domingo, 29 de abril de 2012

Old Beach

Fonte: Internet - Praia Velha - São Pedro de Moel
O dia acordou cinéreo, friorento e as bátegas de chuva recomeçaram logo cedo pela manhã. Após o pequeno-almoço, talvez para quebrar a monotonia do recato do lar, do escritório confortável, quente, em ambiente adequado para trabalhar, escrever, ler, a minha escritora, companheira de muitas lides, teve a ideia luminosa de levarmos os portáteis connosco, a fim de trabalharmos num sítio diferente. Já nos meus tempos de estudante universitário, muitas vezes preferia o ambiente ruidoso dos grandes cafés de Lisboa, ou da linha de Cascais, em detrimento do silêncio solene e fúnebre das bibliotecas. Parecia que o facto de mudar de ambiente, trazia um novo alento à parca vontade de enfrentar a aridez das matérias jurídicas. De qualquer forma, a proposta para o dia de hoje agradou-me. A solução revelou-se bastante simples: acomodar os computadores dentro das maletas respetivas, calçar umas sapatilhas confortáveis, vestir roupa prática, não fosse o sol lembrar-se de aparecer e nos apetecer fazer uma caminhada após o almoço, e descer até à garagem para ir buscar o carro.   

Há um café-restaurante em São Pedro de Moel, aberto durante as vinte e quatro horas do dia, com vista para o areal da praia e o mar, chamado "Old Beach", com ligação wireless à Internet, música ao vivo às terças-feiras e aos domingos à noite e que serve refeições completas a qualquer hora do dia ou da noite, tudo ao som de bandas ou boa música ambiente. Não é minha intenção publicitar comercialmente o espaço - nada lucraria com o facto -, até porque o relativo isolamento do lugar, só acessível por transporte particular, garante um certo recato. É, aliás, deste estabelecimento  que estou a escrevinhar estas linhas, ao som de uma música instrumental, de quem não identifico a autoria, mas que mistura agradavelmente os timbres do jazz e da soul music. Na mesa ao lado da minha, um francês e duas francesas, provavelmente turistas acidentais, estão para almoçar. Riem desmesuradamente e falam pelos cotovelos sobre os mais diversos temas, na convicção absoluta de que ninguém, neste pequenote país, estivado por gente inculta, os entende. Comem ameijoas enquanto lambem com consistência os dedos e aposto que nem sonham que, neste preciso instante, entraram como por magia no fiar das palavras que vão correndo ao longo deste texto. O sol, embora timidamente, rompeu as nuvens e agora já apetece dar um passeio pelo areal, sorvendo a brisa que vem do lado do mar. As outras palavras ficam para próximas andanças, já que a escrita, tal como a prática da guitarra, também carece de exercícios que, muitas vezes, não têm necessariamente a ver com a harmonia dos sons. Escrever "just because", de quando em quando, também é bom.


Dias Lourenço - a fuga do Forte de Peniche




Hoje, o passeio de mota, apesar da chuva intensa que começou a cair logo pela manhã, foi até Peniche. Depois do almoço, seguiu-se uma visita à antiga prisão da Pide, no Forte de Peniche, para revisitar o Museu da Resistência e recordar as histórias dos quantos por lá passaram, presos pelo delito da opinião, por se terem recusado a aceitar a ditadura, dispostos a sacrificar as suas vidas pelo ideal de uma sociedade mais justa. 

O vídeo em que Dias Lourenço, recentemente falecido com 95 anos de idade, conta a história da sua espetacular fuga do "segredo", em 1954, conseguindo saltar as muralhas do Forte e nadar até terra, é já um símbolo na História da Resistência anti-fascista.

Portugal precisa de novos heróis, de uma nata de pessoas capazes de, com o seu sacrifício, alterar de novo os ditames deste inusitado regresso ao passado, a que paulatinamente vamos assistindo.  

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Miguel Portas - RIP

Miguel de Sacadura Cabral Portas morreu ontem cerca das 18h00, no Hospital ZNA Middelheim, na cidade belga de Antuérpia
Sempre admirei o Miguel e há muito tempo que o sabia doente. No momento, não tenho mais palavras para escrever e resta-me um nó na garganta e uma sentida amargura. Que a terra te seja leve, Miguel e... até um dia.

A dádiva do perdão




 
 
A dádiva que anula o mal traduz-se concretamente no perdão, na capacidade de perdoar a alguém, desfazer as mágoas que nos roem cá por dentro e libertar o espírito de ressentimentos.  Lembra-me sempre a oração: «Perdoa-nos, Pai, como nós perdoamos a quem nos tem ofendido». Esta frase parece mentirosa vinda de nós humanos, pecaminosos: perdoamos como se, nesse instante de oração, o perdão acontecesse no nosso coração. O perdão é dos gestos mais nobres que conheço, embora nem tudo possa ser perdoado. É a reação mais elevada da parte de alguém que foi vítima de um ato mau e opera, de algum modo, a anulação desse mal. Por certo que a ação é dupla: perdoar é pedir perdão. Porém, o que é prioritário é «perdoar», porque não é concebível que eu possa pedir perdão quando no meu íntimo subsiste a recusa de perdoar. Se me recuso a perdoar, continuo a viver no rancor, no ódio e, na minha relação com os outros, considero-os meus devedores. Para eles eu sou alguém que recusa esse dom. Quando me recuso perdoar aos outros, que tipo de pessoa sou? Sou alguém que toma o outro como a causa do mal que me vitimou. Por vezes esse mal é uma realidade. Mas quando me recuso a admitir uma atitude de perdão, torno-me cúmplice desse mal, aumento-o. O perdão desarma o mal, aniquila-o, a começar por aquele que é vítima dele. Por vezes o mal é mais obscuro. Sofro, por exemplo, com uma ação, uma palavra, com a qual o outro exprimiu a sua intenção de me prejudicar. Mas o perdão, como virtude maior, situa-se ao lado do amor. É uma palavra cheia de sentido: designa o que há de mais vital em todo o verdadeiro amor. Primeiro vem o amor. Depois o perdão. Depois as palavras. Depois o perdão. Depois o intervalo. Depois de novo o perdão. Diz-se que ninguém escapa à tristeza. E à felicidade? Escapamos? A nossa memória não consegue secar como as folhas deste outono que já passou e a chuva torna a saudade mais nítida. Lutamos com o silêncio e tentamos acordar da força dele. Inutilmente. Eu já quase perdoei tudo a todos: a quem me fez mal, a quem não me quis bem, a quem me prejudicou de alguma forma. Ao menos, vivo com o coração limpo de rancores, vazio de ódios, néscio dessas coisas. Só não me consigo libertar da indiferença. E essa é, porventura, a condição maior da minha felicidade.

terça-feira, 24 de abril de 2012

E que tal um novo 25 de Abril?


A Associação 25 de Abril, Mário Soares, Manuel Alegre e, de uma forma geral, os participantes diretos na Revolução dos Cravos, numa atitude inédita, decidiram este ano não participar nas comemorações oficiais da efeméride. Sem querer tecer considerações de ordem partidária, mas necessariamente de afirmação política, concordo em absoluto com a sua posição. Afinal, os valores que nortearam a Revolução de Abril estão hoje em dia completamente desvirtuados. Duvido, aliás, que tenha merecido a pena que tantos homens e mulheres tivessem dado o melhor de si a causas tão nobres. Gente houve que abdicou da sua felicidade pessoal em prol do bem comum, de uma sociedade mais justa e igualitária, do fim de uma guerra colonial - que só aproveitava a uns poucos e onde grande parte da nossa juventude ficou mutilada, física e psicologicamente, ou perdeu a vida -, dos valores da liberdade de expressão e criação. Foram muitos os homens e mulheres que estiveram presos, foram torturados, estigmatizados, viram os seus bens confiscados, perderam a família, o emprego, a carreira, o nome, a dignidade, a saúde, e, nalguns casos, a vida, tudo por nós. O 25 de Abril não valeu a pena - um "sol de pouca dura". Foi uma brisa passageira na modorra das desigualdades gritantes que, em poucos anos, face aos sucessivos governos que Portugal tem conhecido, à ditadura dos mercados, ao modelo societário em que cada vez mais nos afundamos e do qual aparentemente não consigamos sair, tem paulatinamente mandado às urtigas as conquistas dos trabalhadores e as liberdades com tanto sacrifício conquistadas. Cada vez que me falam em comemorar o 25 de Abril, pergunto-me: qual 25 de Abril? O que há para comemorar? Passados trinta e oito anos, que réstias sobraram das conquistas sociais? Onde está a democracia e a sociedade mais justa? O que faz todo o sentido é,  isso sim, falar-se num novo 25 de Abril, mas desta vez numa versão menos poética, menos light, capaz de alterar com caráter de permanência o estado das coisas. Quem estudou História sabe bem que os podres de um tecido social, a injustiça crónica, o poderio exploratório dos mais fortes sobre os mais fracos, só se consegue extirpar através de uma revolução. O seu surgimento numa versão mais musculada, é coisa que já não será do meu tempo, mas é impossível conceber que a nossa paciência bovina dure eternamente. Um povo não é feito de pau.

domingo, 22 de abril de 2012

Comboiando p’la Europa




Nos anos oitenta do século passado, as minhas férias de Verão ficaram indelevelmente associadas ao comboio. Foi, para mim e para muitos, a gloriosa época dos inter-rails; das viagens no Sud-Express através da interminável Espanha, rumo a Paris-Austerlitz que, à época, funcionava como uma espécie de interface no mundo dos mochileiros. No topo do País Basco, na fronteira de Irun-Hendaye, dava-se a inevitável troca de comboio, tudo por causa da bitola dos carris franceses que era diferente da que existia na Península Ibérica.

Nós, os mochileiros, com o animo de quem se dispôs a transportar as cangas às costas durante um mês, alguns de viola amolgada na mão, despedíamo-nos do comboio provinciano cor de alumínio, que nos trazia desde Portugal, misturávamo-nos com as gentes emigrantes e corríamos juntos para as composições gaulesas azuis e brancas, muito mais modernas e atraentes. Era assaz curiosa aquela visão matinal tardia: magotes de guedelhudos, trajados de gangas, pulseiras e colares, mochilas e outros penduricalhos, misturando-se com gente de trabalho, metida em fatiotas simples, acompanhada do legendário garrafão, agarrando embrulhos e malões gigantes atados com cordas, todos saltitando numa ampla sintonia de agilidade por entre os carris de ferro. Sentíamo-nos deportados por livre vontade e era aí, nesse preciso instante, que a grande aventura começava verdadeiramente a ganhar corpo. França era já a sensação de «estrangeiro» que a Espanha ainda não transmitira. 

Ainda hoje relembro, com bastante saudade, a inolvidável experiência que é dormir sentado com a cabeça apoiada no ombro de alguém, ou numa almofada de improviso, ou mesmo na prateleira onde se coloca habitualmente a bagagem, rezando para que não entrassem passageiros a meio da noite, a fim de se poder dispor de um banco inteiro para esticar o esqueleto; o barulho característico e ritmado do ferro passando nas junções dos carris; os solavancos das travagens; os apitos lúgubres dos chefes-de-estação, na calada da noite, algures em estações perdidas nos confins dos Alpes; as luzes no interior das cabines da composição, que esmaecem a partir de uma certa hora; os revisores dos bilhetes e os guardas das fronteiras, que não olham a horas para nos acordarem, a princípio com delicadeza, de seguida, se preciso, com alguma energia e os odores humanos que insidiosamente se vão instalando, começando a fazer parte dos nossos quotidianos, naquela que é, doravante, durante um mês, a nossa primeira casa: o comboio.

[Depois de fazer um inter-rail fica-se muito melhor preparado para o seguinte. Apanhar o comboio da noite, mesmo viajando em segunda classe, pode significar duas coisas importantes: por um lado, a poupança em dinheiro de uma dormida em parque de campismo ou pensão, ainda que modesta; por outro, a garantia, quase certa, de que durante grande parte da noite se pode dispor de um banco inteiro para esticar as pernas e, naturalmente, dormir.]

De manhã, lavamo-nos nos compartimentos minúsculos do comboio enquanto sentimos o nosso destino quase à vista. Tudo com uma alegria esfuziante, estampada num rosto vincado de olheiras e cansaços, que não soçobra perante nada, tal o prazer das emoções que nos aguardam e a sede de aventura. Depois de alguns dias na cidade-luz, cada qual tomava rumos diferentes, consoante a ideia que levasse em mente. Umas vezes fui para norte, na direcção da Holanda, da Alemanha e da Escandinávia; noutras ocasiões, fui para o centro da Europa, visitando a Áustria e os países anexos, mas foram as viagens para sul, mormente as visitas à Itália, à ex-Jugoslávia, à Grécia e à Turquia, que mais saudades me deixaram.

Com pouquíssimo dinheiro no bolso, duas ou três mudas de roupa, comida para os primeiros dias, uma tenda o mais leve possível, um saco-cama e, sobretudo, uma enorme motivação e espírito de aventura, passavam-se umas férias inesquecíveis e conhecia-se gente incrível. Cada dia representava uma nova aventura e as oportunidades para pôr em prática os conhecimentos de línguas estrangeiras eram imensas. Tudo o que aprendêramos era pouco, mas chegava, já que os jovens têm uma linguagem de cariz universal.

Faz muito tempo que não utilizo esse meio de transporte que ficou, deste modo tão terno,  ligado permanentemente à minha juventude. Mas cada vez que me sento numa carruagem, num certo momento do percurso, encosto a cabeça ao vidro e olho-me nele de viés, como se fora um espelho. Nessa altura, fecho os olhos e tento transportar-me mais de trinta anos para trás, no alcance exato do pretérito desta saudade. Então, consigo vislumbrar através do vidro polido, num ligeiro assomo, um jovem magro, de cabelo farto, olhos claros e luminosos, cofiando uma barba de poucos pergaminhos, metido a fundo no caminho de um sonho. Nessa altura sorrio.  E é sempre assim. 




segunda-feira, 16 de abril de 2012

Carlos Gardel - Por una Cabeza



Carlos Gardel, um dos mais famosos cantores do tango argentino, celebrado em toda a América Latina pela divulgação do género musical, é, curiosamente, apontado com uma das influências primordiais de Amália Rodrigues. “A Morte de Carlos Gardel”, o livro de António Lobo Antunes, por mim adquirido, depois de ter estado em não sei quantas mãos, mas em óptimo estado de ser lido, na feira de velharias e antiguidades que mensalmente acontece junto ao Mosteiro de Alcobaça, é o terceiro livro de uma trilogia do escritor. O romance é uma espécie de buraco negro onde apenas se encontra doença, morte, ódio, cinismo e amargura. A ação localiza-se num bairro de Lisboa do passado século XX e o tango ocupa o lugar central na vida de várias personagens do livro. O protagonista, Álvaro, deprimido porque a sua mulher o deixou, torna-se incapaz de amar e vive uma vida amargurada, ganhando um rosto sem feições. A sua única razão de viver passa a ser o tango, em especial o tango interpretado por Gardel “Por una Cabeza”.  É, justamente, o tango que mais se popularizou entre nós e não terá sido por mero acaso que o trágico percurso de vida do cantor - que culminou num estúpido acidente de aviação em Medellin, na Colômbia, corria o ano de 1935 – serviu de fonte de inspiração literária para um dos nossos mais ecoados escritores. A Argentina, ou mais cirurgicamente, Buenos Aires, ainda transpira e ecoa a sensualidade da música de Carlos Gardel. Dentro de pouquíssimos dias, vou ao encontro dessas memórias vivas, onde espero encontrar os antónimos da tristeza e do vazio. Sei que vou apenas pelo sentimentalismo. 

(Leiria - 2006)

sábado, 14 de abril de 2012

Ateneu 65 anos

E até vai haver um "special guest star" (em estreia absoluta ao vivo) para desafinar as músicas :)

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Biótipo Dixit



"O biótipo do dia natalício 19 mostra muita coragem, força de caráter, de natureza audaciosa, apaixonada e até impulsiva, chegando em certos momentos a atos heróicos. Quer mudanças, é versátil e está sempre desejando o melhor para si e também para a família.

É independente, artístico, original e dotado de espírito de iniciativa e criatividade. 19 é o dia do sucesso, da prosperidade e também da felicidade. Esta vibração altamente positiva tem em si embutido também certa tendência à arrogância à teimosia e à vaidade.

É também o número dos extremos (1 e 9); desta configuração só poderia resultar um indivíduo que em certo dia está nas nuvens (rico), e em outro atolado na mais completa miséria. Possui grande poder de realização, mas irrita-se com certa facilidade, tendo acessos de crises de violência (contra si, na maioria das vezes) que normalmente afetam sua saúde. Apesar desta negatividade, jamais guarda ódio de quem quer que seja.

Sendo o seu lema o caráter, na mais pura expressão, o seu possuidor é um reformador, e como tal, sempre pensa  numa maneira de transformar o mundo, conquistando dessa maneira, simpatias e a admiração de todos.

Quando quer alguma coisa, é capaz de gestos teatrais e até atitudes extremas e não aceita seguir o tradicional. Pelo seu instinto ‘paternal’, integridade, valores que preza, as decepções (principalmente com amigos e íntimos), frustrações e fracassos, podem afetar o seu coração, a circulação sanguínea, a visão e também o sistema auditivo. " *


* Nunca acreditei na possibilidade desta treta dos Biótipos e da Astrologia, supostamente científicos, poderem ter alguma influência sobre a identificação da personalidade ou caráter de alguém. O que sempre me irritou é a eterna constatação de que "eles", na grande maioria das vezes, acertam na mouche.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Praia Fluvial na Região Centro

Praia Fluvial - Castanheira de Pêra - 2010

Logo que a chuva esmoreça, lá para finais do mês de abril, espero voltar aos grandes passeios de mota pelas barragens, serras e praias fluviais da nossa Região Centro. Há um miradouro formidável, mesmo no cimo da Serra da Lousã, que nunca me canso de visitar, tal a vista soberba que de lá se avista.

"Se Deus quizesse que o homem voasse tinha-lhe dado asas" - diziam, no início do século XX, os céticos. Também é possível voar numa mota, que me perdoem os céticos.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

São Pedro de Moel - julho de 2011 - Yamaha Neo's 50

São Pedro de Moel - Yamaha Neo's 50 - o meu transporte mais racional

Afinal há "outra" - Yamaha FJR 1300



Figueira da Foz -  abril de 2012
 

Toulouse- Lautrec

As "folies" à entrada do Moulin Rouge
Lautrec sempre foi dos pintores que mais me fascinou. Talvez que a sua vida devassa e curta, vivida durante a época áurea do decadentismo, na cidade europeia império do vício, tivesse afilado o meu imaginário, mas não recordo nenhum artista que tão intensamente tivesse retratado o seu próprio quotidiano como ele. Ainda hoje são famosos os cartazes anunciadores de espetáculos, por si ilustrados, e que sempre constituíram a sua fonte primária de sustento.

Toulouse-Lautrec, nasceu em 1864 e faleceu em 1901, pouco depois da viragem do século. Foi ilustrador, cartonista, retratista, pintor e a sua imersão absoluta na sórdida e teatral Paris do final do século XIX,  foi sempre a musa inspiradora da sua obra. Lautrec vivia em Montmartre e dedicava parte do seu tempo a retratar a vida no Moulin Rouge e noutros cabarets parisienses, bem como dos bordéis imundos, onde de resto era presença assídua. Alegadamente, terá vivido longos períodos em lupanares, como amante e confidente de prostitutas, onde contraiu sífilis. Alcoólico profundo, acabou por morrer cedo, ainda antes de ter completado 37 anos de idade, face ao acumulado dos problemas de saúde de que padecia. Foi um "filho de boas famílias", míope, com o pé boto e estatura de pigmeu, que se auto excluiu de quaisquer  mundos que não fossem girândolas cor-de-folia. Cumpriu o fatalismo de outros tantos seres geniais: viver a vida como uma estrela cadente e esvair-se cedo.

O Guitarrista

"O Guitarrista" é um dos meus quadros prediletos de Pablo Picasso

Nascido na cidade de Málaga, em 25 de outubro de 1881, Pablo Ruiz Picasso, pintor espanhol naturalizado francês, tornou-se um dos mestres das Artes Plásticas do século XX, pois era ainda escultor, artista gráfico e ceramista. O seu talento foi de certa forma herdado de seu pai, professor de desenho e eventualmente pintor, e não tardou a ser reconhecido logo no início, quando o artista tinha apenas quinze anos e, surpreendentemente, o seu próprio ateliê. É complicadissímo eleger o nosso artista preferido, já que são tantos os que gostamos, mas Picasso é certamente um da minha eleição. Gosto sobretudo da "fase azul", em que a melancolia se apossou da sua verve e possibilitou-lhe pintar as obras mais belas que integram o seu vasto legado. Comecei a reler a sua biografia, inserta num daqueles livrinhos de bolso que se vendem a 1,5 reais na cidade do Rio de Janeiro, mas ainda não terminei. Do escopo da sua vida, foi esta pouca informação que retive, mas já me escapam os pormenores: a essência da sua formação artistíca - a informação em absoluto necessária para perceber a matéria de que se forram os génios.

terça-feira, 10 de abril de 2012

A nossa pele



Há pessoas que estão sempre a afiar as garras e que julgam que a melhor defesa é (sempre) o ataque. Bater antes de ser batido. Marcar desde logo território e partir para o combate numa posição de vantagem. Deixar o adversário knock out sem que ele tenha, sequer, a possibilidade de esboçar um gesto de defesa. É a politíca da "terra queimada", no que às relações pessoais respeita. As guerras sempre começaram por ser pequenas escaramuças que degeneraram numa escalada sem fim à vista. São a representação superlativada dos conflitos interpessoais. Neste mundo egótico em que a regra maior é sobreviver, ter outro comportamento pode, muitas vezes, levar-nos à auto-aniquilação, ou à morte consentida. Ser bom, ter um comportamento altruista, implica aceitar à partida a ideia de perda, de sofrimento e possuir uma capacidade infinita para amortizar injustiças. É dar sem esperar retorno. É aceitar o sacrificío. É conseguir ser o melhor Ser do mundo e arvorar-se da qualidade maior que é a bondade. É mais fácil ser culto, interessante, esteta, filósofo, ensaista, poeta, diseur, whatever, do que ser genuinamente bom. 

O Beijo


Gustav Klimt  -  "O Beijo"


Tiras de um diário


Voltou a chuva e o frio. Mas nem sempre assim é por estas alturas do ano. Hoje o dia acordou baço, monocromático, nevoento, sem graça e a chuva caía copiosamente nas calçadas. As aves que moram no bosque traseiro da minha casa devem estar escondidas, a tremelicar de frio, nos ramos mais altos da copa das árvores, pois não consegui escutar o seu useiro trinado, logo pela manhã. Coitadinhas das aves. Muitas vezes me interrogo: onde será que dormem os pássaros que não migram para paragens mais quentes durante as longas e gélidas noites de inverno? E como sobrevivem a temperaturas tão baixas? Ignorante confesso em assuntos de ornitologia, tudo o que respeita a estes seres pequeninos, que já me habituaram à sua presença durante grande parte do ano, é para mim um mistério insondável. Mas, pouco a pouco, sei, o sol irá reaparecer. A princípio, timorato, incapaz de romper por completo as nuvens espessas, mas depois em todo o seu esplendor. Tudo é ciclíco: a vida, a morte e de novo a vida; a alegria, a tristeza e de novo a alegria. A seguir à tempestade vem a bonança, mas esquecem-se sempre de dizer que a tempestade, cedo ou tarde, tornará. Há quem seja tragado pela mudança das estações. É a melancolia sazonal, o mal de viver partilhado por quem retira da repetição dos dias o conforto possível. Mas, quando a mudança das estações traz o contrário do que deveria? Quando, na passagem do verão para o outono, não vem frio, cinzento, a provisória morte da Natureza? Quando, chegado outubro, ainda é verão? E se a primavera traz chuva, geada, o regresso às roupas quentes arrecadadas pelo aquecimento global no baú do inverno? Poderá a melancolia trocar as voltas às estações? Precisará essa sombra cinza e taciturna que as estações se confirmem, mudando? Estará sempre vigiando, o determinado passo em falso do tempo?

La Tailleuse de Soupe

"La Tailleuse de Soupe" - 1933

François Emile Barraud

Bela e Sebastião - Por Ana Paula Fitas

"Bela e Sebastião", da autoria de Cécile Aubry, é uma extraordinária peça de literatura cujo profundissimo conteúdo cívico e pedagógico, merece a sua consideração como obra de excelência da literatura infanto-juvenil. Testemunho disso mesmo é o facto de, nos anos 60, ter sido produzida e realizada a série francesa com o mesmo nome que, no final dessa década, passou, como em muitos países europeus, num inesquecível registo a preto e branco, na RTP. Quanto à 1ª tradução do livro em língua portuguesa surgiu pela mão da editora Aster, em 1968, com uma capa que reproduzia a imagem do menino cigano, protagonista de uma história que, mais tarde, originou uma série de desenhos animados, cuja adaptação, infelizmente!, perdeu o essencial da narrativa... Das muitas histórias que li, vi e conheço penso que não erro ao dizer que nenhuma alcança, nem de perto, nem de longe, o poder e a qualidade de "Bela e Sebastião" na edição e produção originais.... hoje, Dia Internacional dos Ciganos, fica o registo da minha homenagem à dignidade dos seus Povos, através deste imenso e terno abraço que daqui segue para a Ana, a sua Família e para todas as crianças ciganas que tive a honra de conhecer, Homens e Mulheres de 1ª Água, de que destaco, além da Ana, a Elisabete e o Joaquim:

Bem-hajam!*

Ana Paula Fitas - Blogue

* Este excelente texto, escrito pela Ana Paula Fitas no seu blogue, fez-me relembrar esta história, que, entre tantas, pertence ao imaginário da minha infância.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Mais (débito) palavras



"Somos todos culpados de tudo perante os outros e eu mais que os outros..."

Fiodór Dostoievski

Há uma coisa em que não podemos intervir ou modificar: vivemos em sociedades que se definem e se identificam com uma memória. Cada um de nós quando tem de dizer a alguém quem é, e escolhe a forma escrita como expressão, regra geral conta episódios da sua existência - ainda que alguns possam estar ficcionados, emoldurados por metáforas, enevoados propositadamente com uma áurea de palavras dúbias [a meu ver, o mester de escrever tudo isso deve perdoar!]. Também há factos que se escrevem e coincidem com a realidade. É através dos acontecimentos vividos, dos períodos que marcaram a nossa vida, sobretudo da forma como eles se repercutiram em nós, que nos definimos. E a memória das nossas origens, a tentativa de recuar o mais possível no tempo, sempre contou imenso para mim. Acho, porém, inúteis as tentativas de descodificar nas (minhas) palavras a destrinça entre o que é verdade e o que é ficção. Muitas vezes nem eu próprio o conseguiria fazer com uma certeza indúbia. Caso alguém quisesse colocar a sua vida a nu, com os pontos nos is, certamente escolheria uma escrita mais informativa, menos prosaica, e limitar-se-ia a usar uma linguagem denotativa, fazendo os possíveis por se afastar de um registo de outro tipo. Ora a minha forma de me expressar pela escrita não é essa. Tudo quanto escrevo é  susceptível de passar pelo crivo essencial da pergunta: será verdade ou mera ficção? A intuição fundamental da minha moralidade, muitas vezes, consiste em aperceber-me de que não sou igual aos outros; e, por isso mesmo, sinto-me obrigado a respeitá-los nas suas diferenças; por conseguinte, regra geral, sou imensamente mais exigente comigo do que com os outros. Esta pouca leveza não é uma boa forma de me saciar com aquilo que a vida tem para oferecer, mas o que fazer se esta é a minha génese?

Caridade absurda

Caridade Absurda
O vocábulo roupa velha sugere-me a palavra roupa nova, talvez porque me venha à mente o adjetivo antónimo, ou por causa daquele agrupamento musical brasileiro que todos rotulamos de pimba e brega, mas cujas músicas são um sucesso de vendas e integram inúmeras novelas da TV Globo.
No conceito roupa velha, cabem todas as peças de vestuário que já não queremos vestir, seja porque engordámos, ou emagrecemos, ou simplesmente porque estão fora de moda, coçadas, com borbotos ou rasgões; ou porque simplesmente embirrámos com determinado vestuário que achamos já não condiz connosco; ou porque vimos alguém na rua com uma peça igual.
As razões pelas quais classificamos uma parte do nosso vestuário como dispensável e só descansamos quando nos vemos livre dele, são as mais díspares e muitas vezes renovar o guarda-roupa é um pouco como mudar de pele.
É fácil fazer caridade quando nos vemos livres de alguma coisa que já não julgamos adequada para nós. E desde o momento que ganhei o hábito de acondicionar dentro de um saco as peças de vestuário que já não têm préstimo para mim, para as deixar junto ao contentor do lixo de um determinado parque de estacionamento da minha cidade, nunca mais parei de o fazer. Apercebi-me de forma clara bastante clara que, não raro, aquilo que já não queremos pode ter uma imensa utilidade para os outros.
Regularmente, sempre pela manhã, deixo um saco com as calças e as camisas que já não uso, devidamente dobradas, junto ao contentor do lixo da entrada do estacionamento. De seguida, ponho o carro em marcha e discretamente observo pelo espelho retrovisor a rapariga que arruma os carros. Num ápice, ágil como um lince, dá uma breve corrida e agarra no saco sem se deter. Nunca espreita para o seu interior. Ainda lhe resta algum pudor e preocupa-se com o eventual juízo dos transeuntes. Sigo sem nunca a olhar de frente. Obedeço ao código que ambos tacitamente construímos: nunca nos confrontamos e fingimos ignorar que o doador sabe quem é a destinatária das suas dádivas. É uma mulher nova, não terá mais do que trinta anos de idade, com aparência de tóxico-dependente, um rosto de fome e um mortiço nos olhos que denota desertos de amargura.
Dar é abdicar. Isto pouco mais é do que ofertar o (nosso) lixo aos outros, àqueles que são nossos semelhantes, com direitos, anseios, sonhos e necessidades iguais a nós. E são estas dádivas espartanas, que pugnam por manter e consentir na desigualdade, aparentadas com a caridade do estado social fascista, que eu pratico: consentir que o meu lixo seja o luxo dos outros.
Naturalmente, nada disto me enche de orgulho e a sensação de pequenez ganha corpo em mim.

Reformados em dificuldades

sábado, 7 de abril de 2012

A procura da felicidade




Penso que podia modificar-me e viver com os animais, ele são tão serenos e reservados,
Quando me detenho a contemplá-los demoradamente, alheios, por condição, a queixas e fadigas,
Não estão acordados de noite a chorar os seus pecados,
Não me incomodam a discutir os seus deveres para com Deus,
Nenhum está descontente, nenhum endoideceu com a mania de possuir bens,
Nenhum se ajoelha perante outro, nem perante antepassados que viveram milhares de anos antes dele,
Nenhum é respeitável ou infeliz para o Universo inteiro.

Walt Whitman


Atrevo-me a dizer que toda a gente, alguma vez na vida, já foi amada. Na infância, na adolescência, na idade adulta, no liceu, na Universidade, ou até mesmo no envelhecimento, uma mãe, um pai, uma avó, um filho, uma filha, um homem, uma mulher, alguém se cruzou ou se manteve por perto, provavelmente, e amou-nos bem. É, no mínimo, uma atitude de presunção agastada querer receitar a felicidade como quem desfolha as páginas do Pantagruel, e nele encontrar mil e uma formas de fazer bolinhos de felicidade e alegria esfuziante. O segredo da felicidade é um segredo de Polichinelo – aquela personagem clássica da comédia Dell’arte, das farsas napolitanas e dos teatros de marionetas. Corcunda, barulhento e quezilento, é a figura do bobo da corte, sempre desbocado, dizendo o que deve e o que não deve num tom jovial e folgazão. Os segredos de Polichinelo são por isso a fingir. São farsas dos verdadeiros segredos, que, para que o sejam, devem permanecer ocultos, escondidos, indecifráveis. Qualquer segredo partilhado, ainda que não transborde uma geografia restrita e nunca chegue à praça pública, perde o essencial da sua razão de ser. Quando se partilha um segredo, alivia-se a carga, descarrega-se o peso de se ser, ou de se julgar ser, o único que sabe ou conhece aquela coisa, que é sempre terrível e oprimente, que delata alguém ou repõe uma verdade escamoteada. 

Entre o peso dos que contêm e se contêm de mais e a leveza dos que deixam escorrer palavras que despem a alma, deve haver uma justa medida para o que se mostra e para o que se esconde. A felicidade depende, em parte, de condições interiores e, em parte, de condições exteriores. Todas as pessoas que gozam de boa saúde e podem satisfazer plenamente as suas necessidades julgadas elementares, à partida, deveriam ser felizes. Acontece que as coisas não se passam bem assim. A felicidade, nos humanos, é uma coisa muito rara, ao menos como estado permanente. Os animais são felizes desde que tenham boa saúde e bastante comida. Tem-se a impressão que os seres humanos deveriam sê-lo em iguais circunstâncias, mas tal não sucede. Creio que a maior fonte da infelicidade reside no desamor, nas ideias erradas que se tem sobre o mundo, erradas éticas, errados hábitos de vida que provocam a destruição desse gosto natural e desse apetite pelas coisas realizáveis de que depende afinal toda a felicidade.

Uma das principais causas da falta de gosto pela vida é o sentimento de não ser amado, ao passo que, inversamente, o sentimento de ser amado encoraja mais do que qualquer outra coisa. Por variadas razões, um homem pode, por exemplo, considerar-se uma criatura tão horrível que julgue inadmissível alguém amá-lo; pode também ter-se acostumado na infância a receber menos afecto do que as outras crianças; e pode na realidade ser uma pessoa de que ninguém goste. Mas neste último caso a origem do mal reside provavelmente numa falta de confiança em si próprio motivada por precoces infortúnios. O homem que não se sente amado pode tomar, em consequência disso, várias atitudes. Nalguns casos, faz esforços desesperados para conquistar a afeição dos outros, às vezes até por meio de actos excepcionais de bondade. Procedendo assim, no entanto, tem poucas probabilidades de êxito, pois a razão da sua bondade facilmente será compreendida pelos que dela beneficiam e a natureza humana é de tal maneira constituída que testemunha afeição com maior felicidade àqueles que parecem pedi-la menos. Portanto, o homem que se esforça por conquistar afeição por meio de acções generosas torna-se um desiludido com a experiência da ingratidão humana. Nunca lhe ocorre que a afeição que procura comprar tem muito mais valor do que os benefícios materiais que oferece em troca e, no entanto, é a consciência dessa verdade que inspira todas as suas acções. Outros homens, ao verem que não são amados, tentam vingar-se do mundo, instigando guerras e revoluções ou escrevendo com a pena molhada em fel..

A grande maioria, homens como mulheres, quando sentem que não são estimados, afundam-se num tímido desespero, aliviado somente por fulgores momentâneos de inveja e de maldade. Em regra, a vida de tais pessoas torna-se extremamente concentrada e a ausência de afeições dá-lhe um sentimento de insegurança, do qual procuram instintivamente evadir-se deixando que o hábito as domine em absoluto. Os que enfrentam a vida com um sentimento de segurança são muito mais felizes do que os que a enfrentam com um sentimento de insegurança, pelo menos enquanto essa auto-confiança não os conduzir ao desastre. E em muitos casos, embora não em todos, o sentimento de segurança ajuda o homem a evitar perigos perante os quais qualquer outro sucumbiria. Quem passear por cima de um abismo, sobre uma prancha estreita, cairá mais facilmente se tiver medo do que se não tiver. O mesmo se aplica na conduta da vida. É a afeição recebida, não a afeição dada, que origina essa sensação de segurança, e mais do que uma e outra, a afeição que é recíproca. A criança que, por qualquer motivo, for privada dessa afeição, tornar-se-á certamente tímida, cheia de medos, propensa a lamentar-se, e não será capaz de enfrentar o mundo com alegre espírito investigador. Uma tal criança principiará demasiadamente jovem a meditar sobre a vida e a morte e o destino humano. Tornar-se-á um introvertido, começa por ser um melancólico e acaba, finalmente por procurar uma «falsa» consolação nalgum sistema filosófico ou teológico. 

O mundo é este lugar confuso onde eu vivo, este mosaico permanente, contendo coisas agradáveis e desagradáveis, em desordenada sequência. É-me, contudo, irreprimível esta conta-corrente de pensamento e reflexão, sobre os fluxos que julgo serem os mais importantes nesta curta experiência de viver; este percurso aleatório – viagem de ida – onde ditados tais como: «A palavra é de prata, o silêncio é de oiro», não colhem em mim o santuário devido. Já se sabe que muito mais difícil do que abrir a boca e soltar o verbo para largar frases feitas, impressões ambivalentes, palavras entre o muito e o nenhum conteúdo é guardar silêncio. Eu encaro o silêncio como uma mera pausa comunicacional, uma forma de pontuar o discurso, de terminar um assunto e partir para outro. Perdoem-me, pois, aqueles que me lêem por ainda não ter terminado este fiar de tomadas de consciência sobre os méritos e deméritos da infelicidade mas, mais do que qualquer descoberta alquímica, um dos enigmas mais felizes da vida, reside no facto de encontrarmos todos os dias pessoas a quem tudo o que há de mal parece ter acontecido e, ainda assim, mais do que sobreviventes, são alegres viventes, sôfregos de vida, de bem com ela, e, de caminho, com os outros com quem se cruzam, criaturas de histórias muito banais e acontecimentos quase casuais. Para quem não entendeu, falo-vos dos meus heróis.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

A situação da morte


Quando assumo a verdade da minha situação perante a morte, aceito optar. Será possível tentar entender essa opção necessária? Penso que sim. Embora as razões continuem a ser obscuras para mim. Desesperar equivale a supor que só o pior é possível. A aposta na esperança é a posição que se aproxima mais dos limites da nossa incerteza. Corresponde, aliás, a um sentimento que todos temos arreigado em nós: o desejo de triunfar da morte. Que a morte saia sempre vencedora, que a melhor parte daquilo que se constrói numa vida humana esteja sempre votado ao fracasso, tais factos provocam forçosamente um desejo de recusa. Com esse efeito, como poderíamos nós aceitar que o melhor daquilo que edificamos, do que sentimos e do que conhecemos, o melhor das nossas relações - até as mais importantes delas, o amor - desapareça? Quando me ponho a refletir sobre a minha posição dentro da existência tento perceber o significado desse conceito e, caso ame alguém, não compreendo que o ser amado possa desaparecer definitivamente. Não me estou a referir bem à «ideia» da morte. Porque é relativamente fácil aceitar a ideia: esse alguém que hoje existe fará amanhã parte do nada. Quem tem razão são aqueles que ficam transtornados com a morte da pessoa que amam. [Não há posição mais humana do que o estoicismo. A morte é inaceitável. Aceitar o aniquilamento absoluto disso seria achincalhar a importância do que a existência tem de mais nobre. Amar e aceitar a ideia de que este amor morrerá daqui a um ano, talvez a dois, é amar muito mal. A qualidade do amor exige que ele se situe numa dimensão que ultrapassa os limites do tempo.] Esta hipótese já se justifica a partir do momento que admito poder amar alguém mais de seis meses. Porquê? Porque o amor visa o fim em si mesmo, uma realidade infinita que não aceita as flutuações do tempo. Não consigo resistir a isto, mesmo se, por experiência, sei que certas pessoas que se amaram um dia deixaram de se amar. Contudo, amar é a expressão de um desejo de eternidade. Mesmo que o espírito da minha amada esmorecesse no dia da nossa morte, como uma faúlha que se liberta do fogo, teria-a ainda conhecido durante o tempo em que nos sentimos. Paralisado por tais ideias que me assolam em turbilhão, pergunto-me: Seria eu capaz de conceber um desejo de vida eterna? Será que a nossa recusa da ideia de eternidade corresponde à nossa falta de fé na vida presente? A consciência da proximidade da morte, em geral, é-nos imposta pelos acontecimentos. Mas a consciência do facto nem sempre provoca uma atitude existencial correcta. A inexorabilidade do irreversível põe-me face a face com a verdade da minha vida. Já não posso alhear-me sob pretexto de um futuro que permitiria transformá-la. Deixo de poder construir uma vida que integraria o que ainda não aconteceu, aquilo que o meu imaginário constrói em termos de futuro possível e que eu, em imaginação, considero como fazendo parte da minha vida. Já nem sei se consigo dizer mais algo sobre isto. O resto das palavras fica-me pelo pensamento.
Boa noite.

Maria Callas - Madama Butterfly - Puccini

Os opostos


Há muito tempo que não me sentia assim: cansado, sem energias, desalentado, ferido de morte com tanta desilusão e injustiça.  As verdades, a maioria das vezes, resultam tão evidentes que se tornam invisíveis; ou, pior, somos nós, cegos por vontade própria, que não as queremos ver. A regra é a de que geralmente aquilo que parece é. E as aparências assemelham-se quase sempre com as verdades. Quem não se protege atempadamente do sofrimento, da dor, da desilusão, ou sofre de uma patologia masoquista, ou é um incauto. Se é verdade, como diz a velha máxima, que os opostos se atraem, parece ser também um dado adquirido que, em muitos casos, essas relações estão condenadas ao fracasso. Quando uma relação tem por base aquilo que se chama de «equívoco afetivo», em que um dá, aparentemente de forma incondicional, e o outro recebe amor não dando nada em troca, de nada vale desejar a longevidade a um enlace assim. Afinal parece que o amor não está escrito nas estrelas. Deve-se, portanto, evitar a pessoa que não está preparada para o compromisso, ou que seja incapaz de o fazer; e são demasiadas as pessoas que acreditam que vão ser amadas se se «portarem bem». Isto vai levar a que certas pessoas se adaptem ao que os outros querem, por vezes ao ponto de fingirem que são outras pessoas, abdicando de si mesmas. Uma relação assente nestes pilares, porque provoca a humilhação do outro, porque não é signalagmática, não tem pernas para andar e augura-se-lhe uma duração curta. É bom amar, mas amar, sim, alguém de verdade. Não uma fantasia que nenhuma correspondência tenha com a realidade.

domingo, 1 de abril de 2012

De madrugada

Fonte: Internet
Quem olha do exterior para uma janela aberta nunca vê tantas coisas como quem olha para uma janela cerrada. Não existe objeto mais profundo, mais deslumbrante, do que uma janela alumiada por uma luz ténue quando observada da rua. O que se pode ver à luz do sol é sempre menos interessante do que o que se pode ver por detrás de um vidro; e essa clausura amarela de tonalidades desmaiadas é uma espécie de ditadura inevitável para um escrevente. Terei eu chegado a um tal grau de entorpecimento que não me comprazo se não com estes adereços? Se assim não puder ser, creio que em breve  fugirei para um país onde não haja analogias com a morte, onde o sol brilhe sem obrigações e roce obliquamente pela terra como uma longa caricia sem fim. Lá, poderei finalmente tomar banhos de luz e esses pequenos nadas serão como girândolas cor-de-rosa, lembrando os reflexos do fogo de artifício de uma festa estival. Esta minha vontade pode explodir e gritar-me ajuizadamente: «Vai, seja para onde, contando que seja para fora deste mundo!» Muitas vezes descontente e inconformado, outras vezes não tanto, resta-me o consolo breve destas palavras herméticas, inúteis, que faço desfiar pela madrugada fora. Peço ao futuro, entre tantas coisas, que me conceda a graça de poder materializar alguns escritos, pois escrever é, para mim, independentemente da temática e do valor, um exercício de espairecimento fundamental: definitivo, como o ar que respiro ou os nutrientes que me fazem suspender o fim desta vida tantas vezes inóspita, quantas vezes contrária aos meus desejos. Mas viver é sempre a justaposição de tudo isto. Olhem que boa madrugada esta!

Leiria - 2008 (readaptado)