito se apoderaram do asfalto, à outrance, apelidadas com nomes hoje indisponíveis. Não me admiraria se, uns metros mais adiante, encontrasse refastelado num destes bancos de pedra esculpida, um dos meus parágrafos, aqueles que há muito lhes perdi o rasto, de perna traçada, a dar, a dar, com um chapéu de til enfiado na cabeça, a cumprimentar de forma circunflexa damas imaginárias. Tudo se me assemelha possível neste jardim onde trouxe a passeio a minha fantasia.

Não imagino, sequer, um coup-de-foudre, uma atracção por ti, que não seja um galanteio confortável, já vestido de robe e embrulhado num edredão, o estritamente necessário aos propósitos que ambos comungamos como tácitos. É talvez essa frontalidade, esse sentimento em carne viva, um querer adulto, sem hiatos, que me atrai em ti. Imagino-te sem toilette, sem artefactos ditados pelos supetões imperiais da moda. Faço ideia que sejas uma mulher simples, pragmática, não derrotada pela fealdade do teu próprio nome e tocada pela interioridade. Será que me engano assim tanto, Odeta? Continuas a achar que eu tenho um conhecimento privilegiado e intuitivo da alma humana? Quando me disseste isso, por escassos momentos, imaginei-me Rasputine: uma apócrifa reencarnação daquele curandeiro e visionário russo que, no início do século XIX, conquistou grande influência sobre o Czar e a Czarina, tendo acabado assassinado pelos seus detractores, movidos pela inveja e pelo ciume. Nem sei porque pensei tudo isto, sinceramente não sei. Acho que tenho de comutar os faróis de halogéneo da clarividência, para conseguir encontrar o cancelo de saída deste jardim de deambulações. Nem mesmo quando o sol se agacha à sombra das nuvens o jardim ganha um halo verossímil. Estes sons estridentes que cruzam o ar, como o grito do tucano quando faz soar o bico comprido; esta aragem fresca que murmura no chapéu das árvores; os raios de luz que trespassam a folhagem, tudo isto incita em demasia a minha tubular imaginação.

Cruzei os pórticos de um verde solífugo, sem olhar para trás, e achei-me diante de mim. Já era o entardecer. Junto aos muros, aglomeravam-se mulheres da aldeia, estridentes, buço bucólico, navalha em riste, sentadas em pose de excursão finda. Uma em especial tinha a idade no olhar. Penso em quanto choveu sobre a minha infância desde que estas silabas tropeçam agora no lusco-fusco. Desde então, o trigo já cresceu sobre o meu rosto; e, quanto mais envelheço, mais pueril é a luz, mas essa vai comigo. Também já me sentei algumas vezes às portas do crepúsculo, mas quero dizer que o meu comércio não é o da alma. Há igrejas de sobra e ninguém nos impede de lá entrar. Não me peçam a mim, que só conheço os caminhos da sede, que mostre a direcção das nascentes. Hoje, quero apenas adormecer sobre uma profusão de girassóis, e várias já foram as negligências do meu olhar. Sabes, Odeta. Só o desejo e a imaginação impedem a perversão da alegria. Pensa nisso.

O nexo

Rio Lis - Leiria - Junho 2011
Quando ontem ao cair da noite mirei o Lis, apeteceu-me ficar ali até ser pedra, extasiado que fiquei com a luz da lua, difusa, alvejante, que estremecia  ao tocar na água. E nas horas em que um tédio assim improbo me tolhe, recordo que faz muito tempo não convido a lua para meu holofote de companhia. Por vezes são execráveis as náuseas dos diurnos, os momentos, os dias alvoraçados pela fartura do silêncio. Hoje, com a manhã, voltou o anónimo respirar do mundo e decidi-me sair deste mar morto de vida, acompanhado por um espelho argênteo que me segue com um espectro. Crente que as palavras imploram de mim uma expulsão,  há dias que me sinto um clandestino: vivo às ocultas, não consto em quaisquer registos dignos de merecimento, nem estou autorizado, pela burocracia vigente, a existir como pessoa. Privado do Direito de Ser, que não se me aplica, por não constar dos catálogos oficiais, estigmatiza-me a condição de estrangeiro. Que se lixe! Sou diferente. Sobreviverei numa garagem, num contentor; ou, já melhor acondicionado, na promiscuidade de um espaço demasiado pequeno com outras almas, tal como eu, rotuladas de 'inviáveis'. Mudar é para mim sinónimo de morrer.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Regressando...

Sempre achei que todas as feridas podem ser material de poemas. Portanto não devem ser evitadas. Por isso, penso em frágeis pétalas de magnólias sopradas pelo vento, em súbitas cataratas caindo do céu. Penso em poemas perfeitos como refúgio de almas como as nossas. Penso no desenho dos teus lábios, na tua graça de menina. Trago o teu nome na minha boca. Quero-te como a terra que anseia pela água que bebe. Só tu, de novo tu, sempre tu, a ocupares-me a cabeça, o tronco e os dedos. Eu sou também o chão que pisas, o ar que voltou. Olha para mim. Não tenhas medo. Ninguém nos vê. Somos só nós dois. O mundo ficou todo fechado lá fora. É certo que a beleza recusa-se a um qualquer enredo, mas a vontade de poetar de novo está voltando e vem cobrindo paulatinamente os meus ramos. Ramos anosos, mas sólidos, ainda capazes de arcar com a sua função primeva: encherem-se de rebentos primaveris e florirem; tão somente isso...


NB. Escrito pela madrugada, a propósito de mim, a propósito de nada, talvez somente um delírio  decorrente da insónia que me sussurrou aos ouvidos; hoje, porventura, cedo de mais.