sábado, 21 de dezembro de 2019

Vade retro Drugstores





A minha embirração com centros comerciais é antiga e de todas as minhas mitologias esta é porventura uma das mais persistentes. Sempre detestei aqueles ambientes estereotipados, claustrofóbicos, pejados de pessoas aos encontrões, com uma iluminação surreal, enfeitados de avenidas com lojas de um lado e do outro, onde as vitrinas, quais meretrizes apelativas, contam com a rendição absoluta de muitos às marcas da moda - que pretensamente lhes acrescentam algum prestigio social.

Se me pedissem para balbuciar alguns neologismos que bem caracterizassem este meu sentimento deplorativo, talvez que as expressões "forumfóbico" ou "shoppingfóbico" me assentassem como uma luva.

Em Lisboa, nos anos 70, assisti ao desabrochar da maioria dos Centros Comerciais, ou Drugstores, como também se lhes chamava. O Drugstore da avenida, "Drugstore Sol a Sol", com entrada pela Avenida da Liberdade e o "Drugstore Tutti Mundo", na Avenida de Roma, ainda abriram nos finais dos anos 60. Mas, mais tarde, outros maiores foram abrindo um pouco por toda a cidade. Era uma moda norte-americana que tinha vindo para ficar, tal como a Coca Cola e os hambúrgueres.

O verdadeiro boom dá-se precisamente na década de 70. O Apollo 70 (homenagem à nave espacial), ao Campo Pequeno, com bowling (uma novidade na capital), jogos americanos, uma delegação da Valentim de Carvalho (discoteca), um estúdio de cinema e uma cafetaria, entre outras lojas, fazia as delícias dos lisboetas e dos habitantes das cidades circunvizinhas. Lembro-me de ir propositadamente lá para comer uma banana split, uma novidade em absoluto à época, e de ter sido uma das experiências gastronómicas mais felizes da minha juventude.

Seguiu-se o aparecimento do "Centro Comercial Castil", na Rua Castilho, do "Caleidoscópio", do "Imaviz", na Avenida Fontes Pereira de Melo do "Centro Comercial Fonte Nova", em Alvalade; e, já nos anos 80, o aparecimento do "Shopping Center das Amoreiras", arquitetado pelo celebérrimo Tomás Taveira, na altura o maior de Portugal. A nossa parolice era de tal monta que recordo excursões vindas do norte propositadamente para verem a cascata artificial do "Imaviz", ou para os excursionistas experimentarem os elevadores e as escadas rolantes das Amoreiras. O país vivia embasbacado com os centros comerciais e juntamente com esse delírio também surgiu um novo tipo social: as "meninas do shopping": loiras pestanudas, carregadas de quilos de maquilhagem, com ar e futilidade no lugar do cérebro e ambições de vida brejeiras, mas que atraiam muita clientela para o consumo; e sobretudo mirones.

Cedo, os centros comerciais desapareceram do meu radar. Deixei de os frequentar porque sempre foram um ambiente hostil à minha maneira de estar e ao recato que aprecio. Entro nalgum em situações in extremis, quando tenho de comprar um livro ou algo que, face à política comercial concentracionária que insiste em aniquilar o comércio tradicional, sei que só posso encontrar numa Fnac ou numa Bertrand. Desespero com a dificuldade do estacionamento e, de uma forma geral, com tudo o que por lá se passa.

Sei que as cidades mudam, que a viabilidade financeira dita o fecho de cinemas, lojas tradicionais, cafés e edifícios emblemáticos. As cidades estão cheias de lugares desses, locais de encontro que de repente fecham e por vezes nem mudam, ficam décadas entaipados a aguardar uma decisão judicial ou uma qualquer solução económica que lhes confira novo destino.

O Natal é a época do ano em que precisamente se enfatizam todas as coisas que me fazem detestar centros comerciais. Para além da tralha abundante que por lá existe e deambula, sou interpelado por jovens que me querem vender cartões de crédito, outros que me oferecem papelinhos para snifar perfumes; e, como se tudo não bastasse, sou obrigado a escutar em repeat musiquinhas de natal, enquanto vou avançando aos tropeções até à Fnac ou à Bertrand - os únicos oásis que me merecem.

tamanhos sacrifícios. 

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

A Elsa deprimida

A depressão Elsa nome de flor miosótis nas minhas memórias juvenis assobia flauteados por entre as frestas das janelas enquanto a água pluvial cai copiosamente alagando o chão e os sistemas de saneamento básico rebentam pelas costuras saturados com quantidades que não conseguem digerir e bolsam como crianças engasgadas no vómito do leite e as pessoas amontoam-se à porta do hospital à espera que a chuva passe mas ela não passa e já quase ninguém consegue entrar ou sair pela porta das consultas externas tal a quantidade de receosos se aglomerou para ver os desmandos da Elsa e os vultos brancos que correm fugindo da chuva que devem ser médicos e enfermeiros e um deixa cair um estetoscópio no chão e volta para trás e os carros que se movem com vagar em passo de funeral com os vidros embaciados deitam fumos quentes que reagem histrionicamente ao frio exterior evaporando-se com rapidez exagerada com vultos lá dentro que se assemelham a espetros e então não por coragem mas porque tem de ser agarro na mota faço-me à estrada e venho para casa com a Elsa deprimida à pendura e chego à garagem muito parecido com o Gene Kelly no Singin' in the Rain quando lhe deitavam água para cima para parecer que estava a chover em dia de depressão feminina.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Simplício bocejou



A luz da tarde morre nos telhados dos prédios fronteiriços, engalanados por dezenas de antenas, que fazem vagamente lembrar os ramos de alguns quadros de Miró. Ao fundo, o Tejo, mulher vaidosa, veste-se com um rasto de luz doirada que quase toca a outra margem. Na Ponte 25 de Abril, silhuetas negras, pontos minúsculos, movem-se em direções opostas numa constância de relógio de pêndulo. No estuário do rio, são várias as embarcações que se movem no vagar do final da tarde deixando atrás de si um rasto de espuma branca na água esverdeada.

A vista da estreita varanda é o luxo maior do meu apartamento. Trata-se de um prédio pombalino de cinco pisos, com escadas de madeira que rangem como velhas cheias de ciática, forrado de azulejos cor de esmeralda, testemunha silente de milhares de histórias. Pouco a pouco, os candeeiros públicos acendem uma luz trémula, que se mistura com os fiapos dos raios de sol, a que se juntam o chiar dos carros eléctricos e o matraquear corpulento dos motores diesel dos autocarros da Carris, que sobem a custo a íngreme Calçada. Sei que não tarda é noite. Estamos no inverno.

Bocejo ao mesmo tempo que coço a cabeça. Encontro-me diante do monitor luminoso do computador e pareço hipnotizado com a luminescência do écran. Não me surgem ideias e o prazo para a entrega da crónica semanal que escrevo para o jornal regional aproxima-se do fim. Mais uma falha da minha parte e é certo que arranjam outro cronista para preencher a pequena coluna que ocupo há vários anos. O redator nunca me perdoou o facto de, por duas vezes, ter utilizado textos meus, embora adaptados, mas já publicados noutros espaços, para o preenchimento da minha crónica semanal. A única exigência que o jornal me faz é a de que disserte sobre temas atuais e controversos, se possível, sem fazer desvios acentuados à linha editorial do semanário, que é manifestamente de esquerda. A temática, de resto, é da minha lavra, bem como o curso que quiser imprimir à escrita.

A liberdade de expressão é bastante apreciada pela equipa de redação, mas Elias, o redator-chefe, nunca se esquece de me relembrar que as crónicas, além de terem de ser textos curtos, devem tratar de acontecimentos corriqueiros do quotidiano; e por estarem tão extremamente conectadas ao contexto em que são produzidas, com o passar do tempo perdem sua “validade”, ou seja, ficam fora do contexto.

Elias tem um doutoramento em Comunicação Social e é respeitado entre os jornalistas que compõem a equipa do semanário. Apesar de não ter grande verve como escritor, todos reconhecem nele metodologia e precisão e uma capacidade de liderança indiscutível. Eu próprio lhe reconheço bastante mérito nesse campo.

Nunca se é totalmente livre, cogito, e basta que haja uma qualquer relação de dependência, ainda que mínima, para que o resultado da ação não dependa inteiramente de nós. O escritor, o artista, o criador, o compositor, integram profissões onde, porventura, a liberdade é sobejamente maior do que noutros ofícios. Desagrilhoados dos horários rotineiros e escrupulosos que ocupam a maioria da população ativa, os criadores recebem uma espécie de carta de alforria que os liberta, para poderem fazer nascer algo e lhe darem forma e substância. E essa espécie de espaço vital, onde o tempo e o modo são decididos pelo criador, parecem ser condições impreteríveis para que algo possa acontecer. Mas os deadlines existem, seja nos jornais ou nas revistas. Muito para além do entendimento e respeito pela condição do criador, há negócios a decorrer e as empresas movem-se segundos os objetivos que lhes estão na origem: gerar o máximo de lucro dentro daquela esfera de atividade.

Lendo várias entrevistas com Lobo Antunes, que considero o escritor mais contracorrente de todos os que integram o panorama atual da gente que escreve e publica com sucesso, parecemos ficar com a impressão de que ele é completamente livre de redigir e publicar o que lhe dá na real gana e pouco se importa com as críticas ou com o volume de vendas dos seus livros. A sua conhecida arrogância e sentido de humor cáustico assim o indicam. Mas não é de todo verdade. Antunes é bastante sensível às críticas e sofre, mais do que por nunca ter alcançado o almejado Prémio Nobel da Literatura, pelo facto dos seus livros não terem o nível de vendas de outrora. O enfant terrible das letras portuguesas, que fazia parar o país literário cada vez que saía um livro seu, que tinha milhares de exemplares vendidos e edições esgotadas em poucos dias, desapareceu. E desengane-se quem pensa que os seus livros de crónicas se vendem melhor. Quem gosta das crónicas de António Lobo Antunes vai lê-las na revista Visão e não compra o livro. E quem sou eu, Simplício, junto à vasta sombra de Lobo Antunes?

Olho de novo para o écran do computador e reparo que a página deixada em branco - ausentara-me por breves instantes para me deleitar com a vista magnífica que desfruto da pequena varanda, da mansarda que ocupo no quinto piso - apresenta agora uma série de caracteres indecifráveis: “qwedddddddddsa btyy”. Mefistófeles, o gato persa que comigo partilha a vida e a habitação, esteve a dar marradinhas no teclado e deixou impressa a sua pegada felina.

Olho para o relógio e fico assustado. São 18h00 e antes das 21h00 a crónica tem de estar pronta e revista para ser enviada por mail. No dia seguinte, sábado, sai o jornal e a minha crónica habitual ocupa uma coluna que preenche cerca de um terço de uma das páginas centrais do semanário. Penso em temas da atualidade aos quais possa acrescentar um olhar pessoal, mas tudo me parece de uma banalidade confrangedora. O pensamento apenas me fluí para devaneios sem consistência capaz de gerar um texto.

O meu nome de baptismo, Simplício, sempre foi motivo para chacotas, mas, com o passar dos anos, que também nos faz importar cada vez menos com aquilo que possam pensar de nós, habituei-me a ele e agora até gosto. Antigamente era comum os pais colocarem nomes estranhos e complexos aos filhos, enfeitados de vários sobrenomes, pois na época isso representava poder, glamour e riqueza. Tinha sido por insistência da minha mãe que o nome Simplício me havia sido posto. A minha mãe era uma fervorosa admiradora dos filmes portugueses dos anos 40 e Simplício Costa (António Silva), mais conhecido por Costa do Castelo, um homem preguiçoso mas um grande guitarrista, era de longe o seu personagem predileto. Então a sua única criaturinha tinha de ser baptizada com o nome do seu herói cinematográfico.

Sou sexagenário, embora aparente ter menos idade. Moro numa mansarda arrendada, distante do centro da cidade e todos os dias apanho o elétrico para me dirigir à Baixa. Vivo de uma magra reforma que os anos de serviço como professor me proporcionam. A escrita, paixão antiga, levou-me um dia ao jornalismo, embora nunca tivesse tido carteira profissional. Desde muito novo, comecei a enviar textos para os jornais, para algumas revistas e editores, sempre com a esperança de um dia ver um dos meus escritos publicados. E foi assim que as coisas aconteceram. De colaborador ocasional, tornei-me cronista efetivo e ganhei um espaço próprio no semanário.

Preciso de me concentrar na crónica mas sinto-me incapaz de tal exercício. Nisto o telefone toca - um trim trim que mais parece o som da campainha de uma bicicleta pasteleira, daquelas que antigamente circulavam pelas aldeias – e interrompe os sons habituais que comigo coabitam o apartamento. Atendo o telefone mas do outro lado desligam. Não raro, fazem-me isto e parece que alguém quer propositadamente perturbar-me. Já pensei em indagar junto da operadora sobre a possibilidade de detetar a autoria dos telefonemas, mas o número nunca se encontra identificado.

Algures, num dos andares abaixo do meu, escuta-se o arrastar de móveis e, mais longínquo, o choro de birra de uma criança. Quando a imaginação falha, qualquer ruído distrai-me e funciona como uma ótima desculpa para a falta de ideias. Fico levemente irritado.

Habito já há bastantes anos o piso cimeiro, que sofreu obras recentes por parte dos proprietários. A renda é coisa simbólica e de vez em quando os proprietários escrevem-me cartas com ofertas generosas para que deixe o apartamento vago. Nunca aceitei e o destino das cartas é invariavelmente o caixote do lixo. Sinto-me incapaz de enfrentar mudanças e somente o pensamento de tal cenário me apavora. A inquilina originária era a minha última companheira, falecida há quase uma década e eu herdei a condição de arrendatário.

No rés-do-chão direito mora uma velha solitária que todos dizem estar louca há muitos anos, devido ao desgosto provocado pela morte do seu único filho, em terras angolanas, na guerra ultramarina. Ninguém sabe ao certo o seu verdadeiro nome, pois, sempre que se referem a ela, dizem: “olha, lá vai a maluca!”. É comum falar sozinha até altas horas da noite, rir e barafustar com pessoas invisíveis. A sua última loucura é atirar vasos e pedras para cima dos carros que se atrevem a estacionar debaixo das suas janelas. Na polícia, as queixas amontoam-se, mas nada acontece à velha. E ela ri, ri-se de tudo. Certo é que ninguém que a conheça se atreve a estacionar o automóvel ao alcance dos seus arremessos.

O rés-do-chão esquerdo só é habitado durante o verão. A proprietária, uma viúva herdada, cujo marido enriqueceu em terras sul-africanas, passa o inverno em Cape Town e só regressa a Lisboa para passar os meses do verão. Amante do calor, recusa enfrentar o inverno português, a chuva, o frio e os dias cinzentos. Talvez por estar habituada a residir num país extremamente violento, mandou instalar uma grade de ferro, pintada de branco, na entrada da porta do seu apartamento. Não tardaram denúncias na Câmara, porque se trata de um edifício histórico e houve alterações não autorizadas. Dizem por aí, pelo que me confidenciaram no café fronteiriço, que todos julgam ser eu o delator, só porque sabem que escrevo coisas direitinhas e fui professor. Ao que parece, a denúncia também foi escrita de uma maneira muito direitinha. Uma cartinha toda composta e detalhada que chegou à Câmara Municipal. Já cá esteve o fiscal.

No primeiro andar direito mora uma família ucraniana. A mulher trabalha a dias desde que se levanta até à noitinha, enquanto o marido, que responde a toda a gente que lhe pergunta “não tem trabalha”, beberica imperiais e taças de branco na taberna do Mirmécio. Os filhos são cinco, um deles já nascido em Portugal, e a Sevtlana desunha-se mais de dez por horas por dia nas limpezas para alimentar os filhos e as beberagens do marido. Ela tem 35 anos mas aparenta ter mais de 50. No leste europeu, não é incomum o alcoolismo fazer parte dos agregados familiares e ela parece aceitar com alguma placidez o seu destino. Vejo-a sempre bem-disposta e sorridente. Aos domingos, a família passeia junta e ela agarra-se ao marido por um braço, com uma ternura maternal e conformista. São muito barulhentos, especialmente aos sábados à noite. Convidam metade da comunidade ucraniana residente na capital, embebedam-se, dançam, riem e fazem uma algazarra por mim audível no 5º andar. A polícia já foi chamada algumas vezes – não se sabe por quem – mas, tal como a maluca, que apedreja automóveis indiscriminadamente, para além das ameaças e dos pedidos de desculpa, nada acontece.

O primeiro andar esquerdo está desabitado. Dizem que um velho que ali morava morreu e o filho, seu único herdeiro, tem a casa ao abandono desde então. A casa nunca mais foi usada ou limpa e já passaram cinco anos. De vez em quando, um cheiro nauseabundo desprende-se lá de dentro e invade as escadas. Ditoches de mau gosto que circulam no tasco do Mirmécio, atribuem o odor pestilento aos restos mortais do velho, que se calhar nunca chegou a ser enterrado. Ninguém foi ao seu funeral, nem mesmo o filho. Vivia sozinho e sozinho morreu naquela casa. Dizem, entre taças de branquinho, que o velho está há cinco anos a apodrecer na cama.

No segundo andar direito mora uma professora do ensino básico, cinquentona, feia como a noite, com uns dentes dianteiros demasiado salientes que não lhe cabem dentro da boca. Mesmo com a boca fechada, os dentes ficam a morder o lábio inferior e quando coloca baton, ficam pintados de vermelho Ferrari os dentes e os lábios. Sempre que me cruzo com ela nas escadas, assusto-me com a forma como ela me sorri: a boca escancarada e os dentes em posição de abocanhar o que esteja ao seu alcance. Evito-a, até porque não simpatizo com as mesuras com que me trata e as tentativas para entabular conversação. É solteira, divorciada, ou viúva, ninguém sabe ao certo e lá no Mirmécio também se especula que ela deve ter abocanhado todos os homens da sua vida, daí estar só.

No segundo esquerdo, mora um casal de lésbicas. São ambas quarentonas e trabalham num ministério qualquer para os lados das avenidas novas. São inquilinas pacatas e não produzem ruídos desagradáveis. Cumprimentam toda a gente com cordialidade, mas mantêm recato sobre as suas vidas. Possuem dois pincheres castanhos em miniatura e todos os dias de manhã cedo levam-nos à rua, ao jardim que fica ao fundo da rua, para fazerem as necessidades. Por vezes, ao final do dia, repetem o mesmo percurso. Andam sempre juntas, seja para ir às compras ou sair a algum lado. Somente o seu ar arrapazado, o cabelo curto, a ausência de maquilhagem ou quaisquer adereços femininos, denunciam as suas preferências sexuais. Tanto quanto me lembro, nunca escutei alguém dizer mal delas.

O terceiro andar direito e o esquerdo estão ambos vazios e em obras. Consta que foram comprados por um emigrante que está em França e que se prepara para pedir balúrdios pelas futuras rendas.

No quarto andar direito, mora uma violinista. É uma rapariga jovem, com cerca de 20 e poucos anos. Deve ser estudante, pois entra em casa bastante tarde e durante a manhã não se escuta qualquer ruído. Deve dormir até tarde. Todos os dias, perto da hora do almoço, oiço-a debitar escalas durante mais de duas horas. Somente depois desses exercícios consigo escutar algumas melodias. Não recebe visitas e parece ser uma jovem bastante solitária. Nunca a vi acompanhada.

O quarto andar esquerdo é habitado por um velhote que dizem ser pintor e poeta. Raramente me cruzo com ele, mas a sua figura, de uma magreza excessiva, o olhar penetrante, o nariz adunco e o cabelo totalmente branco, fazem-me lembrar o Mário Cesariny, uma das maiores vozes da nossa poesia e o principal representante do surrealismo português. Não sei o nome do inquilino do quarto esquerdo, mas imagino-o alguém como o Cesariny, que nunca teve medo da liberdade e deu de barato qualquer verniz para se apresentar aos seus contemporâneos tal qual era. Assumidamente excêntrico, provocador e homossexual.

Por último, nesta pequena mansarda, ensanduichado entre os restantes inquilinos e o telhado, moro eu. Devo a ser o personagem menos interessante de todos quantos habitam este prédio, construído após o terramoto de 1755, a mando de um tirano marquês, que um dia mandou cuidar dos vivos e enterrar os mortos. Aposto que nenhum dos inquilinos alguma vez pensa em mim, ou sequer se importa em indagar quem eu sou, como vivo, quais os meus gostos, desgostos e anseios. As nossas vidas não se cruzam, exceto nas escadas do prédio. Ninguém sabe, por exemplo, que um dia dirigi uma decadente revista literária chamada Pena e que escrevo compulsivamente para tentar manter a vida nos eixos, criando projetos e rascunhando livros que nunca vou terminar. Que a escrita, para mim, mais do que uma forma honesta de ganhar uns trocos, é o modo natural que utilizo para expulsar os demónios que atormentam a minha cabeça. Não sabem que sou um homem extremamente solitário, mas que apesar de toda a solidão, busco também refúgio no humor. Que me satirizo a mim mesmo de forma cruel, quando exponho o ridículo da minha vida nas personagens que vou entretecendo ao longo das minhas histórias. Que toda a minha escrita reflete claramente um homem abandonado, talvez traído pelo seu próprio orgulho e personalidade intempestiva. Mas que lhes importaria saber isso? O que mudaria?

Vou ter de fazer das tripas coração e inventar uma treta de um texto qualquer para ser publicado como mais uma das minhas crónicas. A realidade é que o dinheiro da reforma é pouco e tudo o que vier a mais dá-me imenso jeito. Desconfio que o meu senhorio se prepara para me aumentar a renda. Já me falou nisso diversas vezes. Nos últimos tempos, na baixa lisboeta, têm surgido imensos incêndios com origem misteriosa e todos em prédios antigos, com rendas muito baixas. Não saem a bem saem a mal. Diz-se que são os proprietários que pagam a alguém para pegar fogo aos imóveis como forma de pressionar os inquilinos a saírem. A maioria dos arrendatários é idosa e paga rendas totalmente desajustadas face às condições do mercado. O alojamento local está na ordem do dia e a mira do lucro é o leit motiv, que faz com que sociedades de investimento estrangeiras cada vez mais adquiram imóveis na baixa pombalina.

Tenho medo que me peguem fogo à casa e que eu morra cremado vivo aqui dentro. “ O próprio viver é morrer, porque não temos um dia a mais na nossa vida que não tenhamos, nisso, um dia a menos nela”, escreveu Pessoa. Mas Pessoa não gostava muito de viver, ou, pelo menos, nunca se preocupou em prolongar a sua vida, com sacrifício dos vícios e de tudo o que lha abreviava. Enquanto não atravessarmos a dor da nossa própria solidão, continuaremos a nos buscar em outras metades, não forçosamente do sexo oposto. Mas, mais importante do que viver a dois é antes ser um e isso é aquilo que eu tento ser, juntamente com o meu Mefistófeles, nesta mansarda cujo teto quase nos cai em cima. Quanto à crónica para o jornal, vai mesmo isto, escrito sem conteúdo planeado, que toca a reflexão pessoal, o mexerico com a vida dos inquilinos e um pavor quase absurdo que se agiganta em mim cada dia que passa: o de ser queimado vivo.




segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Pingo Doce - Heróis de Angola





Apesar de nesta vida já ter palmilhado quase seis décadas e da miséria, os infortúnios, a dor, as injustiças e, de um modo geral, o sofrimento, próprio e/ou alheio, não constituírem surpresas para mim, ainda não perdi a capacidade de me espantar com certas coisas. O que faz um jovem, com vinte e poucos anos, sentado no chão, à porta do Pingo Doce, acompanhado de um pincher empoleirado num banco, tocando acordeão? Pede dinheiro, com certeza. Mas porque motivo? Qual a sua história de vida que o fez desviar-se dos percursos normais da maioria dos jovens: estudo, trabalho, estruturação de bases sólidas para a sobrevivência em sociedade? O que foi feito pelas nossas instituições, na sua grande maioria, sustentadas pelos nosso impostos, para ajudar este jovem?

Na Europa Comunitária animam-se processos para a criminalização dos Sem-Abrigo e dos pedintes, como se, ser Sem-Abrigo – não ter teto nem casa – fosse um crime! Assiste-se, em muitas áreas, a verdadeiros retrocessos civilizacionais, como se o azar não pudesse, um dia, bater à porta de qualquer um de nós!

Há exemplos, bem concretos, da aplicação de sanções para mendigos, e para quem os ajude: a proibição da mendicidade e a criminalização de quem pede esmola na Noruega, por exemplo, é uma amostragem da perseguição e da criminalização de que têm sido alvo os Sem-Abrigo na Europa. Em Setembro de 2013, o Parlamento Húngaro aprovou legislação que permite aos seus municípios impor multas, serviço comunitário e até pena de prisão, a pessoas sem-abrigo. O presidente da Câmara de Verona – Itália – diz que os Sem-Abrigo são “uma ameaça à saúde pública”, pelo que, quem decidir alimentá-los, incorre numa multa entre 25 e os 500 euros!

Em Portugal, algumas pessoas, de grande responsabilidade nas áreas sociais, recomendam “bom senso”. Eu alinho nesse tom, totalmente. O que é preciso é mesmo isso. Indagar sobre cada caso, com as suas particularidades - não há histórias de vida iguais - e tudo fazer para ajudar quem carece de apoios.

Mais de 46 anos da minha vida foram passados em Lisboa e nos seus arredores, onde os problemas sociais são bastante mais sérios do que em Leiria. Habituei-me a ver, no dia-a-dia, a miséria nas suas formas mais sórdidas, mas nunca perdi a capacidade de me indignar. Uma pessoa que dorme na rua e se alimenta dos caixotes do lixo (visões muito comuns na Lisboa dos anos 80), hordas de Sem-Abrigo, fazendo das arcadas do Terreiro do Paço o hotel dos desafortunados da vida, todas as noites envoltos em mantas mal cheirosas e pedaços de cartão, ou agora um jovem de tenra idade a pedir esmola, são situações que deveriam envergonhar quem administra o nosso dinheiro e o gasta com primazia em subsídios tauromáquicos e outros degradantes espetáculos perdulários. Urgente e primordial é isto!

Leiria, Avenida Heróis de Angola, 09122019