quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Ser cusca

Curiosidade é o que move o ser humano a querer saber um pouco a mais do que ele já sabe. Somos quase todos curiosos e isso dá um enorme jeito em termos de sobrevivência. Desde pequeninos usamos o que isso tem de inato para conhecermos melhor o mundo que nos rodeia, para aprendermos os sinais de perigo e os de gratificação e também para chamarmos a atenção das pessoas e estabelecermos relações. São sempre os mais curiosos que se interessam por mais e diferentes coisas, que exploram e levam por diante empreitadas e obras que passam ao lado dos que, permanentemente, consideram que o que acontece à sua volta não lhes diz respeito. É bom ser curioso. Mas se uma parte substancial da nossa curiosidade nos ajuda a crescer e nos serve no sentido de sermos mais e melhor, uma outra parece supérflua e até mesquinha. Prende-se a detalhes insignificantes, toma a parte pelo todo e, a partir daí, galopa na construção de histórias improváveis e maledicentes. É essa parte da nossa curiosidade que nos faz calar para escutar a conversa da mesa ao lado entre pessoas que nunca vimos, que nos faz abrandar, quase parar, para ver se do tal acidente resultaram vítimas mortais. Interessamo-nos, disfarçadamente, por aspectos que, juramos a pés juntos, não têm interesse nenhum. Seremos voyeurs? Cuscas? Criaturas infelizes com vidas demasiado triviais para nos comportarmos desta forma horrenda? Frequentemente polarizamos a vida e os acontecimentos em duas categorias simplistas e reducionistas: de um lado os contentinhos bem cheirosos a quem só acontecem coisas boas e, do outro, os desgraçados da sorte enredados em tragédias e cenas tristes. O que é certo é nunca nos contentamos com as partes triviais e desapaixonadas das informações que nos chegam às mãos. Precisamos sempre de apimentar a verdade com algo fascinante e indecoroso; e fazemo-lo, dizemos nós, por mera curiosidade.

Viajar de avião há 57 anos



Há 57 anos atrás, viajar de avião tinha requintes que nem nas classe mais caras de hoje existe. O meio aéreo banalizou-se, o espaço entre os assentos foi gradualmente diminuindo e a simpatia das hospedeiras e dos comissários de bordo remeteu-se a meros esgares profissionais. Surgiu uma nova doença associada aos menos abastados que viajam de avião: O Síndrome da Classe Económica.

O Síndrome da Classe Económica, assim chamado devido à sua associação com viagens prolongadas em espaço confinado, como é o caso da classe económica ou turística nos aviões, consiste no aparecimento de trombose venosa profunda durante ou pouco tempo após uma viagem prolongada.

Aconselha-se aos useiros e vezeiros do low cost (como é o meu caso), que tenham de andar de avião em viagens transcontinentais, evitar uma imobilidade prolongada. Se possível, estando o corredor desimpedido, façam jogging entre os momentos em que servem as refeições.

Saltar por cima das hospedeiras pode ser uma boa opção, ou mesmo jogar ao eixo.



Swissair first class 1961 (DC8), no tempo em que voar era um verdadeiro luxo

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Atomic Rooster na Piedade



Os Atomic Rooster, uma banda de rock progressivo britânica, cujo primeiro baterista tinha sido Carl Palmer, à data já membro do prodigioso trio, Emerson, Lake & Palmer, atuaram em 1973 na Cova da Piedade. Foi a primeira banda de rock estrangeira a cujo concerto assisti ( os Black Sabbath e os Procol Harum estiveram em Cascais no mesmo ano e o Elton John em Vilar de Mouros ).

Antes do 25 de Abril, os concertos pop/rock, aqui no jardim à beira mar plantado, eram escassos e cada vez que uma banda estrangeira atuava, a juventude endoidecia por completo e os bilhetes esgotavam muitos meses antes do evento.

Em 1973, tinha eu apenas 12 anos de idade, na noite em que teve lugar o concerto, juntamente com alguns amigos, conseguimos ludibriar o porteiro e entrámos à borla no salão de festas da SFUAP (Sociedade Filarmónica União Artística Piedense).

Foi o meu primeiro contacto com: guedelhudos com tiras de pano na cabeça a segurar o cabelo; barbudos com os pulsos decorados com pulseiras de missangas; umbigos à mostra; calças à boca-de-sino; maxi casacos de ganga; saltos altos; bornais militares a tiracolo; óculos coloridos à John Lennon, tudo mesclado com o forte odor de uma substância que pairava no ar, mas que à data não conseguia identificar.

Fiquei junto ao palco a admirar os músicos, estarrecido com o som estridente das guitarras, com os fumos de palco e os jogos de luzes, sempre com um olho na entrada, não fosse um dos porteiros descobrir um puto no meio daqueles hippies fim de estação da Cova da Piedade.

Nenhum de nós foi descoberto, até porque a sala estava demasiado cheia e na penumbra. Creio que naquela noite perdi grande parte da minha inocência. Os meus pais nunca souberam que eu havia estado num concerto rock. Pensavam-me em casa de um amigo. E ainda bem.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Tolan o encalhado



Nos princípios de 1980, eu morava e trabalhava em Lisboa e estudava à noite na Universidade, mas utilizava com alguma regularidade os cacilheiros, uma vez que nunca me desprendi da cidade de Almada. Numa manhã de nevoeiro do mês de fevereiro, que bem recordo, o porta contentores Tollan, de bandeira britânica, chocou, em pleno estuário do Tejo, com um navio sueco, arrastando para a morte 4 dos seus 16 tripulantes.

Seguiram-se uma longa saga de tentativas frustradas de remover o navio e durante quase quatro anos, o Tollan permaneceu encalhado em frente à principal praça lisboeta e entrou no anedotário nacional.

Chegou-se ao desplante de se publicarem mapas turísticos da cidade de Lisboa com a representação do Tejo e do navio encalhado.

O nome Tollan, na sua versão aportuguesada, Tolan, deu nomes a cafés, restaurantes e a bares de diversão noturna lisboetas e entrou no léxico como sinónimo de "encalhado".

Os jantares de solteiros passaram, por exemplo, a designar-se como "jantares tollan", já que coloquialmente "estar encalhado" era um termo que se aplicava àquelas pessoas que permaneciam no estado de solteiro, fosse por vontade própria ou por um qualquer infortúnio.

Com a remoção do navio das águas do Tejo e o aparecimento de novas gerações desconhecedoras deste episódio, o termo Tolan, com a significação que à data tomou, caiu em desuso.

Voltámos ao useiro e vezeiro termo "encalhado", para designarmos de forma torpe as pessoas que estagnaram no celibato.

Em 1963, tinha eu dois anos de idade, um violento incêndio destruiu, na sua quase totalidade, a última nau portuguesa da chamada "Carreira da Índia", a fragata D. Fernando II e Glória, mantida ao serviço da Marinha Portuguesa entre 1845 e 1878.

A fragata encontrava-se fundeada em pleno estuário do Tejo, no Mar da Palha, pois servia então de sede à Obra Social Fragata D. Fernando, uma instituição destinada ao acolhimento de rapazes oriundos de famílias de parcos recursos económicos e que ali recebiam instrução escolar e treino de marinha.

Já em adulto, durante algum tempo, insisti com o meu falecido pai, dizendo que me recordava de estar ao seu colo, na varanda da casa de Almada, a assistir ao incêndio. Ele dizia que era impossível que eu com dois anos de idade tivesse memórias, mas o detalhe com que descrevi o momento vivido acabou por o convencer. Na verdade, nem ele nem ninguém, me tinha contado que eu assistira ao incêndio ao seu colo e à intervenção dos bombeiros nas águas do Tejo.

Sabe-se que por volta de um ano e meio e três anos, a capacidade intelectual das criança aumenta e vai melhorando a memória aos poucos. Aos quatro anos, segundo a melhor doutrina, as áreas responsáveis pela memória amadurecem e começam a existir lembranças.

O estranho de tudo isto é que dificilmente consigo recordar episódios recentes, mas retive, ainda que em esboço, muitas cenas passadas na minha mais precoce infância.

Após o incêndio, o remanescente da fragata foi rebocado para uma área fluvial com pouca navegabilidade e permaneceu enterrada no lodo durante quase trinta anos. Somente a partir de 1992 foi submetida a um aturado processo de reconstrução, a tempo de ser um dos ex libris da Expo de 1998.

Ambas as histórias comungam um facto que é um naufrágio, mas o encalhamento da nossa fragata, contrariamente ao caso do Tollan, não deu origem um neologismo coloquial, do tipo: "Então, ainda estás D. Fernando e Glória?" - para significar "ainda estás solteiro/a?

Porventura, o cizentismo do regime e a crónica falta de sentido de humor dos bimbos que manipulavam os mecanismos da censura, em tudo o que respeitasse a "brincar com símbolos nacionais", jamais permitiria que alastrasse uma piada de nenhuma conveniência política.

O episódio da fragata D. Fernando II e Glória foi, em alternativa à jocosidade, aproveitado pelo regime para exaltação de um dos símbolos nacionais, a bandeira. Os órgãos de comunicação social da época, veicularam a notícia da história de um bombeiro que, vendo o maior símbolo nacional em risco de ser consumido pelas chamas, com risco da sua própria vida, conseguiu arrear a bandeira e guardá-la em lugar seguro.

O bombeiro foi naturalmente condecorado e, anos mais tarde, confidenciou que tinha sido imerecida a honraria, pois tudo não tinha passado de uma história fabricada.

Foi preciso Abril chegar para se poder brincar com naufrágios, Tolans e encalhados.