segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Pão-por-Deus



Acabei de ler a informação algures num sitio da Internet que Pão-por-Deus é um peditório ritual feito por ocasião do Dia de Todos-os-Santos, associado às práticas relacionadas com as refeições cerimoniais do culto dos mortos "Dia dos Finados".

Em Portugal no dia 1 de Novembro, Dia de Todos-os-Santos, as crianças saem à rua e juntam-se em pequenos bandos para pedir o Pão-por-Deus (ou o bolinho) de porta em porta. Apesar de não ser uma tradição circunscrita a uma região e existir em diversas partes do país, antes de vir morar para Leiria, nunca eu me recordo de alguma vez, em Lisboa ou nas cidades circundantes, ter presenciado o peditório do bolinho.

Na minha meninice era usual os pobres tocarem à campainha das pessoas, quase sempre à hora do jantar, para pedir comida. Era rara a noite em que a minha mãe não dava um prato de sopa e fruta a alguém, na condição de comerem sentados nos degraus da escada. Por questões de segurança, mas também por segregação, muito comum nessa época, ela não os deixava entrar.

Vista a situação à luz dos cânones atuais parece inadmissível dar uma esmola de forma tão humilhante, mas estávamos nos anos 60, a miséria era endémica e em qualquer cidade do país existiam ilhas de pobreza extrema, muito idênticas às favelas que conhecemos da América do Sul. Na minha escola, muitos meninos andavam descalços e quando lhes ofereciam uns sapatos, não raro, vendiam-nos, pois já tinham uns calos tão grosso nos pés que se sentiam desconfortáveis com qualquer calçado.

Na minha infância, a pobreza extrema era tão comum que já pouco afligia. Quem vivia bem ou remediadamente, mais não fosse para aplacar a sua má consciência ou remorso, partilhava as suas migalhas e sobras, sempre que um pobre lhe pedia comida. "Dinheiro para a bebida não dou, mas um prato de sopa sempre se arranja..." . Os pedintes eram quase todos rotulados de alcoólatras, potenciais larápios e irresponsáveis e só pediam para sustentar vícios. Não raro, os paupérrimos apanhavam das mesas do cafés, inclusive do chão, os restos dos bolos deixados por um cliente enfartado de tanto comer. Eram desapiedadamente expulsos de restaurantes, cafés ou quaisquer estabelecimentos comerciais, pois vestiam-se com farrapos, destilavam um odor insuportável e a sua pele era uma negritude, tanta a sujidade acumulada.

Voltei a ver miséria ao vivo e com dimensões épicas nas quatro vezes em que estive no Brasil. Certas zonas do Rio de Janeiro fizeram-me recuar ao Portugal dos anos 60, com os seus famosos "bairros da lata" que eu visitava com o meu pai, nesse tempo, Presidente da Conferência de São Vicente de Paulo e um acérrimo praticante da esmola e do apadrinhamento de um pobrezinho. Nos anos 60, no seio da Igreja Católica, era muito comum o "bom cristão" ter o seu próprio pobrezinho, a quem levava comida, roupa, marcava consultas no médico e ofertava conforto espiritual.

Era uma caridade que consentia e via como uma inevitabilidade a diferença extrema das condições de vida entre filhos de um mesmo criador. O nascimento na maior parte das vezes ditava o destino de cada um. Mas uma coisa é certa: se não fosse a Igreja, Católica ou Protestante e as suas organizações de benfeitoria, o Estado fascista teria deixado morrer à fome e na mais miserável condição de vida muitos milhares dos seus concidadãos. Felizmente que o peditório do bolinho é um ritual que mantém viva uma vetusta tradição e não mais do que isso.



domingo, 30 de outubro de 2022

Um dia qualquer



Hoje, pela primeira vez este ano, sinto-me finalmente nos preâmbulos do inverno. A noite de ontem foi de temporal intenso e de manhã, bem cedinho, descobri a varanda com vasos derrubados, o chão encharcado e cheio de folhas arrancadas pela intempérie. É daqueles dias em que apetece ficar em casa, preguiçando com um livro entre as mãos, vendo um filme interessante ou praticando canções novas na guitarra. Às cinco e meia da tarde já é quase noite cerrada e sob a consistente camada de nuvens, a perder de vista, que vislumbro da janela do meu escritório, tremelicam, ao longe, as luzinhas amarelas que alumiam a estrada e as aldeias em redor. À parte alguns cães que de vez em quando ladram, o silêncio é sepulcral e só é interrompido pelo ruído irritante das minhas falanges a atacarem as teclas de plástico do teclado. Os meus gatos já dormitam com indolência, enrolados um no outro, na almofada da cadeira junto a mim e só me vem à memória uma frase de Fernando Pessoa, daquelas que reputo bastante irritantes, por conter uma ideia forçada de otimismo: “Um dia de chuva é tão belo como um dia de sol. Ambos existem; cada um como é.” Não podia estar mais discordante, eu que sou um ser solar e adoro a luz, a primavera, o verão, os dias azuis e a florescência da natureza. A aproximação do inverno é para mim a chegada das trevas medievais do longo inverno, que auspicia uma estação de negritude, frio e chuva, plena de monocromatismos e sobretudo demasiado longa.

Os amantes dos dias chuvosos com certeza adoram quando as primeiras nuvens apontam no céu. Alguns até sentem o cheirinho da chuva chegando! Eu, definitivamente, não, mas a água que hoje cai relembra de que tudo na vida faz parte de um grande ciclo e de que somos parte de um plano maior que nós mesmos. Assim como a água que evapora, forma nuvens e depois cai como chuva, nós também estamos em constante transformação e renovação, partindo de um estado para o outro e de uma fase da vida para outra.

Esboçadas estas linhas, em claro desafio ao “horror da folha em branco” que tanto assola escritores como escreventes, concluo que pouco ou nada tinha para dizer para além destas trivialidades. Mas, seguindo a mesma linha de desplante e pleno desrespeito por conteúdos sérios e merecedores de abordagem, regozijo-me pela minha sopa de repolho, tomate e abóbora, entre outras leguminosas que para lá deitei, que está finalmente pronta e saborosa em modo repouso no meu fogão. E se há coisas que estes dias de negrume convidam, para além de outras coisas inconfessáveis que dispenso relatar, é degustar comida quentinha e calórica. Para a lareira ainda é cedo. Lá mais para meados do mês que vem não há noite que não apeteça. Mas agora, se me dão licença, vou ver o telejornal e aterrar na realidade do orçamento que não existe e da pandemia que não acaba, pois por estas bandas já bolsei demasiadas palavras redondas.



quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Consenso e Conflito


As lutas contínuas desgastam-nos, envelhecem-nos, separam-nos. Prefiro de longe o consenso ao conflito, a concórdia à guerra. E quando discordo em absoluto de alguém, inamovível e inconversável, regra geral, deixo-o falar sozinho.

Evito pessoas inconciliáveis, que nunca dão o braço a torcer. Sempre que possível, evito o conflito, a escalada originada por uma discussão, que, não raro, descama na irracionalidade e no débito de descargas emocionais absurdas, desajustadas e ocas, proferidas apenas com o fito de magoar.

Nessa fase, aquilo que parecia ser à partida uma saudável troca de argumentos, um desajuste que se queria ver ajustado, transforma-se numa espiral de agressividade.

Naturalmente, por defeito meu, que suspeito tenha a ver com a verbosidade enfática com que defendo certas teses, acontece que muitas pessoas sentem um prazer quase mórbido em me contrariar. Não que a atitude de contra argumentar, a clivagem, seja pouco salutar, ou construtivamente incorreta. Antes pelo contrário - E não foram raras as vezes em que, à conversa com pessoas muito mais sensatas e lúcidas do que eu, depois de alguma introspeção, me tenha forçado a mudar de pensamentos e atitudes - O cerne da questão é outro.

Refiro-me naturalmente à guerrilha em que rapidamente se pode transformar uma troca de argumentos contrários e inconciliáveis. E as tensões são sempre superiores quando as principais linhas de clivagem se situam no plano da moral, ou no âmago das formas primárias de subjetivar que respeitam a cada um de nós.

Quando a discussão tem por temáticas realidades mundanas, as tensões são indubitavelmente mais baixas, pois a capacidade negocial e conciliatória é maior. O que eu rejeito liminarmente é a querela fácil e brejeira e o transbordar agressivo de quem, por recusar ficar na 'mó de baixo', independentemente da justeza das ideias que contradita e apenas porque sente a sua estima maculada por um argumento que julga lhe está a ser imposto, reage com desproporcionalidade.

Todos queremos ser inovadores, donos da razão, seres únicos, dotados de uma armadura moral e de uma estrutura de pensamento assertiva. A natureza humana assim nos fez, dessa maneira formatada e irrevogável.

Eu sou, sobretudo, um homem de paz, de mimos e de amor, assumidamente lamechas, embora tenha um feitio assaz complicado. Sou temperamental e agridoce: tanto fervo em pouca água e descampo, como caio na lisura. Acho que vou envelhecer irremediavelmente assim.

Gosto do bom humor e da doçura. Detesto a contenda e a crispação; e muitas vezes as minhas atitudes de 'fuga', e uma certa não sociabilidade, são confundidas com cobardia.

Há justamente quem pense que para mantermos íntegra a nossa personalidade, para nos sentirmos valorizados como pessoas, devemos ter sempre pronta na ponta da língua, uma resposta implacável e demolidora, como fora uma espada apta a ser desembainhada, perante um argumento ou uma crítica que nos desagrade.

Deixo essa gloriosa tarefa para os fazedores de opinião que ganham a vida participando em debates e contendas. Tenho uma estrutura de pensamento, arquétipos morais, vícios, preconceitos, contradições, tiques, e não sei quantos mais defeitos, com mais de meio século de sedimentação.

Admito e agradeço que me mostrem o outro lado do espelho, me façam mudar de opinião, me coloquem num lugar onde a forma como perspetivo as coisas suporte um olhar diferente e me conduza a conclusões opostas. Não tenho é pachorra para corridinhas para ver quem chega em primeiro lugar, destilações frustres, contendas onde a regra é ganha o que berrar mais alto os seus argumentos e for capaz de colocar a voz duas oitavas acima.

Em troca desta consciente abdicação, aceito para a minha vida um acrescento de solidão, uma sociabilidade mitigada e uma seletividade cada vez maior na forma como escolho aqueles com quem interajo no tempo e no espaço - aquele que resta depois do trabalho, das minhas leituras, da minha escrita, da minha música, dos meus pensamentos.

Depois dos meus tão queridos desertos de solidão, viro-me naturalmente para aqueles com quem tenho empatias, os que admiro e os que amo.




terça-feira, 25 de outubro de 2022

Leiria a nova Torre de Babel

Na parte da manhã, aproveitando uma pausa nas hostilidades decretadas pela tempestade Beatrice, que chegou com tormentas e ventos uivantes, fui ao centro da cidade fazer algumas diligências corriqueiras. Deixei o automóvel a cerca de mil metros de distância da Baixa e dei corda aos sapatos. Sempre que posso, mexo-me e, não sei se de tanto exercício físico, se alguma maleita me assola, estou magro como um cão escanzelado. Levava comigo um guarda-chuva gigantesco, farrusco como o meu Lionel, sob o qual podem abrigar-se três pessoas com o meu porte; e, às costas, uma mochila azul, a minha novíssima aquisição, que ainda destila o odor característico da loja do chinês: um cheiro intenso e impregnado a naftalina misturado com perfumes indizíveis, mas igualmente desagradáveis.

Leiria regurgitava gente, tal a quantidade de pessoas que deambulava pelas ruas. Desde que aqui moro, a cidade transformou-se. Em 2006, quando vim para cá residir, ainda era uma urbe tranquila, com pouco trânsito e muito menos pessoas. De urbe de médio porte e com acentuados traços provincianos, a cidade do Lis tem paulatinamente vindo a transformar-se numa espécie de Torre de Babel. Excluindo as repartições públicas, os Bancos e alguns sectores específicos do comércio, na maioria das atividades, é raro não sermos atendidos por um cidadão ou cidadã brasileiro. Li algures num jornal da região que chega uma média semanal de trezentos brasileiros ao distrito de Leiria.

A Lei dos Estrangeiros foi recentemente mudada e a vida foi facilitada para os nossos irmãos que cruzam o Atlântico rumo a Portugal à procura de dias melhores. Desde que sejam pessoas do Bem, venham para trabalhar e construir um futuro melhor para si e para as suas famílias, na parte que me toca, são bem-vindos. Quem vivendo num país como o Brasil, pleno de corrupção, desigualdade social extrema e insegurança, não almejaria de ter uma vida melhor? Esta mescla cultural que junta brasileiros, venezuelanos, ucranianos, paquistaneses, indianos, chineses, timorenses e europeus de todos os países que compõe o mosaico da União Europeia, é um acrescento cultural imenso que é ofertado ao nosso país. As contribuições para a Segurança Social aumentam, o deficit crónico de mão-de-obra é colmatado e sustido o envelhecimento acentuado da nossa população, uma vez que, na sua maioria, os imigrantes que escolhem a pátria de Camões para morar são jovens. O fator negativo, a contra face que existe em todas as situações, é uma eventual imigração de pessoas indesejáveis, tais como criminosos e parasitas sociais, daí ser necessária uma politica de imigração responsável e atenta. O contrário disso é, não tenhamos dúvidas, o principio do fim do modelo societário a que estamos habituados e em que gostamos de viver.

Comecei por tomar um café num dos estabelecimentos mais conhecidos da cidade e fui atendido por uma simpática brasileira, morena e bonitinha, que, após pagar a despesa, me desejou um resto de dia feliz. Revigorado pela amabilidade da menina, subi um piso e fui ao sapateiro. Emagreci de tal forma que tive de fazer mais um furo no cinto e precisava comprar uma argola de cabedal da mesma cor. Adivinhem a nacionalidade do sapateiro? Sim, brasileiro, isso mesmo! O bate-sola, expedito e falador, como culturalmente são a maioria dos brasileiros, resolveu na hora o meu problema e já não ando com o cinto a baloiçar no ar como uma cobra tonta. Vi-me e desejei-me para recordar o que ainda faltava fazer. Enquanto fazia um reset à minha memória, entrei no Pingo Doce mais próximo para comprar alguma mercearia em falta e a menina da caixa registadora que me atendeu também era brasileira. Entretanto, à saída, fazendo a limpeza do espaço exterior, deparei-me com uma senhora, provavelmente ucraniana, a julgar pelo loiro do cabelo, os olhos azuis intensos e um indisfarçável ar eslavo, No interior do supermercado havia mais brasileiros do que portugueses. Os portugueses de gema começam a rarear pela cidade e, provavelmente, muitos deles estão em vias de emigrar para a Suíça ou outro país que lhes ofereça melhores condições de vida. A nós, emigrantes, sucede exatamente a mesma coisa que aos imigrantes que escolhem o nosso país para viverem. Muito provavelmente, a grande maioria, alinha na base da pirâmide social com a agravante que, não sendo europeus, aguardam vez no SEF para fazer uma manifestação de interesse para obter um título de residência.

A hora do almoço aproximou-se e dei uma espreitadela no telemóvel para ver se havia novidades dignas da minha atenção. A proteção do vidro estalada entristeceu-me pela inestética, mas, ao mesmo tempo, fez-me lembrar que se não fosse eu ter protegido o aparelho com essa película miraculosa, já teria gasto mais de cem euros num vidro novo. Decidido a resolver essa situação e conformado com a inevitabilidade de que, quando andamos pela rua, encontramos sempre forma de gastar mais alguns euros, entrei na loja de um paquistanês que vende e repara telemóveis. O empregado, um jovem de tez escura e olhos largos e negros, confirmou-me que o vidro não sofrera nenhum dano e tratava-se somente de substituir a película protetora e. por seu conselho, complementar com uma capa mais dura e resistente. Terminado o serviço perguntei-lhe se tinha multibanco, pois eu não estava prevenido com a quantia suficiente para pagar. Respondeu que não, mas que existia uma ATM em frente e, caso não tivesse dinheiro, só voltando ao Pingo Doce. Disse-me que eu podia levar o telemóvel comigo.

Constatei que não havia mesmo dinheiro na ATM mais perto e voltei à loja para informar o senhor que teria mesmo de voltar ao Pingo Doce para levantar dinheiro. E assim fui e de novo regressei à Fixmobile para pagar a despesa. Descarado como sou e falador nato como os brasileiros, não resisti entabular conversa com o senhor paquistanês. Quis saber alguma coisa sobre a forma como veio para Portugal e o que achou do acolhimento no país. Fiquei a saber que se chama Naim, tem quarenta anos, chegou a Portugal em dois mil e doze e teve ajuda de muitas pessoas, portugueses santos, pois viveu anos de grande carestia. Tudo lhe deram: comida, roupa, conforto e dinheiro. Disse-me que cerca de setenta por cento dos portugueses são boas pessoas e não são racistas, mas já foi muitas vezes vitima de alguma espécie de segregação em virtude das suas deficiências na língua, origem e cor da pele. Naim disse-me também que hoje felizmente tem uma casa e um negócio próspero, embora já tenha sido diversas vezes roubado. Apesar de tudo continua a acreditar na natureza boa do homem e acha que o mal é uma doença e uma exceção. Finalmente, perguntei-lhe - não consegui resistir : - porque é que tinha confiado que eu voltava para lhe pagar o dinheiro e não quis ficar com o meu telemóvel? ele respondeu-me: - por causa do seu olhar. Fiquei perplexo. Então, nos casos em que foram ao multibanco e não regressaram para pagar ele não adivinhou isso pelo olhar, perguntei? Ele deu-me uma resposta que me deixou intrigado. Disse-me que, sim, tinha julgado que não voltavam, por causa do olhar, mas ainda assim deixou-os ir.









domingo, 23 de outubro de 2022

O vendedor da "banha da cobra"


Das muitas profissões que desapareceram, motivadas pelo abre olhos que os novos tempos trouxeram à população em geral, a que mais saudades me deixa é a do vendedor da "banha da cobra".
O vendedor da "banha da cobra" não é uma personagem de histórias de ficção, como muitos jovens da atualidade pensam. O vendedor de banha da cobra existiu efetivamente e arrecadava imenso dinheiro pelas terras por onde passava.

Todos sabemos que a banha da cobra não serve para nada, mas a convicção que esse vendedor transmitia, através duma oratória bem estudada e estruturada, convencia muita gente sobre as capacidades infinitas dos milagrosos medicamentos que apregoava.

Sentado na cadeira do tempo, recuo meio século e dou por mim, criança, fascinado no meio de uma multidão, composta sobretudo por donas de casa e reformados, junto ao velho mercado de Almada.
Visualizo, junto ao mercado da vila (Almada só foi elevada à categoria de cidade em 1973), um homem bem parecido, trajando um fato azul escuro com riscas brancas e uma gravata com cornucópias douradas, grossos anéis de ouro enfiados em vários dedos e doses excessivas de Bill Cream no cabelo. Está em cima de uma cadeira (por vezes, sobre o estrado de uma carrinha) que lhe serve de púlpito improvisado, para melhor despejar a sua oratória. Tem um microfone (nos tempos mais arredados usavam um megafone, o que tornava a cena ainda mais feliniana) tapado por um lenço (artefato importante, pois aparava os perdigotos que iam largando, à medida que se empolgavam no discurso) preso por uma armação que lhe deixa as mãos libertas para melhor gesticular e mostrar os produtos que apregoa.

Alega, com veemência, que o conteúdo das saquetas que tem dentro das várias malas abertas que o ladeiam, tudo curam: impigens, mau-olhado, torcicolos, urticária, febre dos fenos, dentes, nervos, escleroses, artroses, entorses, diarreias, sarampo, escarlatina, depressões, espinhela caída, terçolhos, verrugas, cravos, desmanchos, problemas renais e/ou figadais, entre outros.

A certa altura, num passe de mágica, surgindo do nada, exibe numa das mãos um grande boião de vidro com umas enormes pedras esverdeadas e negras dentro; e, de seguida, outro boião, um pouco maior do que o anterior, com aquilo que parece ser uma pequena cobra esverdeada conservada em formol - como aqueles animais que observámos nas aulas de Ciências da Natureza.

A populaça está extasiada e escutam-se gritos de sentido horror e espanto. O vendedor está ao rubro, pois sente que finalmente tem o povo nas mãos. A manipulação começou a surtir o efeito desejado e o clímax foi atingido.

"Minhas senhoras, meus senhores! Estas pedras foram retiradas do ventre de uma rapariga com 20 aninhos. Ela queixava-se com fortes dores na barriga e nenhum médico lhe conseguia valer. Os pais dela gastaram toda a fortuna que tinham e correram tudo o que era hospitais! Após tomar estas saquetas milagrosas durante uma semana, começou a expelir estas pedras. Depois, como se não bastasse, expeliu finalmente esta cobra, que vossemecês estão a ver, que a estava a comer por dentro! E é este remédio que vos quero oferecer. Não custa nem 20, nem 15, nem 10! Custa apenas cinco escudos, e quem levar dois leva um totalmente de graça. Um para aquele senhor, outro para aquela menina... e enquanto eu vou lá à frente receber o dinheiro, a minha mulher vai lá atrás distribuir as saquetas..."

De repente toda uma multidão se empurra e acena com uma nota de 20 escudos, tudo para ser gasto em saquetas. Completamente suado, com a face rubra do desgaste e a voz rouca, resta ao vendedor da "banha da cobra" ajudar a sua esposa no espoliamento do incauto povo, disposto a levar quatro saquetas ou mais, para um tratamento mais eficaz.

Tanto quanto se sabe, nunca um vendedor de "banha da cobra" foi alguma vez acusado de lesar a saúde pública e é sabido que pagavam licenças camarárias, para uso dos espaços das feiras, como qualquer outro comerciante.

O conteúdo das saquetas, pelo que sei, era simples farinha moída que, tal como o Melhoral, não fazia nem bem nem mal. Mas o efeito placebo devia funcionar, pois escutei casos, relatados à minha mãe, de pessoas que dizem ter melhorado das suas maleitas depois de fazerem um tratamento completo.
Nunca mais vi nenhum vendedor da "banha da cobra", figura tão usual nos mercados e feiras dos anos 60. O mais parecido que conheço são os pastores das Igrejas Evangélicas que por aí pulsam, com as suas gravatas berrantes, fatos de corte datado, mas com formas muito mais subtis e sofisticadas de comunicação.

A promessa de cura de todas as enfermidades, a vida em esplendor que auguram para todos os que neles acreditem, acontece depois da multidão estar hipnotizada com o seu "dom da palavra", artes manipulatórias de pobres de espírito, cativos na orfandade da sua parca inteligência. É nesse momento de irracionalidade e êxtase, que os crentes se despojam do parco dinheiro que possuem, em troca de uma cura ou de um milagre redentor nas suas vidas.

Os vendedores da "banha da cobra", transmudados noutros personagens que se lhes assemelham, sempre hão-de existir, pois faz parte do roteiro do mundo a sempiterna capacidade manipulatória dos mais fortes sobre os fracos de espírito. E nesta coisa de enganos, a fronteira entre o licito e o não licito é ténue. Não há salvação para quem quiser ser enganado. É deixá-los ir, como dizia o outro...




sexta-feira, 21 de outubro de 2022

A nova complicómetra para lavar



Há mais de 20 anos que me governava com a minha velhota máquina de lavar roupa Philips Whirlpool, completamente manual, com o botãozinho dos programas que se rodava e fazia aquele trec trec trec reconfortante. Até à ferrugem, que já a estava a consumir como um tumor, eu me afeiçoara. Não lavava a quente desde o princípio de incêndio no termostato, ocorrido faz algum tempo, e durante as centrifugações (mais pareciam erupções vulcânicas), não raro, quase vinha ter comigo ao escritório aos saltos pelo corredor. Com o rodar dos anos, a Philips ganhou uma cor pérola, como os dentes de um fumador inveterado, longe dos anos áureos em que resplandecia brancura. Mas, como acontece na vida biológica, também as máquinas têm um fim.

Ontem, relutante, comprei uma máquina de lavar moderna, daquelas que têm música catita a anunciar o início e o fim dos ciclos de lavagem, com 40 programas (só vou utilizar um, talvez dois, o resto são futilidades), ecrã azul luminoso, abertura para colocar peças de roupa esquecidas sem desfazer o programa, que promete poupar muita energia e água e me obrigou a decifrar um livro de instruções pleno de generalidades e muito pouco facilitador. As legendas que vão desfilando no ecrã estão todas em inglês (a outra opção, pasme-se!, é o dinamarquês) e tudo é automatizado, o que deve desencorajar pessoas com iliteracia nas novas tecnologias ou desconhecimento da língua de Schakespeare a comprar uma lavadora dos tempos modernos.

Detesto ter de ler livros de instruções e não sou particularmente fã das novas tecnologias. Lido com elas porque tem de ser, porque já não se vendem eletrodomésticos sem os complicómetros do costume, que, de resto, fazem as delícias dos taradinhos por este género de coisas. Gosto de utensílios simples, robustos e fiáveis, com as essencialidades para um desempenho sem rococós. Já me disseram que quando avaria a centralina de um bicho deste calibre, mais vale comprar uma complicómetra lavadora a estrear, porque o preço da peça não compensa a reparação.

Longe vão os tempos em que via a empregada lá de casa a lavar as roupas no tanque de cimento com sabão macaco ou azul e branco. Só mais tarde, no final dos anos 60, veio finalmente a almejada máquina de lavar roupa (durou mais de 30 anos na casa paterna), uma Miele made in Germany, que custou uma fortuna na época.

Não sei se alguma aversão que dispenso às máquinas de lavar roupa terá a ver com o facto de a minha gata angorá, a Fô, branquinha, com nariz rosa e almofadas das patinhas da mesma cor, ter morrido asfixiada dentro do tambor dessa máquina. Como todos os felídeos, a bichana era metediça e, em má hora, lembrou-se de ir dormir a sesta para dentro da Míele. A empregada não reparou e fechou a porta. De manhã acordei com os gritos lancinantes da minha mãe.
Com 13 anos de idade, lembro-me que foi o meu primeiro grande desgosto. Novas ou velhas, malditas sejam as máquinas de lavar roupa!




quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Premonições

 Ao longo dos séculos, um número incontável de videntes previram pragas, doenças, epidemias, tumultos, guerras, revoluções, entre outras desgraças, nomeadamente, o fim do mundo. Umas, por coincidência ou não, concretizaram-se, outras nem por isso. O fim da Humanidade já foi profetizado múltiplas vezes e, afinal, ainda continuamos por aqui.

Não me recordo de nenhum vidente moderno ter profetizado os números da lotaria ou, sequer, o dia e hora da sua própria morte. Nas coisas para si mesmos mais importantes, todos falharam, ou não quiseram arriscar a premonição.

Michel de Nostredame, um cidadão francês nascido no século XVI, geralmente latinizado como Nostradamus, foi médico e astrólogo de Catarina de Médicis e tornou-se um vidente de renome aquando da publicação do seu livro mais conhecido Les Prophéties, uma coleção de quase mil quadras poéticas supostamente prevendo eventos futuros.

Tentar decifrar o que Nostradamus previu é algo difícil, devido à ambivalência e aos aspetos místicos contidos nas suas quadras, mas quem fez a exegese dos textos garante que nos mesmos encontram-se previstos uma série de acontecimentos que tiveram lugar nos séculos que se seguiram à sua morte.

Os intérpretes dos seus versos garantem que Nostradamus previu, entre outros acontecimentos: a Revolução Francesa, a ascensão de Hitler, a morte de J.F. Kennedy, o governo ditatorial de Muammar Khaddafi e Saddam Hussein, bem como o atentado às torres gémeas em Nova Iorque e o aparecimento de Osama bin Laden.

Como as profecias de Nostradamus são muitas vezes vagas e enigmáticas, elas podem ser facilmente interpretadas para se adequarem a diferentes eventos ao longo da História. A escrita enigmática — e muitas vezes má tradução do francês medieval original — significa que é fácil especular o que realmente Nostradamus queria dizer. Mas, como em tudo na vida, acredita quem quer.

Segundo li hoje, na secção das "coisas fantásticas" de um reputado jornal, para 2022 o famoso vidente previu o aumento dos preços dos bens alimentares - que efetivamente tem vindo a concretizar-se - e, para o próximo ano, antecipa um grande conflito que poderá mudar o mundo para sempre.

Talvez Nostradamus tenha sido um dos maiores flibusteiros da História e os seus delírios oníricos tenham sido aproveitados, ao longo dos tempos, para efabular acontecimentos extrapolados das suas previsões. Nós, igualmente no século XVI, também tivemos o Bandarra cujas premonições dariam origem ao Sebastianismo e à figura do “Rei Encoberto”, bastante presente na obra de Fernando Pessoa.

Não podendo o homem prever o seu futuro, que muitos acreditam estar escrito nas estrelas e ser um segredo que somente a Deus pertence, existe muitas vezes a necessidade de se acreditar em algo metafísico que confira sentido ao nosso presente, ao devir e à nossa própria existência como seres vivos.

O que estiver para acontecer sucederá, independentemente de previsões oníricas ou delírios de videntes acontecidos há seiscentos anos atrás. A nossa frustre incapacidade de prever contrasta com a certeza de quem tem o poder de comandar os destinos da nossa existência. Muitos acreditam que é Deus. Eu acredito no Bem e no Mal e sei que ambas as forças se digladiarão até à eternidade no seio dos homens, porque sempre assim foi e sempre assim será.




terça-feira, 18 de outubro de 2022

O buço da avó Marina



Anda para aí uma grande polémica motivada pelas palavras de um jovem professor que se insurgiu contra o facto de certos pais obrigarem as crianças a beijar os avós. Eu próprio, enquanto criança, fui alvo dessa contrariedade e confesso-me vítima de tal violência; e, como tal, não posso deixar dar o meu total apoio à tese do docente.

No meu caso, acontece que não se tratava apenas de um simples beijo, pois a dita senhora, há mais de 50 anos falecida, tinha um buço avantajado e enchia a minha pequenita face, alva e rosada, de beijos que me picavam e repugnavam.

O sacrifício era de tal modo tremendo, que eu fazia birras sempre que a íamos visitar, pois já sabia que ia ser brindado com tal saraivada de ósculos pegajosos.

Estávamos numa época em que a depilação já era regularmente praticada. O depilatório Taky, presente nos anúncios televisivos, era maioritariamente utilizado (não existia a diversidade comercial dos dias de hoje), mas não por mulheres septuagenárias de certa condição social.

O pelo no corpo da mulher, tornou-se uma questão mais política do que estética no último século. Nos anos 60 era comum entre as mulheres que se consideravam feministas e em 1978 Patti Smith pousou na capa do seu álbum Easter mostrando as axilas por depilar.

É óbvio que a minha septuagenária avó não sabia o que era o feminismo, nem perfilhava nenhuma destas tendências. Não se depilava simplesmente por achar a prática desnecessária.

Decretar afetos, obrigar alguém a simular uma manifestação de afeto que não possui, se não é uma violência cometida contra alguém - com a agravante de ser uma criança indefesa - que outro nome lhe dão?

Fonte da foto: Internet
(rosto de pessoa desconhecida)


sábado, 15 de outubro de 2022

Pé de gesso



Sempre que coloco a roupa na máquina, nem sempre as meias seguem o seu par e depois fica bastante complicado fazer as correspondências, mas penso que encontrei uma solução para a recorrente perda de um dos pares. Desde há um tempo a esta parte, só compro 3 tonalidades de meias: preto, azul escuro e branco (estas últimas somente para o ginásio) e sempre todas da mesma marca. Como é que não pensei nisto há mais tempo ?! E estive eu hoje mais de 3 horas a tentar encontrar os pares correspondentes, entre um emaranhado de meias de diversas qualidades, tonalidades e feitios.
 
Quando a paciência não sobra, junto dois pares parecidos e a coisa até sai disfarçada. Afinal, preto é preto, branco é branco e azul escuro é azul escuro. E, para mais, quem se dará ao trabalho de olhar para as minhas meias?
 
A era do "pé de gesso" e da calça demasiado curta já lá vai. Nos dias atuais, desde que ficou chique usar fato Armani com sapatos desportivos, a foleirice ganhou outros focos e um "pé de gesso" até seria de novo bem vindo para fazer estremecer os padrões instalados. A moda começa sempre por uma irreverência...



sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Falar com os outros

 



É um hábito que tenho enraizado e dificilmente dele abdicarei. A propósito de qualquer assunto do dia-a-dia, gosto de entabular conversas com estranhos. Sempre achei que isso favorece o bom relacionamento social e é uma forma de dizermos aos nossos semelhantes que, apesar de não nos conhecermos, eles não nos são indiferentes. Acho absurdo e desumano as pessoas cruzarem-se nos transportes públicos, no supermercado e noutros locais onde se concentram seres iguais a nós e agirem como se estivessem sós. Ignoramo-nos, desviamo-nos uns dos outros para não haver a possibilidade de um mínimo contacto físico, como se os nossos semelhantes tivessem peçonha. Se existe uma convenção social entranhada - e creio que infelizmente assim é - que nos obriga a não comunicarmos com estranhos eu estou definitivamente na bancada da contracorrente. Nem sempre fui bem compreendido e as minhas espontaneidades já conheceram reações de grande desconfiança, mensagens tácitas de atitude inconveniente da minha parte, ou mesmo absoluta frieza.

Acabei de chegar do supermercado onde costumo fazer as minhas compras e iniciei uma breve e interessante conversa com a senhora que me atendeu na secção das comidas prontas. Sou um grande adepto do pronto-a-comer, pelo prático da questão e, agora mais do que nunca, em face do gás, eletricidade, água e detergente que se gasta cada vez que se confeciona uma refeição. Feitas as contas, eu que sou uma nulidade em aritmética e ciências afins, cheguei à brilhante conclusão que, para uma pessoa sozinha, fica mais barato não cozinhar em casa. E foi esse precisamente o mote inicial da nossa troca de ideias.

Fiquei a saber que a senhora mora perto de mim, tem o marido reformado por invalidez, com uma doença grave que o impede de se deslocar sem o apoio de canadianas e ela mesmo é uma grande consumidora de refeições pronto-a-comer, porque não lhe resta tempo para cozinhar. Falámos sobre o brutal aumento do custo de vida em face da guerra e de como vamos fazer face ao repentino aumento dos preços em todas as áreas. Ambos concluímos que as pessoas têm de se preparar psicologicamente – fazer um mind reset, como se diz em algumas áreas de pensamento – para abdicar de gastos e consumos não essenciais à sua existência: dispensa de férias caras, gastos desnecessários e, no limite, optar pelos transportes públicos e/ou meios de locomoção elétricos, não poluentes e económicos, inclusive abdicando definitivamente do carro.

Muitas pessoas com quem interajo no quotidiano, parecem estar alheias do facto de que se encontra em curso uma guerra na Europa, com uma escalada diária do conflito, sendo que a probabilidade de a Nato se envolver diretamente no confronto com a Federação Russa é cada vez mais viável. Infelizmente, não se vislumbra nenhuma saída que seja aceite por qualquer uma das partes envolvidas, daí a paz ser quase uma miríade, algo impossível de alcançar. Os ódios, as mágoas e a sede de vingança, durarão por longos anos, mesmo depois de a guerra terminar. As pessoas ausentam-se do conhecimento das notícias ou ignoram propositadamente o desenrolar dos acontecimentos, para se protegerem de situações de stress. Essa não é e nunca foi a minha forma de agir perante situações agudas. Face a momentos graves, e foram muitos os que aconteceram no decurso da minha vida, num primeiro instante, paraliso e pareço incapaz de agir ou tomar decisões, mas depois torno-me racional, pragmático, assertivo e sobretudo rápido.

Viver, se me fosse pedida uma definição, diria que é simplesmente escolher, pelo menos sempre que nos seja permitida essa opção. Estamos sempre a fazer escolhas: vou para a direita, para esquerda, recuo, avanço, faço isto, faço aquilo? A nossa vida é fruto das nossas escolhas e dos acidentes que aconteceram independentemente das nossas decisões. Mas o grosso da vida que temos é o resultado das escolhas que fizemos.

Eu sempre optei pelo combate, pela sobrevivência, adequando os comportamentos e escolhas conforme o curso da vida, mantendo-me com aquilo que posso ter e abdicando do desnecessário em prol do essencial. Mas julgo que qualquer pessoa minimamente racional pensa desta forma. Não se trata de nenhuma proeza, mas o facto de morar sozinho e auto bastar-me desde os 17 anos, trabalhando de dia e estudando à noite, deu-me uma capacidade de resiliência enorme. A maior lição que podemos colher, superior a quaisquer valências profissionais, diplomas ou habilitações literárias, é nos dada pelo ato de viver longos anos. O tempo é sempre o maior mestre. Todas as dificuldades que passei ao longo da minha vida fizeram-me sofrer, mas eu não seria a pessoa que sou hoje se não tivesse passado por esses tormentos. E esse é o maior desiderato de todas as coisas: o lado positivo que sempre existe.

Comunicativo como estou, depois de vir do supermercado, ainda parei num estabelecimento de comida brasileira, que vai inaugurar hoje a 10 metros da minha casa, o “Snack-Bar Brasil” – um franchising, o terceiro estabelecimento com esta marca que abre na cidade – para falar com o proprietário que me acolheu calorosamente e convidou para ir lá jantar hoje: uma picanha, com arroz, feijão preto, abacaxi e farofa, com um desconto especial, pelo facto de ele me achar uma pessoa simpática e ser seu vizinho.

Afinal, sempre existem mais pessoas que adoram falar com estranhos e nessa forma de estar os nossos irmãos brasileiros são exímios, ou não fossem eles um dos povos mais tagarelas e festivos do mundo.




quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Tenho uma mosca na sopa



Tenho a casa cheia de moscas. A principio pensei que podia ter alguma comida em putrefação, algures escondida num canto da cozinha, talvez roubada por um dos meus felinos. Mas não. Nada encontrei. Mudei as pedras das caixinhas dos animais, higienizei tudo, mas as moscas adentravam-se cada vez mais. Cheguei a pensar que era vítima de alguma praga que alguém me lançara, parecida com uma das dez famosas pragas do Egito, que o Deus de Israel infligiu, para convencer o Faraó a libertar os hebreus maltratados pela escravidão.

Na quarta praga lançada sobre o Egito, o cenário foi muito semelhante ao que se passa pelas minhas bandas: as moscas escureceram o ar e atacaram homens e animais e a terra foi infestada desses insetos. O Faraó, segundo me recordo, concordou em libertar o povo e o Senhor retirou a praga, mas assim que percebeu que a praga havia cessado, voltou atrás na sua decisão, aprisionando o povo hebreu. Era um grandessíssimo filho da mãe.

Apesar desta coincidente parecença com o relato bíblico, achei que estava a efabular e deixei de arquitetar mais patetices. Afinal quem me poderia querer tanto mal a ponto de me lançar uma praga de moscas para dentro de casa? Eu não sou nenhum Faraó e nunca fiz mal a hebreus ou a quem quer que fosse.
Foi então, por mero acaso, que li no "Região de Leiria" que nas últimas semanas os moradores dos Andrinos, não muito longe da minha zona, vivem atolados em moscas. Diz-se que andaram a estrumar terras para as bandas da Ribeira do Sirol, daí a presença horrível desta mosqueira toda. Felizmente, a explicação tinha uma origem racional. As moscas adoram dejetos de animais e fazem vida disso. São gostos que não se discutem.

Em tempos idos, tive uma gata cuja especialidade era comer moscas junto às janelas. Tinha desenvolvido uma técnica infalível: apanhava-as com uma pata que de imediato levava à boca e comia. Mas estes meus três felídeos são uns inúteis e só pensam em ron rons, comer e dormir. As suas capacidades de caça evaporaram-se por completo.

Conclusão: ou começam de imediato a fumigar as terras infestadas, ou fecho as janelas todas de casa e vou estudar um processo de extermínio para esta moscaria, tipo Solução Final. Fica prometido.

Leiria, 13102020




terça-feira, 11 de outubro de 2022

A mania de limpezas



A mania de limpezas é algo muito mais comum do que imaginamos. A preocupação existe quando se caracteriza como uma disfunção psiquiátrica, como o Transtorno Obsessivo-Compulsivo.

Para saber qual o limiar entre o saudável e o patológico, a palavra-chave é equilíbrio. Tudo o que é excessivo está fora da normalidade.

Ao longo do meu trajeto de vida, foram imensas as pessoas que conheci sofrendo de transtornos deste tipo e congéneres; e, diga-se em abono da verdade, que uma empregada da limpeza padecendo desta sintomática, seria a funcionária ideal para trabalhar em minha casa: curtia o que fazia e ainda ganhava algum dinheiro. A cereja em cima do bolo.


domingo, 9 de outubro de 2022

Em memória do Amadeu



Hoje, a propósito de nada, lembrei-me do Amadeu Ferreira, de quem fui colega na Faculdade de Direito de Lisboa e dos seus celebérrimos apontamentos baseados nas aulas do Prof. Dr. Rui Pereira (aquele que foi ministro da administração interna, esse mesmo), que eram tão bons a ponto de várias gerações de alunos terem estudado a cadeira por eles. Há casos, inclusive, de alunos que se limitaram a ler a dita sebenta e passaram na disciplina com uma nota nada vergonhosa.

Recordei o Amadeu como o melhor aluno de Direito da minha geração (no 4º ano da licenciatura já era monitor convidado) e que mais tarde se tornou advogado e professor da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Foi também um dos principais responsáveis pela promoção da língua mirandesa e traduziu várias obras importantes da literatura portuguesa para o mirandês. Era presidente da Associação de Língua e Cultura Mirandesas (ALCM), presidente da Academia de Letras de Trás-os-Montes, vice-presidente da Comissão de Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), membro do Conselho Geral do Instituto Politécnico de Bragança e, desde 2004, comendador da Ordem do Mérito da República Portuguesa.

Quis o destino que em 2015, com 64 anos de idade, um tumor cerebral, por ironia, instalado precisamente na parte corporal mais insigne deste vulto da inteligência e cultura portuguesa, lhe colhesse a vida.

Não sei o que teria sido de mim sem os apontamentos de Penal I do Amadeu que, dizem, eram um misto de aulas desgravadas do Prof. Rui Pereira, com interpretações e glosas feitas com mestria pelo insigne aluno.

Gravar as aulas plenárias dos professores ( com o consentimento dos mesmos) e depois passar o conteúdo das mesmas para o papel, era uma tarefa hercúlea, mas, com um pouco de sorte, durante um ano letivo completo, calharia uma única vez a uma parelha de alunos. Claro que todos colhiam o beneficio, pois fazia igualmente parte da tarefa fornecer cópias a todos os alunos que fizessem parte do grupo e receber, do dito grupo, as cópias das outras aulas.

Era um sistema (quase) perfeito mas ninguém podia falhar.

Mas, como em tudo na vida, há sempre um lado anedótico: A colega X, tendo ficado encarregue de gravar e desgravar uma determinada aula - a cidade universitária é constantemente sobrevoada a baixa altitude por aviões comerciais, pois fica na trajetória de aproximação à pista principal do Aeroporto da Portela - não conseguiu descortinar determinadas frases e sempre que havia lapsos do texto, desenhava um avião. E foi assim que, um dia, cerca de 80 alunos que integravam um grupo de alunos-desgravadores, recebeu a fotocópia de uma aula desgravada, com frases interrompidas a meio por desenhos de aviões. Era hora de ponta, disse ela. Não sei se a desculpa humorística teve uma boa receção.


sábado, 8 de outubro de 2022

Santiago de Compostela - A Meca dos Caminheiros


Alguns caminheiros peregrinam até Santiago de Compostela todos os anos e fazem-no por trilhos diversos, com partida desde os lugares mais díspares. A expressão "Bom Caminho!", useira e vezeira nestas lides, é, lugar-comum, o desejo que se expressa quando se saúda um andante em viagem peregrina até à Meca dos pedestres religiosos.

Nunca fui em peregrinação a Santiago de Compostela porque nunca senti esse apelo. Mas já fui a Fátima a pé, desde o Reguengo do Fetal, pelo meio dos campos e adorei, simplesmente pela experiência de atravessar a serra. A minha religiosidade é próxima do zero, embora acredite no Bem e no Mal, na possibilidade de optarmos por um ou por outro e também no meu pendor para, regra geral, escolher o primeiro item em detrimento do segundo.

Por muito que não o admitam, há uma indisfarçável chamada religiosa na vontade de fazer "O Caminho". Sei de quem já o fez 20 vezes e tenho um amigo que se encontra precisamente a fazer o 15º ou 16º percurso pedestre até à mítica cidade sagrada galega.

Fazer “O Caminho”, na sua essência simbólica, não difere das “peregrinações” motards até aos Picos da Europa, a Góis ou a Faro, das caminhadas até Fátima em dias de celebração das presuntivas aparições ou das idas em excursão a Lourdes ou a Jerusalém. O ato de fazer qualquer destes percursos encerra em si uma marca identitária grupal, como se fora uma espécie de rito necessário para se afirmar a pertença a uma determinada tribo. Há muçulmanos que se endividam por largos anos para custear uma única ida a Meca, na Arábia Saudita.

Já fui desafiado várias vezes para fazer “O Caminho” mas não creio que alguma vez venha a sentir esse apelo. Prefiro, outrossim, as caminhadas em grupo pela serra, com risadas e muitas fotografias, a terminar em piquenique sob a copa frondosa de um qualquer castanheiro.

No entanto, “Bom Caminho!”, também é o meu desejo para alguns amigos e companheiros destas andanças que deambulam por estas horas em estradas sagradas, lá para os lados da terra dos galegos.

Sin embargo, soy optimista porque dadas las circunstancias estamos todos en el buen camino.

Vaya Con Dios!