terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Corpo de nuvem



Não sei se é do teu olhar infindo de tempo e água e sede, se do teu cabelo louro e lento e longo de sedas que ignoro, se do teu cheiro leve de pétala e mares e desejos, se do imaginário toque de tua pele no preciso instante em que quase cruzámos os dedos e os afetos e os beijos – ou, ainda mais lentamente, os olhares. Sim, acho que, pelo menos, cruzámos os olhares, não?

Confesso outra vez, confesso. Confesso que apenas sei que desespero sem saber para onde olhar, em cada vez que te lembro. Sem saber, sequer, como te lembrar. A não ser nas dores. Sim, és tão linda que dóis no olhar. Sabes?

E as palavras - de que servem hoje e amanhã e depois e seja quando for, quando não são escutadas por ninguém, nem sequer pelas falésias, também elas sempre esquecidas pelos ecos e tempestades e, tal como as palavras, secretamente sussurradas à margem de ti e de teu corpo de nuvem?

Já agora – então e os sonhos, os desejos, o imaginar-te para além, muito para além de nua, quase tu, quase sede, quase pão, quase água, quase olhar? Que farei com tudo isso?
É que és linda, sabes?

Leiria - 2007



Aula de condução



Tirei a carta numa Escola de Condução em Almada, em 1979, num Volkswagen 1300 igualzinho a este. Como eu já sabia conduzir, o instrutor, logo pela manhã, despreocupado com as lições que achava desnecessárias, parava sempre o carro junto a uma tasca, longe dos circuitos habituais de aprendizagem, e tratava de se atestar.

Dizia para eu ficar caladinho e que aquilo ficava só entre os dois. E depois fumava e cantarolava alegremente, ao mesmo tempo que lançava piropos às donzelas que seguiam pelo passeio.

Era um homem bonito, com patilhas e bigode, ar de engatatão, camisa florida, com golas tipo asa delta, tudo tão na moda no final dos anos 70.

Na época, abrir o vidro do carro e lançar palavras de charme, mesmo de teor picante, às mulheres que passavam, não só era consentido como tido por um comportamento masculino normal, viril até.

Ele deixava-me conduzir até à Costa da Caparica, para ver o mar, e eu, naturalmente, ficava muito feliz. No fundo, dávamo-nos bem e éramos cúmplices. Era a minha aula extra, que ele não consentia a mais ninguém.



quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

O sentido das coisas



Na busca filosófica do sentido das coisas, creio que tenho aprendido muito mais com quem não estou de acordo do que com aqueles em quem o consentimento é fácil de mais, apesar de não enjeitar possuir uma propensão natural para o polemismo, para a contracorrente.

Um dos grandes desafios da vida é, sem dúvida, conseguir a tal capacidade de dialogar com sensibilidades díspares, com pessoas que têm formas de ver as coisas diametralmente opostas a mim.

A aproximação fraternal dos aspetos irredutíveis do outro e, em simultâneo, o não abandono das convicções mais profundas sobre a forma como encaro o viver, é um estágio de maturidade e bondade que, confesso, ainda não consegui de todo alcançar.

Quando lá chegar, se tal algum dia acontecer, sei que serei uma pessoa bastante melhor, mas até lá terei de me contentar com a miséria da minha mais que banal imperfeição. Entretanto, limito-me a viver a vida como sou capaz.





terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Ser cusca


Curiosidade é o que move o ser humano a querer saber um pouco a mais do que ele já sabe. Somos quase todos curiosos e isso dá um enorme jeito em termos de sobrevivência. Desde pequeninos usamos o que isso tem de inato para conhecermos melhor o mundo que nos rodeia, para aprendermos os sinais de perigo e os de gratificação e também para chamarmos a atenção das pessoas e estabelecermos relações.

São sempre os mais curiosos que se interessam por mais e diferentes coisas, que exploram e levam por diante empreitadas e obras que passam ao lado dos que, permanentemente, consideram que o que acontece à sua volta não lhes diz respeito.

É bom ser curioso. Mas se uma parte substancial da nossa curiosidade nos ajuda a crescer e nos serve no sentido de sermos mais e melhor, uma outra parece supérflua e até mesquinha. Prende-se a detalhes insignificantes, toma a parte pelo todo e, a partir daí, galopa na construção de histórias improváveis e maledicentes.

É essa parte da nossa curiosidade que nos faz calar para escutar a conversa da mesa ao lado entre pessoas que nunca vimos, que nos faz abrandar, quase parar, para ver se do tal acidente resultaram vítimas mortais. Interessamo-nos, disfarçadamente, por aspetos que, juramos a pés juntos, não têm interesse nenhum.

Seremos voyeurs? Cuscas? Criaturas infelizes com vidas demasiado triviais para nos comportarmos desta forma horrenda? Frequentemente polarizamos a vida e os acontecimentos em duas categorias simplistas e reducionistas: de um lado os contentinhos bem cheirosos a quem só acontecem coisas boas e, do outro, os desgraçados da sorte enredados em tragédias e cenas tristes. O que é certo é nunca nos contentamos com as partes triviais e desapaixonadas das informações que nos chegam às mãos. Precisamos sempre de apimentar a verdade com algo fascinante e indecoroso; e fazemo-lo, dizemos nós, por mera curiosidade.




terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Simplício Bocejou



A luz da tarde morre nos telhados dos prédios fronteiriços, engalanados por dezenas de antenas, que fazem vagamente lembrar os ramos de alguns quadros de Miró. Ao fundo, o Tejo, mulher vaidosa, veste-se com um rasto de luz doirada que quase toca a outra margem. Na Ponte 25 de Abril, silhuetas negras, pontos minúsculos, movem-se em direções opostas numa constância de relógio de pêndulo. No estuário do rio, são várias as embarcações que se movem no vagar do final da tarde deixando atrás de si um rasto de espuma branca na água esverdeada.

A vista da estreita varanda é o luxo maior do meu apartamento. Trata-se de um prédio pombalino de cinco pisos, com escadas de madeira que rangem como velhas cheias de ciática, forrado de azulejos cor de esmeralda, testemunha silente de milhares de histórias. Pouco a pouco, os candeeiros públicos acendem uma luz trémula, que se mistura com os fiapos dos raios de sol, a que se juntam o chiar dos carros elétricos e o matraquear corpulento dos motores diesel dos autocarros da Carris, que sobem a custo a íngreme Calçada. Sei que não tarda é noite. Estamos no inverno.

Bocejo ao mesmo tempo que coço a cabeça. Encontro-me diante do monitor luminoso do computador e pareço hipnotizado com a luminescência do écran. Não me surgem ideias e o prazo para a entrega da crónica semanal que escrevo para o jornal regional aproxima-se do fim. Mais uma falha da minha parte e é certo que arranjam outro cronista para preencher a pequena coluna que ocupo há vários anos. O redator nunca me perdoou o facto de, por duas vezes, ter utilizado textos meus, embora adaptados, mas já publicados noutros espaços, para o preenchimento da minha crónica semanal. A única exigência que o jornal me faz é a de que disserte sobre temas atuais e controversos, se possível, sem fazer desvios acentuados à linha editorial do semanário, que é manifestamente de esquerda. A temática, de resto, é da minha lavra, bem como o curso que quiser imprimir à escrita.

A liberdade de expressão é bastante apreciada pela equipa de redação, mas Elias, o redator-chefe, nunca se esquece de me relembrar que as crónicas, além de terem de ser textos curtos, devem tratar de acontecimentos corriqueiros do quotidiano; e por estarem tão extremamente conectadas ao contexto em que são produzidas, com o passar do tempo perdem sua “validade”, ou seja, ficam fora do contexto.

Elias tem um doutoramento em Comunicação Social e é respeitado entre os jornalistas que compõem a equipa do semanário. Apesar de não ter grande verve como escritor, todos reconhecem nele metodologia e precisão e uma capacidade de liderança indiscutível. Eu próprio lhe reconheço bastante mérito nesse campo.

Nunca se é totalmente livre, cogito, e basta que haja uma qualquer relação de dependência, ainda que mínima, para que o resultado da ação não dependa inteiramente de nós. O escritor, o artista, o criador, o compositor, integram profissões onde, porventura, a liberdade é sobejamente maior do que noutros ofícios. Desagrilhoados dos horários rotineiros e escrupulosos que ocupam a maioria da população ativa, os criadores recebem uma espécie de carta de alforria que os liberta, para poderem fazer nascer algo e lhe darem forma e substância. E essa espécie de espaço vital, onde o tempo e o modo são decididos pelo criador, parecem ser condições impreteríveis para que algo possa acontecer. Mas os deadlines existem, seja nos jornais ou nas revistas. Muito para além do entendimento e respeito pela condição do criador, há negócios a decorrer e as empresas movem-se segundos os objetivos que lhes estão na origem: gerar o máximo de lucro dentro daquela esfera de atividade.

Lendo várias entrevistas com Lobo Antunes, que considero o escritor mais contracorrente de todos os que integram o panorama atual da gente que escreve e publica com sucesso, parecemos ficar com a impressão de que ele é completamente livre de redigir e publicar o que lhe dá na real gana e pouco se importa com as críticas ou com o volume de vendas dos seus livros. A sua conhecida arrogância e sentido de humor cáustico assim o indicam. Mas não é de todo verdade. Antunes é bastante sensível às críticas e sofre, mais do que por nunca ter alcançado o almejado Prémio Nobel da Literatura, pelo facto dos seus livros não terem o nível de vendas de outrora. O enfant terrible das letras portuguesas, que fazia parar o país literário cada vez que saía um livro seu, que tinha milhares de exemplares vendidos e edições esgotadas em poucos dias, desapareceu. E desengane-se quem pensa que os seus livros de crónicas se vendem melhor. Quem gosta das crónicas de António Lobo Antunes vai lê-las na revista Visão e não compra o livro. E quem sou eu, Simplício, junto à vasta sombra de Lobo Antunes?

Olho de novo para o écran do computador e reparo que a página deixada em branco - ausentara-me por breves instantes para me deleitar com a vista magnífica que desfruto da pequena varanda, da mansarda que ocupo no quinto piso - apresenta agora uma série de caracteres indecifráveis: “qwedddddddddsa btyy”. Mefistófeles, o gato persa que comigo partilha a vida e a habitação, esteve a dar marradinhas no teclado e deixou impressa a sua pegada felina.

Olho para o relógio e fico assustado. São 18h00 e antes das 21h00 a crónica tem de estar pronta e revista para ser enviada por mail. No dia seguinte, sábado, sai o jornal e a minha crónica habitual ocupa uma coluna que preenche cerca de um terço de uma das páginas centrais do semanário. Penso em temas da atualidade aos quais possa acrescentar um olhar pessoal, mas tudo me parece de uma banalidade confrangedora. O pensamento apenas me fluí para devaneios sem consistência capaz de gerar um texto.

O meu nome de baptismo, Simplício, sempre foi motivo para chacotas, mas, com o passar dos anos, que também nos faz importar cada vez menos com aquilo que possam pensar de nós, habituei-me a ele e agora até gosto. Antigamente era comum os pais colocarem nomes estranhos e complexos aos filhos, enfeitados de vários sobrenomes, pois na época isso representava poder, glamour e riqueza. Tinha sido por insistência da minha mãe que o nome Simplício me havia sido posto. A minha mãe era uma fervorosa admiradora dos filmes portugueses dos anos 40 e Simplício Costa (António Silva), mais conhecido por Costa do Castelo, um homem preguiçoso mas um grande guitarrista, era de longe o seu personagem predileto. Então a sua única criaturinha tinha de ser baptizada com o nome do seu herói cinematográfico.

Sou sexagenário, embora aparente ter menos idade. Moro numa mansarda arrendada, distante do centro da cidade e todos os dias apanho o elétrico para me dirigir à Baixa. Vivo de uma magra reforma que os anos de serviço como professor me proporcionam. A escrita, paixão antiga, levou-me um dia ao jornalismo, embora nunca tivesse tido carteira profissional. Desde muito novo, comecei a enviar textos para os jornais, para algumas revistas e editores, sempre com a esperança de um dia ver um dos meus escritos publicados. E foi assim que as coisas aconteceram. De colaborador ocasional, tornei-me cronista efetivo e ganhei um espaço próprio no semanário.

Preciso de me concentrar na crónica mas sinto-me incapaz de tal exercício. Nisto o telefone toca - um trim trim que mais parece o som da campainha de uma bicicleta pasteleira, daquelas que antigamente circulavam pelas aldeias – e interrompe os sons habituais que comigo coabitam o apartamento. Atendo o telefone mas do outro lado desligam. Não raro, fazem-me isto e parece que alguém quer propositadamente perturbar-me. Já pensei em indagar junto da operadora sobre a possibilidade de detetar a autoria dos telefonemas, mas o número nunca se encontra identificado.

Algures, num dos andares abaixo do meu, escuta-se o arrastar de móveis e, mais longínquo, o choro de birra de uma criança. Quando a imaginação falha, qualquer ruído distrai-me e funciona como uma ótima desculpa para a falta de ideias. Fico levemente irritado.

Habito já há bastantes anos o piso cimeiro, que sofreu obras recentes por parte dos proprietários. A renda é coisa simbólica e de vez em quando os proprietários escrevem-me cartas com ofertas generosas para que deixe o apartamento vago. Nunca aceitei e o destino das cartas é invariavelmente o caixote do lixo. Sinto-me incapaz de enfrentar mudanças e somente o pensamento de tal cenário me apavora. A inquilina originária era a minha última companheira, falecida há quase uma década e eu herdei a condição de arrendatário.

No rés-do-chão direito mora uma velha solitária que todos dizem estar louca há muitos anos, devido ao desgosto provocado pela morte do seu único filho, em terras angolanas, na guerra ultramarina. Ninguém sabe ao certo o seu verdadeiro nome, pois, sempre que se referem a ela, dizem: “olha, lá vai a maluca!”. É comum falar sozinha até altas horas da noite, rir e barafustar com pessoas invisíveis. A sua última loucura é atirar vasos e pedras para cima dos carros que se atrevem a estacionar debaixo das suas janelas. Na polícia, as queixas amontoam-se, mas nada acontece à velha. E ela ri, ri-se de tudo. Certo é que ninguém que a conheça se atreve a estacionar o automóvel ao alcance dos seus arremessos.

O rés-do-chão esquerdo só é habitado durante o verão. A proprietária, uma viúva herdada, cujo marido enriqueceu em terras sul-africanas, passa o inverno em Cape Town e só regressa a Lisboa para passar os meses do verão. Amante do calor, recusa enfrentar o inverno português, a chuva, o frio e os dias cinzentos. Talvez por estar habituada a residir num país extremamente violento, mandou instalar uma grade de ferro, pintada de branco, na entrada da porta do seu apartamento. Não tardaram denúncias na Câmara, porque se trata de um edifício histórico e houve alterações não autorizadas. Dizem por aí, pelo que me confidenciaram no café fronteiriço, que todos julgam ser eu o delator, só porque sabem que escrevo coisas direitinhas e fui professor. Ao que parece, a denúncia também foi escrita de uma maneira muito direitinha. Uma cartinha toda composta e detalhada que chegou à Câmara Municipal. Já cá esteve o fiscal.

No primeiro andar direito mora uma família ucraniana. A mulher trabalha a dias desde que se levanta até à noitinha, enquanto o marido, que responde a toda a gente que lhe pergunta “não tem trabalha”, beberica imperiais e taças de branco na taberna do Mirmécio. Os filhos são cinco, um deles já nascido em Portugal, e a Sevtlana desunha-se mais de dez por horas por dia nas limpezas para alimentar os filhos e as beberagens do marido. Ela tem 35 anos mas aparenta ter mais de 50. No leste europeu, não é incomum o alcoolismo fazer parte dos agregados familiares e ela parece aceitar com alguma placidez o seu destino. Vejo-a sempre bem-disposta e sorridente. Aos domingos, a família passeia junta e ela agarra-se ao marido por um braço, com uma ternura maternal e conformista. São muito barulhentos, especialmente aos sábados à noite. Convidam metade da comunidade ucraniana residente na capital, embebedam-se, dançam, riem e fazem uma algazarra por mim audível no 5º andar. A polícia já foi chamada algumas vezes – não se sabe por quem – mas, tal como a maluca, que apedreja automóveis indiscriminadamente, para além das ameaças e dos pedidos de desculpa, nada acontece.

O primeiro andar esquerdo está desabitado. Dizem que um velho que ali morava morreu e o filho, seu único herdeiro, tem a casa ao abandono desde então. A casa nunca mais foi usada ou limpa e já passaram cinco anos. De vez em quando, um cheiro nauseabundo desprende-se lá de dentro e invade as escadas. Ditoches de mau gosto que circulam no tasco do Mirmécio, atribuem o odor pestilento aos restos mortais do velho, que se calhar nunca chegou a ser enterrado. Ninguém foi ao seu funeral, nem mesmo o filho. Vivia sozinho e sozinho morreu naquela casa. Dizem, entre taças de branquinho, que o velho está há cinco anos a apodrecer na cama.

No segundo andar direito mora uma professora do ensino básico, cinquentona, feia como a noite, com uns dentes dianteiros demasiado salientes que não lhe cabem dentro da boca. Mesmo com a boca fechada, os dentes ficam a morder o lábio inferior e quando coloca baton, ficam pintados de vermelho Ferrari os dentes e os lábios. Sempre que me cruzo com ela nas escadas, assusto-me com a forma como ela me sorri: a boca escancarada e os dentes em posição de abocanhar o que esteja ao seu alcance. Evito-a, até porque não simpatizo com as mesuras com que me trata e as tentativas para entabular conversação. É solteira, divorciada, ou viúva, ninguém sabe ao certo e lá no Mirmécio também se especula que ela deve ter abocanhado todos os homens da sua vida, daí estar só.

No segundo esquerdo, mora um casal de lésbicas. São ambas quarentonas e trabalham num ministério qualquer para os lados das avenidas novas. São inquilinas pacatas e não produzem ruídos desagradáveis. Cumprimentam toda a gente com cordialidade, mas mantêm recato sobre as suas vidas. Possuem dois pincheres castanhos em miniatura e todos os dias de manhã cedo levam-nos à rua, ao jardim que fica ao fundo da rua, para fazerem as necessidades. Por vezes, ao final do dia, repetem o mesmo percurso. Andam sempre juntas, seja para ir às compras ou sair a algum lado. Somente o seu ar arrapazado, o cabelo curto, a ausência de maquilhagem ou quaisquer adereços femininos, denunciam as suas preferências sexuais. Tanto quanto me lembro, nunca escutei alguém dizer mal delas.

O terceiro andar direito e o esquerdo estão ambos vazios e em obras. Consta que foram comprados por um emigrante que está em França e que se prepara para pedir balúrdios pelas futuras rendas. No quarto andar direito, mora uma violinista. É uma rapariga jovem, com cerca de 20 e poucos anos. Deve ser estudante, pois entra em casa bastante tarde e durante a manhã não se escuta qualquer ruído. Deve dormir até tarde. Todos os dias, perto da hora do almoço, oiço-a debitar escalas durante mais de duas horas. Somente depois desses exercícios consigo escutar algumas melodias. Não recebe visitas e parece ser uma jovem bastante solitária. Nunca a vi acompanhada.

O quarto andar esquerdo é habitado por um velhote que dizem ser pintor e poeta. Raramente me cruzo com ele, mas a sua figura, de uma magreza excessiva, o olhar penetrante, o nariz adunco e o cabelo totalmente branco, fazem-me lembrar o Mário Cesariny, uma das maiores vozes da nossa poesia e o principal representante do surrealismo português. Não sei o nome do inquilino do quarto esquerdo, mas imagino-o alguém como o Cesariny, que nunca teve medo da liberdade e deu de barato qualquer verniz para se apresentar aos seus contemporâneos tal qual era. Assumidamente excêntrico, provocador e homossexual.

Por último, nesta pequena mansarda, ensanduichado entre os restantes inquilinos e o telhado, moro eu. Devo ser o personagem menos interessante de todos quantos habitam este prédio, construído após o terramoto de 1755, a mando de um tirano marquês, que um dia mandou cuidar dos vivos e enterrar os mortos. Aposto que nenhum dos inquilinos alguma vez pensa em mim, ou sequer se importa em indagar quem eu sou, como vivo, quais os meus gostos, desgostos e anseios. As nossas vidas não se cruzam, exceto nas escadas do prédio. Ninguém sabe, por exemplo, que um dia dirigi uma decadente revista literária chamada Pena e que escrevo compulsivamente para tentar manter a vida nos eixos, criando projetos e rascunhando livros que nunca vou terminar. Que a escrita, para mim, mais do que uma forma honesta de ganhar uns trocos, é o modo natural que utilizo para expulsar os demónios que atormentam a minha cabeça. Não sabem que sou um homem extremamente solitário, mas que apesar de toda a solidão, busco também refúgio no humor. Que me satirizo a mim mesmo de forma cruel, quando exponho o ridículo da minha vida nas personagens que vou entretecendo ao longo das minhas histórias. Que toda a minha escrita reflete claramente um homem abandonado, talvez traído pelo seu próprio orgulho e personalidade intempestiva. Mas que lhes importaria saber isso? O que mudaria?

Vou ter de fazer das tripas coração e inventar uma treta de um texto qualquer para ser publicado como mais uma das minhas crónicas. A realidade é que o dinheiro da reforma é pouco e tudo o que vier a mais dá-me imenso jeito. Desconfio que o meu senhorio se prepara para me aumentar a renda. Já me falou nisso diversas vezes. Nos últimos tempos, na baixa lisboeta, têm surgido imensos incêndios com origem misteriosa e todos em prédios antigos, com rendas muito baixas. Não saem a bem saem a mal. Diz-se que são os proprietários que pagam a alguém para pegar fogo aos imóveis como forma de pressionar os inquilinos a saírem. A maioria dos arrendatários é idosa e paga rendas totalmente desajustadas face às condições do mercado. O alojamento local está na ordem do dia e a mira do lucro é o leit motiv, que faz com que sociedades de investimento estrangeiras cada vez mais adquiram imóveis na baixa pombalina.

Tenho medo que me peguem fogo à casa e que eu morra cremado vivo aqui dentro. “ O próprio viver é morrer, porque não temos um dia a mais na nossa vida que não tenhamos, nisso, um dia a menos nela”, escreveu Pessoa. Mas Pessoa não gostava muito de viver, ou, pelo menos, nunca se preocupou em prolongar a sua vida, com sacrifício dos vícios e de tudo o que lha abreviava. Enquanto não atravessarmos a dor da nossa própria solidão, continuaremos a nos buscar em outras metades, não forçosamente do sexo oposto. Mas, mais importante do que viver a dois é antes ser um e isso é aquilo que eu tento ser, juntamente com o meu Mefistófeles, nesta mansarda cujo teto quase nos cai em cima. Quanto à crónica para o jornal, vai mesmo isto, escrito sem conteúdo planeado, que toca a reflexão pessoal, o mexerico com a vida dos inquilinos e um pavor quase absurdo que se agiganta em mim cada dia que passa: o medo de ser queimado vivo.




sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Sismo de 1969



Eu tinha 8 anos de idade, a minha família morava na cidade de Almada e na rádio disseram que era arriscado ficar em casa. Para além de uns quadros fora do lugar e uma racha numa parede, nada de grave nos aconteceu. Eram 3 horas da madrugada e fomos para o recinto da Feira de Almada, uma porção larga de terra batida sem construções ao redor. Já lá estavam muitas dezenas de automóveis estacionados e muita gente conhecida. Os adultos ficaram conversando madrugada dentro com a multidão que entretanto se começou a formar. Lembro-me que estava frio, mas levámos mantas para nos aquecermos no banco traseiro do Fiat 850. A maioria das crianças estava de pijama e muitos adultos também. Trouxe a minha coleção de cromos e alguns livros da Enid Blyton, o resto era dispensável, caso o teto ou as paredes caíssem e tudo se perdesse.

O maior receio da população era que se tratasse de uma réplica do terramoto de 1755, com 8,7 - 9 na escala de Richter, que devastou Lisboa no século XVIII. O sul, nomeadamente o Algarve, e a região de Lisboa foram as zonas mais atingidas pelo sismo de 7,9 na escala de Richter que Portugal acolheu em 1969.

De manhã cedo, regressámos a casa e nada de especial sucedeu depois disso. Morrerão 25 pessoas no país, mas a censura abafou, como era usual, tudo o que fosse dramático e desestabilizador da ordem pública. Para a mentalidade da época, vir para a rua em pijama era considerado estar em "trajes menores" e noutras circunstâncias, não excecionais, podia dar origem a uma visita à esquadra mais próxima e aplicação de uma multa.

Na véspera eu tinha completado o meu oitavo ano de existência e ainda andava embasbacado com as prendas, mas esta foi talvez a minha primeira grande experiência de vida. Foi seguramente a minha primeira pijama party.

Sobre a felicidade



Atrevo-me a dizer que toda a gente, alguma vez na vida, já foi amada. Na infância, na adolescência, na idade adulta, no liceu, na Universidade, ou até mesmo no envelhecimento, uma mãe, um pai, uma avó, um filho, uma filha, um homem, uma mulher, alguém se cruzou ou se manteve por perto, provavelmente, e amou-nos bem. É, no mínimo, uma atitude de presunção agastada querer receitar a felicidade como quem desfolha as páginas do Pantagruel, e nele encontrar mil e uma formas de fazer bolinhos de felicidade e alegria esfuziante.
O segredo da felicidade é um segredo de Polichinelo – aquela personagem clássica da Comédia Dell’arte, das farsas napolitanas e dos teatros de marionetas. Corcunda, barulhento e quezilento, é a figura do bobo da corte, sempre desbocado, dizendo o que deve e o que não deve num tom jovial e folgazão. Os segredos de Polichinelo são por isso a fingir. São farsas dos verdadeiros segredos, que, para que o sejam, devem permanecer ocultos, escondidos, indecifráveis. Qualquer segredo partilhado, ainda que não transborde uma geografia restrita e nunca chegue à praça pública, perde o essencial da sua razão de ser. Quando se partilha um segredo, alivia-se a carga, descarrega-se o peso de se ser, ou de se julgar ser, o único que sabe ou conhece aquela coisa, que é sempre terrível e oprimente, que delata alguém ou repõe uma verdade escamoteada. Entre o peso dos que contêm e se contêm de mais e a leveza dos que deixam escorrer palavras que despem a alma, deve haver uma justa medida para o que se mostra e para o que se esconde.
A felicidade depende, em parte, de condições interiores e, em parte, de condições exteriores. Todas as pessoas que gozam de boa saúde e podem satisfazer plenamente as suas necessidades julgadas elementares, à partida, deveriam ser felizes. Acontece que as coisas não se passam bem assim. A felicidade, nos humanos, é uma coisa muito rara, ao menos como estado permanente. Os animais são felizes desde que tenham boa saúde e bastante comida. Tem-se a impressão que os seres humanos deveriam sê-lo em iguais circunstâncias, mas tal não sucede. Creio que a maior fonte da infelicidade reside no desamor, nas ideias erradas que se tem sobre o mundo, erradas éticas, errados hábitos de vida que provocam a destruição desse gosto natural e desse apetite pelas coisas realizáveis de que depende afinal toda a felicidade.

Uma das principais causas da falta de gosto pela vida é o sentimento de não ser amado, ao passo que, inversamente, o sentimento de ser amado encoraja mais do que qualquer outra coisa. Por variadas razões, um homem pode, por exemplo, considerar-se uma criatura tão horrível que julgue inadmissível alguém amá-lo; pode também ter-se acostumado na infância a receber menos afeto do que as outras crianças; e pode na realidade ser uma pessoa de que ninguém goste. Mas neste último caso a origem do mal reside provavelmente numa falta de confiança em si próprio motivada por precoces infortúnios. O homem que não se sente amado pode tomar, em consequência disso, várias atitudes. Nalguns casos, faz esforços desesperados para conquistar a afeição dos outros, às vezes até por meio de atos excecionais de bondade. Procedendo assim, no entanto, tem poucas probabilidades de êxito, pois a razão da sua bondade facilmente será compreendida pelos que dela beneficiam e a natureza humana é de tal maneira constituída que testemunha afeição com maior felicidade àqueles que parecem pedi-la menos. Portanto, o homem que se esforça por conquistar afeição por meio de ações generosas torna-se um desiludido com a experiência da ingratidão humana. Nunca lhe ocorre que a afeição que procura comprar tem muito mais valor do que os benefícios materiais que oferece em troca e, no entanto, é a consciência dessa verdade que inspira todas as suas ações. Outros homens, ao verem que não são amados, tentam vingar-se do mundo, instigando guerras e revoluções ou escrevendo com a pena molhada em fel. A grande maioria, homens como mulheres, quando sentem que não são estimados, afundam-se num tímido desespero, aliviado somente por fulgores momentâneos.

O mundo é esta amalgama, lugar confuso, onde eu vivo, contendo coisas agradáveis e desagradáveis, em desordenada sequência. É-me, contudo, irreprimível esta conta-corrente de pensamento e reflexão, sobre os fluxos que julgo serem os mais importantes nesta curta experiência de viver; este percurso aleatório – viagem de ida – onde ditados tais como: «A palavra é de prata, o silêncio é de oiro», não colhem em mim o santuário devido. Já se sabe que muito mais difícil do que abrir a boca e soltar o verbo para largar frases feitas, impressões ambivalentes, palavras entre o muito e o nenhum conteúdo é guardar silêncio. Eu encaro o silêncio como uma mera pausa comunicacional, uma forma de pontuar o discurso, de terminar um assunto e partir para outro. Perdoem-me, pois, aqueles que me lêem por ainda não ter terminado este fiar de tomadas de consciência sobre os méritos e deméritos da felicidade mas, mais do que qualquer descoberta alquímica, um dos enigmas mais felizes da vida, reside no facto de encontrarmos todos os dias pessoas a quem tudo o que há de mal parece ter acontecido e, ainda assim, mais do que sobreviventes, são alegres viventes, sôfregos de vida, de bem com ela, e, de caminho, com os outros com quem se cruzam, criaturas de histórias muito banais e acontecimentos quase casuais. São pessoas para quem o caminho do Bem é uma opção consciente. Para quem não entendeu, falo-vos dos meus heróis.

Leiria, dezembro de 2011 (texto publicado originalmente num blogue e na extinta revista "Olhares")



sexta-feira, 25 de novembro de 2022

Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres.

 



Hoje assinala-se o Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres. Na verdade, todos os dias são comemorativos de alguma coisa e, na falta de um calendário maior, celebram-se vários factos relevantes no mesmo dia; alguns certamente mais importantes e justificáveis do que outros.
Não deixa de ser triste constatar que, infelizmente, a violência contra as mulheres, seja no seio conjugal, ou numa relação de namoro, apesar de uma assinalável evolução das mentalidades, proporcionada pela educação e por uma sociedade mais informada, continua a existir.

É, no entanto, sinistro constatar que a violência cometida contra as mulheres acontece quer entre jovens e/ou seniores, sejam pouco ou muito escolarizados, não poupando, na sua transversalidade, qualquer camada sociocultural.

Recordo a rocambolesca história de um médico, digno de um remake da novela gótica Jekyll e Mr. Hyde, escrita por Robert Louis Stevenson, figura de proa nos meandros sociais de uma pequena cidade, onde se emproava em cargos políticos ao mesmo tempo que praticava medicina, que sovava a mulher a ponto de um dia lhe ter partido ambos os braços. Esse sociopata, querido e endeusado pela população, figurão mestre em manipulação e embuste, chegava a dar consultas grátis como forma de se promover, com vista a atingir os seus propósitos de ambição pessoal.

O mito da “família idealizada” levou-nos a pensá-la como um lugar de afetos e de expressividade íntima, onde ninguém tinha o direito de interferir: “Entre o marido e a mulher ninguém mete a colher”. Esta idealização associada a outros mitos foi, em parte, responsável pela negligência da gravidade do fenómeno da violência exercida contra as mulheres, considerando-a, muitas vezes, como uma componente normal num relacionamento conjugal.

As nossas sociedades estão repletas de inarráveis crueldades cometidas contra as mulheres e outros membros da família. No nosso país, apesar de se supor que é um fenómeno que afeta inúmeras famílias, só recentemente é que foi colocada de forma evidente na agenda política nacional.

Há coisas que, apesar de já contar com seis décadas de existência, ainda me deixam perplexo. Como é possível um homem agredir fisicamente, ou psicologicamente, uma mulher, ainda que um facto grave, que justifique colocar um ponto final num relacionamento, tenha acontecido?
As relações amorosas devem subsistir enquanto são motivo de felicidade para ambos os intervenientes e a coragem de as terminar, quando a sua manutenção já não é desejável, não é desonra para ninguém. Assertivamente é mesmo o que se deve fazer, pois o tempo tudo sara.

Ao findarmos um relacionamento tóxico estamos dar, a nós mesmos e ao outro, a oportunidade de um reencontro com a tão desejável paz perdida. Ainda que a encontremos apenas dentro de nós mesmos.



quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Tornar-se Pessoa

 



Nos últimos meses, fruto de uma atividade que havia imenso tempo desconectado da minha vida e que entretanto retomei, tenho conhecido muitas pessoas. Em virtude do acaso ou de algum propósito metafísico que me escapa ao entendimento, retornei a um lugar do meu passado e tenho interagido com diferentes pessoas, algumas tão díspares de mim como a Lua e o Sol.

A aceitação do outro tal qual ele é, na sua diferente construção mental, prevalências, atitudes e entendimento, é neste momento, uma das tarefas mais árduas que me desafiam. É preciso (re)aprender a escutar, colocar-me no lugar do outro, praticar a humildade, refrear a soberba, rejeitar a crítica fácil, bem como a vontade de contraditar que muitas vezes me forra. Tudo na vida requer treino e uma mudança de comportamento, se por nós for desejada, não foge a essa regra.

O comportamento humano sempre me fascinou e desde muito novo que, a par dos romances da Agatha Christie, que são mini lições sobre a mente humana, comecei leituras de Psicologia. Carl Rogers, um psicólogo norte-americano, falecido nos anos 80, teve uma importância capital na minha compreensão do desempenho humano. Recordo em particular o livro “Tornar-se Pessoa”, escrito de uma forma acessível, sem os jargões técnicos recorrentes nas obras da especialidade, cuja segunda leitura possibilitou descobertas que muito me ajudaram.

Rogers escreveu que ”Ser empático é ver o mundo com os olhos do outro e não ver o nosso mundo refletido nos olhos dele” e essa é uma das mais difíceis tarefas que nos desafiam, quando lidamos com pessoas que não fazem parte da nossa matriz de afinidades habitual.

Gostar das pessoas pelo que elas são, deixando de lado as expetativas do que queremos que elas sejam, refreando o desejo de adaptá-las às nossas necessidades, é uma maneira muito mais difícil, porém mais enriquecedora de viver relações satisfatórias.

O ato de viver é dinâmico e novas experiências, diferentes abordagens, daquilo que padronizámos como sendo a nossa habitual forma de pensar e agir, podem ser colocadas em questão. E esse é por ora o meu propósito.



domingo, 13 de novembro de 2022

O prenúncio do Natal



Esta tarde andei por Leiria e depois, por um motivo fútil, tive a infeliz ideia de ir ao Shopping sabendo que era uma tarde de domingo. Duas coisas safaram-me: fui de mota e usei o autoapagamento na caixa registadora. Ainda assim, não me livrei de um oceano de gente que circulava nos corredores e áreas adjacentes, muitas vezes sem olhar para a frente e literalmente chocando com os outros passantes. De quando em quando, encontrava um português, percetível pelo acento no falar, em tudo semelhante ao meu.

Depois de ver a quantidade de pessoas que se perfilavam para pagar, pensei seriamente em repor as ninharias que tinha comprado nas respetivas prateleiras e vir embora de mãos a abanar. Felizmente para mim e para as senhoras que trabalham nas caixas registadoras, muitas pessoas ainda têm medo do papão do autoapagamento ou pura e simplesmente resignam-se a esperar numa longa fila. Eu adquiri uma cada vez mais retinta agorafobia no que respeita a Centros Comerciais e outros locais onde se reúnam muitas pessoas.

Hoje seria para mim impensável ir, como outrora, a um festival musical em recintos gigantescos e sentir aquele gozo vibrátil com os encontrões e o ruído das colunas dos sistemas PA que quase nos estouram a cabeça. Dêem-me paisagens, montanha, natureza, ar livre, vento, mar, luzes naturais, gatos no colo e performances musicais em espaços de dimensão mediana. Todo o resto dispenso.

Desde há bastantes anos, perante certos estados de espirito, aprendi a gostar do valor do silêncio ou de uma certa harmonia musical. Quando estou menos sereno se há algo que me acalma é escutar música clássica. Nada de musiquinhas relaxantes, daquelas que escutamos em elevadores ou espaços comerciais requintados, com água a correr ou passarinhos a chilrear. Oiço Chopin, mais precisamente o Noturno em Mi-bemol maior, Op. 9: n.º 2., o meu preferido, duas ou três áreas de Bach, Beethoven "Für Elise", Ravel e Vivaldi. Tenho uma playlist das minhas músicas clássicas preferidas e a minha terapia consiste em colocá-las em repeat até me sentir mais calmo. Resulta quase sempre.

No Centro Comercial, já se sente o ambiente festivo do Natal que, para muitas pessoas, é apenas uma época de consumo exacerbado. Sob o ponto de vista ecológico, é também um período em que o estímulo ao consumo provoca um maior impacto ambiental, com o desgaste de recursos e a consequente produção de resíduos: aumento do uso energético e produção de gases com efeito de estufa. São poucos os que olham para o Natal como sendo a celebração cristã por excelência e a festa em que por tradição a família se reúne; isto para aqueles que a têm.

O Natal dos shoppings é o mais triste de todos. É aquele em que as decorações são apenas um estímulo ao incremento do consumo. Porque associamos há tanto tempo o Natal a presentes e, mais recentemente, a consumo desenfreado de comida, bebida e bens de todo o género, para miúdos e graúdos? As opiniões dos historiadores dividem-se. A “culpa” pode ser dos Reis Magos que levaram ouro, incenso e mirra à criança nascida na manjedoura, mas também da generosidade proverbial de São Nicolau para com os mais pequenos ou ainda dos romanos, a quem o cristianismo, como foi sua prática corrente, poderá ter “copiado” o festival do solstício de inverno, também conhecido por Saturnalia. Seja como for, recordo com saudade os natais sem excesso de consumo, em família, com religiosidade e tradição. E esses sempre foram para mim os verdadeiros e os mais felizes.



quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Véspera

Como quase todos os seres humanos, detesto secas, longas esperas, espaços ultra congestionados, encontrões, excesso de ruído, embora reconheça que o deserto é bom para os santos. O deserto é a paisagem espiritual por excelência e a que mais se aproxima das formas puras. Só se lhe comparam o mar sem fim e o nevoeiro cerrado, que apresentam a mesma ausência de pormenor, uma matéria quase lisa em que não proliferam os elementos díspares.

Um aeroporto internacional, em período de vésperas de Natal, é tudo menos um lugar calmo. Não sei se fruto da idade, das grandes agitações que já passaram pela minha vida, cada vez mais aprecio degustar o sossego, a calma de uma sala onde apenas se ouve o tique-taque monocórdico de um relógio de parede ou Puccini em tons suaves. É nesta ambiência que gosto de escrever, ler, e meditar, que são das coisas que maior prazer me dão na vida e com as quais sempre me sentirei identificado.

É nos dias que antecedem uma grande viagem que imagino o sempiterno stress que me aguarda. Antevejo o Aeroporto da Portela, manhã cedo, com as costumeiras filas para despachar as bagagens; passageiros em trânsito, oriundos de todos os lugares do mundo, dormitando nos bancos; outros desembrulhando comidas; crianças tomadas pelo choro de um despertar matinal forçado; um vaivém de pessoas carregando malas e sacos aglomerando-se junto aos terminais dos controlos de embarque; as cafetarias, que cobram o coiro e o cabelo por um fanico de sandwiche, atulhadas com os habitantes sazonais desta enorme Babel aeroportuária.

Sensivelmente dez horas depois do enorme Airbus A 340 da Tap deixar a Portela, depois do ruído omnipresente dos quatro reactores ter-se transportado para a minha cabeça, começo a vislumbrar os montes em forma de Curva de Gauss que circundam a gigantesca Cidade Maravilhosa. O pássaro volta-se, primeiro para a direita, depois para a esquerda, e consigo vislumbrar a megalópolis plena de contrastes, onde prédios que pretendem arranhar os céus vivem paredes meias com favelas que ocupam tudo o que é morro. Em contrapartida, sei que assim que o avião pousar, volto a conviver com gente em tudo diferente do povo triste e macilento que deixo para trás e do ar cinzento e gélido do Inverno de Portugal. No hemisfério sul, o Estio está prestes a nascer e eu sou um convidado especial para assistir ao parto do Verão tropical. Levo comigo um bloco para notas e a "Caneta do Escritor das Frases Curtas", uma esferográfica que apresenta uma luzinha no topo, para escrever no escuro; mas só frases curtas, porque não ilumina mais do que três palavras compridas de cada vez. 

2007



Já fiz tudo isso



Já me queimei a brincar com uma vela; já fiz um balão com uma pastilha que se me colou na cara toda; já falei com o espelho; já fingi ser bruxo, mago, fazedor de feitiçarias medonhas. Já quis ser piloto, escritor, poeta, fotojornalista, magistrado, vendedor de combustíveis, pescador, taxista, professor. Já me escondi atrás de uma cortina e deixei esquecidos os pés de fora; já estive sob o chuveiro até fazer chichi. Já roubei um beijo, confundi os sentimentos, tomei muitos caminhos errados e continuo a gostar de trilhar o desconhecido, ainda que o mesmo me conduza ao cadafalso. Já raspei o fundo da panela onde se cozinhou o creme; já me cortei ao aparar a barba muito apressado e chorei ao escutar determinadas músicas no sossego da minha sala. Já tentei esquecer algumas pessoas e descobri que são as mais difíceis de esquecer. Já subi às escondidas até ao terraço para agarrar estrelas; já subi a várias árvores para roubar fruta; já caí mais de uma vez de uma escada. Já fiz juramentos eternos que não cumpri, escrevi no muro da escola e chorei sozinho na casa-de-banho por algo que me aconteceu. Já fugi de casa para sempre e voltei no instante seguinte [até que um dia não voltei mais].

Já corri para não deixar alguém a chorar; já fiquei só no meio de mil pessoas sentindo a falta de uma única. Já vi o pôr-do-sol mudar do rosado ao alaranjado; já mergulhei para a piscina e não quis sair mais; já bebi até sentir os lábios dormentes; já olhei a cidade de cima e nem mesmo assim encontrei o meu lugar. Já senti medo da escuridão; já tremi de nervos; já quase morri de amor e renasci novamente para ver o sorriso de alguém especial; já acordei a meio da noite e senti medo de me levantar.

Já apostei a correr descalço pela rua, gritei de felicidade, roubei rosas num enorme jardim; já me apaixonei e pensei que era para sempre, mas era um "para sempre" pela metade; já me deitei na relva até de madrugada e vi o sol substituir a lua; já chorei por ver amigos partir e depois descobri que chegaram outros novos e que a vida é um ir e vir permanente.

Foram tantas as coisas que fiz, tantos os momentos fotografados pela lente da emoção e guardados neste baú chamado coração que nem sei que mais o que por ora dizer…

Leiria, 2007

O Covid 22



Pensava eu, erroneamente, que fazia parte daquele núcleo, já objeto de estudo cientifico, que nunca teve Covid, ainda que muitas vezes partilhando o mesmo teto com pessoas infetadas. Acontece que, ainda que com o esquema vacinal completo - 3 vacinas - o bicho pegou-me. Não tenho uma certeza sustentada por uma evidência, sobre quando, onde e como fui contaminado, mas, uma vez que ando sem máscara, pode ter sido em qualquer lugar. Desconfio dos elevadores do meu prédio. Sempre os vi como incubadores de doenças do trato respiratório. Ninguém usa máscara aquando da sua utilização, o espaço é reduzido e muito facilmente as gotículas que emitimos se mantêm em suspensão no seu interior. Para adensar as minhas suspeitas, sei que há pessoas com Covid no prédio. Deixo, por isso, um aviso à navegação: usem máscara em espaços fechados, sem ventilação, mormente elevadores públicos.

Hoje é o terceiro dia- não o primeiro dia do resto da minha vida, como a canção do Sérgio Godinho, assim o espero - covidiano, para usar um neologismo do qual julgo não ser eu o pai.

Anteontem, farto de me armar em valentão, com dores imensas no ombro direito, devido a uma queda aparatosa numas escadas junto ao prédio da casa da minha mãe, tomei consciência de que: não conseguir dobrar o braço direito, nem tocar guitarra, acordar com dores a meio da noite sem conseguir dormir ainda que usando camadas industriais de reumon gel, era tempo perdido. Vencido pelas evidências, decidi ir às urgências hospitalares, ainda com a sinistra lembrança de lá ter estado 12 horas nos tempos da pandemia.

Estive 6 horas no serviço de urgência e só não se estendeu o tempo porque me dirigi às informações, onde um enfermeiro jovem, com muita má vontade, mas rendido pela minha forte insistência, me informou que eu já tinha sido chamado, pois no sistema informático constava como estando a ser atendido. Entrei no open space dos doentes com pulseira amarela e deparei-me com um cenário digno de um hospital na retaguarda de um campo de batalha. Na sua maioria idosos, os doentes gemiam, com dores ou por mero desespero e tantas eram as macas que não havia literalmente espaço para circular. Os profissionais de saúde, cada vez que queriam chegar perto de um doente, tinham de arredar as macas, por forma a encontrar espaço para conseguirem ver o paciente em questão.

Em condições diferentes, teria feito uma reclamação escrita, por negligência, mas, face ao cenário verdadeiramente bélico com que me deparei, "relevei", como dizem os nossos irmãos brasileiros e aceitei a falha da médica como plenamente justificada. Naquela enfermaria estavam muitas pessoas em condições de saúde piores do que a minha. No meio daquele autêntico caos, crível somente por quem já presenciou uma situação semelhante, consegui ser muito bem atendido por uma médica moldava, a Aline, que me prescreveu medicação. Não admira que o burnout nos profissionais de saúde que laboram nos hospitais seja tão frequente, mas não vi nenhum deles stressado com o cenário dantesco da enfermaria. Cumpriam ritualmente as suas funções, alheios aos gemidos e gritos dos doentes.

Li ontem no "Região de Leiria" que as urgências do Hospital Distrital fecharam no período noturno, estando os doentes a ser reencaminhados para outras unidades hospitalares. A falta de resposta dos hospitais públicos em Portugal, é talvez um dos maiores problemas que o país enfrenta. Fosse eu 1º ministro e tomaria uma decisão radical: alocava tudo o que fossem verbas destinadas a atividades não essenciais, à contratação de profissionais de saúde e construção de novas unidades hospitalares. Desviava o dinheiro atribuído às não essencialidades e diminuía substancialmente os ordenados de políticos e assessores. Lírico, dirão, mas as grandes reviravoltas da História, antes de serem materializadas, foram sempre sonhadas por líricos e idealistas. A maioria das situações não se resolvem por falta de vontade de quem tem poder para decidir. Veja-se a escandalosa contratação para assessor de uma ministra, com um vencimento de 4000 euros/mês, de um jovem com 21 anos de idade, sem qualquer experiência ou currículo, licenciado em Direito há apenas uma semana!

Para além da luxação grave no ombro direito, sentia dores musculares, cansaço generalizado e uma tosse seca, pelo que pedi que me fizessem o teste ao Covid. Sai da unidade hospitalar sabendo estar positivo. Nessa mesma noite, a febre chegou quase aos 39º, com tosse ininterrupta, dores musculares intensas, fraqueza generalizada, suores frios e falta de apetite. Foi mesmo o pior momento, mas felizmente estou em plena recuperação. Isto não é uma "gripezinha", como num dado tempo foi declarado por um alto responsável politico. Caso eu não tivesse o esquema vacinal completo, estaria agora, muito provavelmente, ligado a um ventilador por causa do agravamento das condições respiratórias.

Este pequeno texto tem um propósito maior que é o de agradecer às pessoas que, pelo telefone, pela rede social, através de mensagem ou publicação, desejaram as minhas melhoras. Foram muitos, muitos mais do que algum dia esperei, aqueles que se ofereceram para vir a minha casa tomar conta de mim, ir às compras ou ajudar naquilo que fosse preciso. A todos agradeci e declinei a ajuda, pois desde os 17 anos de idade que tomo conta de mim e habituei-me a fortalecer-me dessa forma. No entanto, estou na primeira linha quando se trata de ajudar o próximo e toda a vida assim fui, mas quando se trata de aceitar ajuda alheia fico bastante relutante. O meu sentido de autonomia e independência atingiu extremos e tenho de rever esta minha estranha forma de ser, só não sei como. Não sou ingrato, apesar do extenso catálogo de defeitos que possuo e tenho consciência de que o valor das pessoas, mais do que pelas palavras, mede-se pela suas ações. Constatei que, para muitos amigos, solidariedade não é uma palavra vã. De novo, o meu muito obrigado.




segunda-feira, 7 de novembro de 2022

O ascensor



"Um elevador ou ascensor é um equipamento de transporte utilizado para mover bens ou pessoas verticalmente ou diagonalmente."

Esta é a definição corrente que podemos encontrar em qualquer dicionário sobre o significado da palavra ascensor. Para quem mora em apartamentos situados acima do 4º andar, torna-se bastante complicado abdicar da sua nobre função, em especial se nos fizermos acompanhar dos sacos das compras ou outros carregos.

O elevador, nas cidades modernas, onde os edifícios destinados a habitação ou escritórios, são construídos em altura, para melhor rentabilizar a área de construção, tornou-se um acessório insubstituível. Desde a sua invenção em meados do século XIX, os ascensores passaram a ser correntemente utilizados em prédios de habitação um pouco por todo o mundo.

Os elevadores mais rápidos funcionam desde 2016 no Guangzhou CTF Finance Centre, um arranha-céus situado na República Popular da China e são capazes de atingir 72,4 km/h, subindo do primeiro piso ao piso 95 em 43 segundos. Uma velocidade de cortar a respiração!

Não restam dúvidas de que o ascensor é um bem de primeira necessidade e para algumas pessoas de mobilidade reduzida, a única forma de acederem às suas habitações.

Acontece que nos prédios onde funcionam estas primas-donnas, o contributo mensal para a prestação do condomínio é substancialmente mais elevado, pois estas caixas mágicas "the state of the art", carecem de manutenção periódica e gastam muita luz. E quando acontece uma avaria grave, o custo da reparação é regra geral muito elevado. Nestas situações, também parece ser regra, o fundo de caixa do condomínio nunca ter dinheiro suficiente para dar provimento às reparações extraordinárias, seja porque o dinheiro foi gasto noutras urgências, ou porque há condóminos que entendem não ser sua obrigação pagar mensalmente a prestação que lhes é devida.

E, já que estamos em maré de regras, também é usual os condóminos dos apartamentos situados nos pisos inferiores, mas servidos pelo ascensor, acharem que não têm por obrigação pagar reparações de elevadores porque, dizem eles, utilizam as escadas. Um argumento que não colhe, pois de acordo com o disposto no artigo 1424º nº 4 do Código Civil, só não participam nas despesas de conservação e reparação dos ascensores os condóminos cujas frações não sejam por eles servidas. Situando-se a fração no rés do chão, no vestíbulo da entrada principal do prédio, e local de onde parte o elevador, como é óbvio, os respetivos proprietários não comparticipam nas despesas com o elevador.

Os ascensores são parte comum do prédio, tal como as escadas interiores, o telhado ou os acessos. Ninguém mandou os vizinhos do 1º andar, servidos pelo elevador, furtarem-se ao uso do mesmo com exercícios aeróbicos inusitados. Se querem fazer ginástica é a todos os títulos louvável e só lhes faz bem à saúde, mas ficam desde já convidados a darem todos os dias uma voltinha de ascensor, nem que seja para justificar a parte que lhes cabe na reparação do mesmo, que esperamos seja paga voluntariamente e não através de uma ação judicial movida para o efeito.

Morar em apartamentos, é mais prático do que habitar em moradias. É mais seguro, pois estatisticamente há menos assaltos; mais económico, já que as despesas de conservação são divididas por todos os proprietários; e mais fácil de conservar e manter a limpeza no espaço habitável. Mas "não há bela sem senão".

Morar em condomínios é aceitar o risco de não conhecermos o vizinho da porta do lado ou o que mora três andares abaixo. É viver lado a lado com pessoas que são arrendatários dos apartamentos e não se importam com a conservação do prédio. É conviver com a mudança constante de vizinhos e o desconhecimento sobre a sua índole. É igualmente viver na incerteza de não sabermos se coabitamos num prédio com psicopatas - pessoas capazes de prometer por termo à nossa vida quando lhes recitamos o Código Civil e os advertimos das suas responsabilidades como condóminos.

Para evitar tudo isto só vejo uma solução: viver numa cabana no cimo de um monte, rodeado de cabras e ovelhas, horta diversificada, ar puro e pasto e nunca sair de lá. Habitar num lugar sem ascensores, vizinhos quezilentos, gente que involuntariamente acercamos da nossa casa e das nossas vidas de uma forma indesejada.

domingo, 6 de novembro de 2022

No tempo do 850 branco

Quando ultrapassamos as seis décadas de vida, começamos inevitavelmente a ter um repositório enorme de memórias do tempo passado.

Nos idos anos 60, uma época que compulsivamente me aflora a mente, talvez por nela ter vivido os tempos mais felizes da minha vida, somente as famílias da classe alta e média alta possuíam automóvel. O carro era um luxo a que muito poucas pessoas tinham acesso, a não ser que fosse uma viatura destinada ao trabalho.

Geralmente os automóveis duravam muitos anos no seio das famílias e não existia este moderno costume de mudar de veículo em cada x anos; tão pouco havia a facilidade de crédito que, nas suas diversas formas, está à disposição das pessoas nos nossos dias. Os Bancos privados eram escassos, pertenciam a famílias muito abastadas, aparentadas com o regime fascista e as taxas de juro cobradas eram altíssimas. Somente se concedia crédito a quem realmente desse garantias reais de poder pagar os empréstimos nas condições requeridas pelos Bancos, geralmente proprietários ou industriais.

A mobilidade social era muito baixa e a linhagem do nascimento, regra geral, definia a condição futura das pessoas. Quem nascia pobre, pobre também seria a sua prole. Para o liceu, iam os filhos das classes alta e média alta, com vista a depois frequentarem a universidade, enquanto os cursos comerciais e industriais destinavam-se aos filhos das classes economicamente menos favorecidas. Ser "doutor" era um luxo de ricos, reservado aos filhos de pais que podiam custear 4 ou 5 anos de Universidade. Os jovens oriundos das classes mais desfavorecidas frequentavam preferencialmente um ensino que rapidamente lhe desse acesso a uma profissão e ao mercado de trabalho.

Recordo-me que eu tinha 7 anos de idade quando o meu pai comprou o seu primeiro automóvel. Era um Fiat 850, modelo de1968, branco frigorífico, com os estofos vermelhos e o motor traseiro. Aquecia muito em filas de trânsito ou em subidas que exigissem esforço do motor e o espaço interior era bastante reduzido. No dia em que o meu pai o comprou, a família (os meus irmãos mais novos ainda não eram nascidos) decidiu ir ao Cristo Rei para estrear a novíssima máquina italiana, vinda de Turim para o agente da Fiat em Almada. Nunca me esqueci da matrícula - EF-42-31, pois fixar matrículas era um dos grandes passatempos da minha infância.

O meu pai, no início, era bastante maçarico a conduzir e enervava-se com facilidade, mas ninguém, para além da minha mãe, podia rir-se das suas constantes aselhices. Há mais de 6 anos que ele já não está entre nós, e, ainda que consiga ler os meus escritos, com toda a certeza não vai levar a mal que eu conte este episódio por ele protagonizado na estreia do 850.

Todos já estavam a bordo, o meu pai colocou o motor em marcha, engrenou a marcha atrás, não sem antes arranhar várias vezes a mudança da caixa de velocidades, mas o carro parecia não querer sair do mesmo sítio. Ele acelerava e nada. Entretanto começava a cheirar a queimado e o nervosismo instalava-se entre todos os membros da família. O meu pai bradava aos céus que a porcaria do carro novo já estava a dar problemas logo no primeiro dia.

Providencialmente, o dr. Silvestre, advogado com escritório frente à nossa casa, junto ao Externato Frei Luís de Sousa, amigo do meu pai e dono de um fabuloso Mercedes negro, passava na rua naquele mesmo instante. Foi ele quem disse para o meu pai destravar o carro, caso contrário nunca iriamos sair dali.

Lembro-me que a manobra de marcha à ré teve a assistência de grande parte dos populares que por ali passavam. Ditavam ordens para o meu pai virar o volante para a direita e depois para a esquerda. No percurso até ao icónico monumento da cidade de Almada, o carro foi abaixo inúmeras vezes, mas chegámos a casa sãos e salvos. Por ordem expressa da minha mãe, o pai teria de praticar sozinho durante mais algum tempo até que a família pudesse viajar em segurança. E assim foi. Ele, entretanto, tornou-se um excelente condutor e levou-nos muitas vezes pelas estradas da Europa e do Norte de África. Em 1971, o 850 foi trocado por um Ford Cortina, um sedan com três volumes que durou muitos anos na sua posse.

Em Almada, as famílias do nosso convívio e as pessoas em geral, eram identificadas pelo automóvel que possuíam. Os Inácio tinham um Taunus 12 M, com uma cor azul peculiar, quase verde; os Lamelas um Opel 1700 Rekord cinzento mate; os Valverde um Austin 1300 verde azeitona; os Rebelo um Ford Cortina 1300 branco; os Santos um Opel Kadett azul claro e assim sucessivamente. Existiam muito menos automóveis e os veículos eternizavam-se na posse dos seus proprietários. Quando alguém se queria referir a uma pessoa que o interlocutor não estava a reconhecer dizia-lhe: - É aquele que tem um Taunus 20M azul escuro!

Os tempos felizmente mudaram para uma maior equidade social, a disparidade entre pobres e ricos reduziu-se bastante e aqueles que se queixam das atuais condições de vida - felizmente não era o caso da minha família - não imaginam o que era ser pobre há mais de 50 anos atrás. Ninguém consegue ser feliz sem ter as suas essencialidades garantidas, bem como a saúde preservada, mas a abastança não é necessariamente um passaporte para a felicidade.

Creio veementemente que é possível ser-se feliz vivendo com os bens materiais essenciais, desde que tenhamos família, harmonia, amor, ética e doses substanciais de alimento espiritual. Se me fosse possível escolher uma viagem na máquina do tempo, não me importava regressar àquelas manhãs chuvosas de outono em que o meu pai me levava no Fiat 850 até à Escola Conde Ferreira. Sentia-me o menino mais importante do mundo quando chegava ao portão da escola.


Foto: Internet
Pode ser uma imagem a preto e branco de automóvel e estrada
Gosto
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segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Pão-por-Deus



Acabei de ler a informação algures num sitio da Internet que Pão-por-Deus é um peditório ritual feito por ocasião do Dia de Todos-os-Santos, associado às práticas relacionadas com as refeições cerimoniais do culto dos mortos "Dia dos Finados".

Em Portugal no dia 1 de Novembro, Dia de Todos-os-Santos, as crianças saem à rua e juntam-se em pequenos bandos para pedir o Pão-por-Deus (ou o bolinho) de porta em porta. Apesar de não ser uma tradição circunscrita a uma região e existir em diversas partes do país, antes de vir morar para Leiria, nunca eu me recordo de alguma vez, em Lisboa ou nas cidades circundantes, ter presenciado o peditório do bolinho.

Na minha meninice era usual os pobres tocarem à campainha das pessoas, quase sempre à hora do jantar, para pedir comida. Era rara a noite em que a minha mãe não dava um prato de sopa e fruta a alguém, na condição de comerem sentados nos degraus da escada. Por questões de segurança, mas também por segregação, muito comum nessa época, ela não os deixava entrar.

Vista a situação à luz dos cânones atuais parece inadmissível dar uma esmola de forma tão humilhante, mas estávamos nos anos 60, a miséria era endémica e em qualquer cidade do país existiam ilhas de pobreza extrema, muito idênticas às favelas que conhecemos da América do Sul. Na minha escola, muitos meninos andavam descalços e quando lhes ofereciam uns sapatos, não raro, vendiam-nos, pois já tinham uns calos tão grosso nos pés que se sentiam desconfortáveis com qualquer calçado.

Na minha infância, a pobreza extrema era tão comum que já pouco afligia. Quem vivia bem ou remediadamente, mais não fosse para aplacar a sua má consciência ou remorso, partilhava as suas migalhas e sobras, sempre que um pobre lhe pedia comida. "Dinheiro para a bebida não dou, mas um prato de sopa sempre se arranja..." . Os pedintes eram quase todos rotulados de alcoólatras, potenciais larápios e irresponsáveis e só pediam para sustentar vícios. Não raro, os paupérrimos apanhavam das mesas do cafés, inclusive do chão, os restos dos bolos deixados por um cliente enfartado de tanto comer. Eram desapiedadamente expulsos de restaurantes, cafés ou quaisquer estabelecimentos comerciais, pois vestiam-se com farrapos, destilavam um odor insuportável e a sua pele era uma negritude, tanta a sujidade acumulada.

Voltei a ver miséria ao vivo e com dimensões épicas nas quatro vezes em que estive no Brasil. Certas zonas do Rio de Janeiro fizeram-me recuar ao Portugal dos anos 60, com os seus famosos "bairros da lata" que eu visitava com o meu pai, nesse tempo, Presidente da Conferência de São Vicente de Paulo e um acérrimo praticante da esmola e do apadrinhamento de um pobrezinho. Nos anos 60, no seio da Igreja Católica, era muito comum o "bom cristão" ter o seu próprio pobrezinho, a quem levava comida, roupa, marcava consultas no médico e ofertava conforto espiritual.

Era uma caridade que consentia e via como uma inevitabilidade a diferença extrema das condições de vida entre filhos de um mesmo criador. O nascimento na maior parte das vezes ditava o destino de cada um. Mas uma coisa é certa: se não fosse a Igreja, Católica ou Protestante e as suas organizações de benfeitoria, o Estado fascista teria deixado morrer à fome e na mais miserável condição de vida muitos milhares dos seus concidadãos. Felizmente que o peditório do bolinho é um ritual que mantém viva uma vetusta tradição e não mais do que isso.