quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Falar do futuro



Falar com alguém que está no passado em relação ao momento presente (que para essa pessoa ainda é um futuro desconhecido) – sendo que essa pessoa posso ser eu mesmo - é ter ciência daquilo que aconteceu, ou, noutra perspetiva, vai acontecer com essa pessoa, e possuir a possibilidade fantasiosa de avisar a pessoa em questão acerca das escolhas e das consequências que a esperam. E a isso chama-se futurologia.

A futurologia só é considerada ciência se nos ativermos ao sufixo do vocábulo. Se alguém possuísse a capacidade de prever o futuro com precisão, tal possibilidade provocaria uma revolução integral na forma como tomamos decisões e nas escolhas que fazemos.

Acredito piamente que a vida, como a conhecemos, seria impossível de ser concebida se em cada momento soubéssemos o que iria suceder no momento seguinte. O ato de viver com racionalidade seria insustentável e não é difícil, como situação hipotética, imaginar um cenário assim.

Mas se nos satisfizermos com a certeza de que estamos a navegar em águas de impossibilidade e precisamos de fantasiar um cenário para darmos ordem de marcha ao nosso exercício, a questão fica ultrapassada.


Não raro dizemos que adorávamos ter a juventude dos 20 anos e a experiência dos 50 anos e, inclusive, alguém escreveu que quando finalmente aprendemos alguma coisa é chegada a hora de partir deste mundo físico – há quem acredite que existe algo para além da matéria e da biologia.

Falar no futuro com alguém que está no passado em relação a nós, ou, mais compreensivelmente, falar, neste momento, com alguém que vai atingir o momento espácio-temporal em que nos encontramos agora - tendo em consideração que o presente, como medida de tempo não existe, pois o tempo é imparável “tempus fugit” e torna-se passado em frações de segundo – é o exercício que me proponho.

Se tal fosse possível, o que diria eu a mim mesmo, caso pudesse desdobrar-me em relação a dois momentos espácio-temporais? É sobre isto que hoje reflito.




terça-feira, 18 de agosto de 2015

Sobre a gratidão



Se a gratidão é pacificamente entendida como uma emoção que envolve um sentimento de dívida em relação a outra pessoa, frequentemente acompanhado por um desejo de agradecer, ou tornar recíproco um favor que nos fizeram, tanto quanto recordo, são poucas as pessoas pelas quais, na vida, senti verdadeira gratidão. No entanto, consigo nomear casos esporádicos de pessoas que, desinteressadamente, foram genuinamente boas para mim.

Ainda há bem pouco tempo, no âmbito de uma diversão, que podia ter tido consequências bem piores, cai e ofendi com gravidade o tornozelo e o gémeo da perna direita; e não fosse o pronto auxílio de duas pessoas, que acabara de conhecer nesse mesmo dia, tinha ficado no chão sem me conseguir levantar. Levaram-me praticamente ao colo até ao automóvel e prontificaram-se para me ajudar em tudo o que fosse preciso, inclusive para me transportar ao hospital.

A gratidão é esse sentimento de reconhecimento por alguém que, desinteressadamente, nos fez bem e que nos faz sentir vontade de agradecer e fazer algo de semelhante em prol de quem foi bom para nós. E, contrariamente à gratidão, a falta de gratidão transporta-nos para o sentimento de culpa, que nos gera mal-estar e é algo que queremos evitar, ou aplacar.

Neste mundo eivado de egoísmo, em que, na maioria das vezes, a prática do bem tem sempre como expetativa o reconhecimento por parte do outro, torna-se uma pérola rara encontrar alguém que pratique o bem em estado puro, isto é, sem ter alguma expetativa em vista, mais não seja a satisfação pessoal pelo ato de gratidão do outro, que, segundo as regras socialmente convencionadas, normalmente se segue. Comportamento gera expetativa, e todos sabemos isso.

Mas a gratidão também nos pode tornar reféns de outrem e levar a condicionamentos do nosso próprio comportamento. Quantas vezes não toleramos uma situação que não nos faz integralmente felizes, apenas porque o peso da ingratidão, ou o sentimento de culpa, que advirá caso tomemos certas atitudes, é mais forte do que tudo?

Não gosto de sentir a gratidão em dívida e penso que o mais correto é liquidar rapidamente esse débito, nomeadamente fazendo algo de bom em prol de quem me quis bem, e também mostrar a minha inteira disponibilidade para continuar a fazê-lo.

O mais normal é praticarmos o bem em relação aos nossos semelhantes e a reciprocidade surge, quase sempre, como algo de natural e expetável.

Ninguém que viva semanticamente, observando com um cuidado desmesurado a forma do seu umbigo, pode esperar que haja muita gente disponível para lhe querer bem. A reciprocidade, ou o comportamento sinalagmático, é pois a regra convencionada no tecido social.

Quando me perguntam se recordo alguém que queira o meu bem, pratique o bem em relação a mim, me ame incondicionalmente, sem jamais expetar uma reciprocidade ou, outrossim, fazer depender as suas atitudes do cumprimento do expetado, afirmo sem sombra de dúvidas que é a minha mãe. Ela é a minha maior amiga, a pessoa que mais me ama e, estou certo, jamais alguém gostará de mim como ela.

Se a gratidão é pacificamente entendida como uma emoção que envolve um sentimento de dívida em relação a outra pessoa, frequentemente acompanhado por um desejo de agradecer, ou tornar recíproco um favor que nos fizeram, tanto quanto recordo, são poucas as pessoas pelas quais, na vida, senti verdadeira gratidão. No entanto, consigo nomear casos esporádicos de pessoas que, desinteressadamente, foram genuinamente boas para mim.

Ainda há bem pouco tempo, no âmbito de uma diversão, que podia ter tido consequências bem piores, cai e ofendi com gravidade o tornozelo e o gémeo da perna direita; e não fosse o pronto auxílio de duas pessoas, que acabara de conhecer nesse mesmo dia, tinha ficado no chão sem me conseguir levantar. Levaram-me praticamente ao colo até ao automóvel e prontificaram-se para me ajudar em tudo o que fosse preciso, inclusive para me transportar ao hospital.

A gratidão é esse sentimento de reconhecimento por alguém que, desinteressadamente, nos fez bem e que nos faz sentir vontade de agradecer e fazer algo de semelhante em prol de quem foi bom para nós. E, contrariamente à gratidão, a falta de gratidão transporta-nos para o sentimento de culpa, que nos gera mal-estar e é algo que queremos evitar, ou aplacar.

Neste mundo eivado de egoísmo, em que, na maioria das vezes, a prática do bem tem sempre como expetativa o reconhecimento por parte do outro - a gratidão, torna-se uma pérola rara encontrar alguém que pratica o bem em estado puro, isto é, sem ter alguma expetativa em vista, mais não seja a satisfação pessoal pelo ato de gratidão do outro, que, segundo as regras socialmente convencionadas, normalmente se segue. Comportamento gera expetativa, e todos sabemos isso.

Mas a gratidão também nos pode tornar reféns de outrem e levar a condicionamentos do nosso próprio comportamento. Quantas vezes não toleramos uma situação que não nos faz integralmente felizes, apenas porque o peso da ingratidão, ou o sentimento de culpa, que advirá caso tomemos certas atitudes, é mais forte do que tudo?

Não gosto de sentir a gratidão em dívida e penso que o mais correto é liquidar rapidamente esse débito, nomeadamente fazendo algo de bom em prol de quem me quis bem, e também mostrar a minha inteira disponibilidade para continuar a fazê-lo.

O mais normal é praticarmos o bem em relação aos nossos semelhantes e a reciprocidade surge, quase sempre, como algo de natural e expetável. Ninguém que viva egoisticamente, observando com um cuidado desmesurado a forma do seu umbigo, pode esperar que haja muita gente disponível para lhe querer bem. A reciprocidade, ou o comportamento sinalagmático, é pois a regra convencionada no tecido social.

Quando me perguntam se recordo alguém que queira o meu bem, pratique o bem em relação a mim, me ame incondicionalmente, sem jamais expetar uma reciprocidade ou, outrossim, fazer depender as suas atitudes do cumprimento do expetado, afirmo sem sombra de dúvidas que é a minha mãe. Ela é a minha maior amiga, a pessoa que mais me ama e, estou certo, jamais alguém gostará de mim como ela.






Elegia de um funcionário



A Elegia de um funcionário

É necessária uma dose de imaginação reforçada - como aquelas vitaminas, ou remédios, que o melhor é tomar logo duas colheres, ou duas pílulas, para o efeito ser eficaz e duradouro – para fazer com que o dia-a-dia de um vulgar funcionário forneça algo de interessante à mente e apele à escrita. Como nada disso, regra geral, acontece, resta a adulteração dos factos, a efabulação de episódios triviais e o endeusamento do banal, travestindo de irrealidades episódios do quotidiano, para mitigar a pobreza do relatável.

Assim, vejamos: um funcionário que, logo pela manhã, troca a gravata e a fatiota cinza por um cesto de frutas à cabeça e canta nos corredores da repartição como a Carmen Miranda; outro, sozinho, ao fim da tarde, que se crucifixa numa secretária pregando-se com pioneses e tachas; uma funcionária que, todos os dias, se agrafa, nas orelhas e nos lábios, dizendo que usa «piercings du bureau»; uma colega, de longos cabelos loiros, que acumula vários teclados de computador diante de si e toca/escreve neles em simultâneo, o cabelo liso escorrido para diante, imaginando-se o Rick Wakeman dos Yes, rodeado de sintetizadores e teclados; um jovem estagiário que pinta quadros abstratos com a tinta dos carimbos e das impressões digitais, servindo-se de bases de copos de plástico como formas; um subchefe que utiliza o balcão para ensaiar passos de equilibrista, com o selo branco em cima da cabeça e os braços esticados; ou um chefe da repartição que dá reprimendas aos funcionários, com um nariz vermelho de palhaço sempre posto, sem admitir réplicas ou risinhos de escárnio da parte dos seus subordinados.
O que viria a ser isto?

Seria diferente, subvertido, não convencional? Um manicómio? Uma repartição disfuncional?

Subscreve-se, por momentos, aquela teoria subversiva de que o «Miguel Bombarda» tem muros altos em volta para ninguém se sentir tentado a saltar lá para dentro. Uma vez mais tudo se consuma no modo como se perspetivam as coisas: A loucura é como uma bolha com alguém lá dentro, aprisionado, incapaz de se libertar e, em simultâneo, crente de que realidade é outra. E não é?

O que pode acontecer de interessante numa repartição, no meio de um emaranhado de papéis, formulários, regras apertadas de escrita, minutas, técnicas áridas, colegas apostados em competir, minuto a minuto, acotovelando-se para dar graxa ao chefe, lambendo-o sofregamente de cima a baixo, tudo isto num espaço apertado e enfadonho? Que pode, nesse planeta de marmelada burocrática, pelejado de tédios, alimentar uma mente ávida por escrever? Nada! Talvez só mesmo a deturpação da realidade circundante, dando-lhe um desvio de génese patológica, esquizoide – sair, custe o que custar do real terrífico! - possa fazer com que o mofo da banalidade se esvaia, pois de outra forma não estou a ver como. É tudo uma questão de adaptação: se não gostas do que te rodeia, imagina-o ridiculamente diferente, dessacralizado das marcas mais duras que o compõem, despojado dos seus ritos mais absurdos. Surrealiza o que te circunda. Sê Breton, à vontade; Dali, e por aí fora. Sobretudo, não pares!

A maior loucura seria, talvez, começar a gostar dos quotidianos formulares como se de coisas admiráveis se tratassem. Essa, sim, seria uma atitude crepuscular, border-line, motivo de preocupação por demasiado conformada com os moldes da vida: olhar para a lombada de um dossier da Âmbar e compará-lo com um quadro de Veronese; achar que o texto de um ofício é profundo como um poema de Álvaro de Campos; ter êxtases consecutivos com a leitura de um despacho bem fundamentado; amar uma coletânea de legislação como se de romances bem escritos se tratasse... Ainda há almas assim, que veem beleza na crueza destas coisas; e isso é, para mim, deveras preocupante.

O funcionário inadaptado toma, logo pela manhã, colheres reforçadas de contenção e paciência. Veste o hábito conventual que lhe proporciona a subsistência e anestesia uma parte substancial da mente, da verve, e do espírito, para conseguir engolir os sapos verdetes, por vezes asquerosos, que o esperam num tabuleiro de penitências posto à entrada da repartição.

São os bons dias em dias maus; o sorriso de comissário-de-bordo, treinado às vezes na casa de banho, já dançando no rosto - não vá algum azedume que transpareça fazer com que o rotulem de antipático e lhe transformem a vida num inferno; é o tom de voz amistoso, cordato, por forma a não criar hostilidades, quantas vezes contragosto. É todo um mundo de contenção e cuidados pois, o mais das vezes, uma repartição não é muito diferente de um campo minado: o mais seguro é andar sempre por trilhos já picados e que se revelam seguros. Pisar solos inexplorados, tentar caminhos diferentes, para além de constituir um risco tremendo, é, geralmente, uma aventura solitária que não tem seguidores.

Há, no entanto, sempre, um certo sorriso sincero, algures guardado, pronto para ser ofertado, mesmo nos acertos e desacertos do quotidiano de uma repartição, sempre que se dão os tais «momentos de humanização» e a flagrante filha da putisse que carateriza o comportamento de muitos se ameniza. É nas alturas em que os competidores baixam um pouco as defesas – cansam-lhe os braços de tanto se elevarem – que se proporcionam os momentos, porventura, mais agradáveis. Parece que não, mas são essas lufadas de ar fresco, essas pausas no combate pela supremacia do: «ser o mais competente»; «ser o mais perspicaz»; «ser o mais sabedor»; «ser o mais bem informado», servem para retemperar as forças, para continuar a aguentar o embate constante.

O clima das repartições não se coaduna com peregrinações interiores e os estados de alma dos desatentos são notados pelos demais. É fácil dar com o tal funcionário desenquadrado no certame dos serventes diligentes. Geralmente é sempre aquele que menos vibra com "coisas supostamente vibráteis". Não alimenta longas conversas com assuntos de serviço; desatina com os modelos pré-oferendados e com a impossibilidade criativa; desconcentra-se com mais facilidade e tem um olhar vago, ausente, de quem está, e já não está. Presta mais atenção à janela, ao mundo exterior, do que os outros, ainda que esteja com a secretária transbordando de papéis soturnos, e não se acomoda ao redondo dos quotidianos banais.

É a esse burocrata moderno, culto, inconformado, não refém do atavismo dos carimbos e dos papéis, das formas de ação estandardizadas, capaz de superar a bitola estreita do «corretíssimo e insuperável procedimento administrativo», a quem me cumpre tirar o chapéu e desejar-lhe as boas vindas ao mundo do eternamente superável: um mundo onde não há impossíveis administrativos e a solução para os problemas das pessoas é uma coisa simples, passível de acontecer – não um milagre! - que não se esfrangalha nas muralhas ditatoriais de um funcionário marreta e aperuado.

Esse último, que tome as tais colherzinhas de pó da loucura, logo cedinho pela manhã, e o dia da gente vai correr muitíssimo melhor. E, já agora, que se cuide, pois tem os dias contados. Vem aí uma geração de funcionários com narizes vermelhos de palhaço, formados no Chapiteau, e um dia, não muito longínquo, uma repartição pública será um oásis de sorrisos na aridez dos quotidianos triviais.

Para que tal aconteça, prometo contribuir com a minha fatia de loucura. *


* Escrito em Lisboa