sexta-feira, 25 de novembro de 2022

Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres.

 



Hoje assinala-se o Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres. Na verdade, todos os dias são comemorativos de alguma coisa e, na falta de um calendário maior, celebram-se vários factos relevantes no mesmo dia; alguns certamente mais importantes e justificáveis do que outros.
Não deixa de ser triste constatar que, infelizmente, a violência contra as mulheres, seja no seio conjugal, ou numa relação de namoro, apesar de uma assinalável evolução das mentalidades, proporcionada pela educação e por uma sociedade mais informada, continua a existir.

É, no entanto, sinistro constatar que a violência cometida contra as mulheres acontece quer entre jovens e/ou seniores, sejam pouco ou muito escolarizados, não poupando, na sua transversalidade, qualquer camada sociocultural.

Recordo a rocambolesca história de um médico, digno de um remake da novela gótica Jekyll e Mr. Hyde, escrita por Robert Louis Stevenson, figura de proa nos meandros sociais de uma pequena cidade, onde se emproava em cargos políticos ao mesmo tempo que praticava medicina, que sovava a mulher a ponto de um dia lhe ter partido ambos os braços. Esse sociopata, querido e endeusado pela população, figurão mestre em manipulação e embuste, chegava a dar consultas grátis como forma de se promover, com vista a atingir os seus propósitos de ambição pessoal.

O mito da “família idealizada” levou-nos a pensá-la como um lugar de afetos e de expressividade íntima, onde ninguém tinha o direito de interferir: “Entre o marido e a mulher ninguém mete a colher”. Esta idealização associada a outros mitos foi, em parte, responsável pela negligência da gravidade do fenómeno da violência exercida contra as mulheres, considerando-a, muitas vezes, como uma componente normal num relacionamento conjugal.

As nossas sociedades estão repletas de inarráveis crueldades cometidas contra as mulheres e outros membros da família. No nosso país, apesar de se supor que é um fenómeno que afeta inúmeras famílias, só recentemente é que foi colocada de forma evidente na agenda política nacional.

Há coisas que, apesar de já contar com seis décadas de existência, ainda me deixam perplexo. Como é possível um homem agredir fisicamente, ou psicologicamente, uma mulher, ainda que um facto grave, que justifique colocar um ponto final num relacionamento, tenha acontecido?
As relações amorosas devem subsistir enquanto são motivo de felicidade para ambos os intervenientes e a coragem de as terminar, quando a sua manutenção já não é desejável, não é desonra para ninguém. Assertivamente é mesmo o que se deve fazer, pois o tempo tudo sara.

Ao findarmos um relacionamento tóxico estamos dar, a nós mesmos e ao outro, a oportunidade de um reencontro com a tão desejável paz perdida. Ainda que a encontremos apenas dentro de nós mesmos.



quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Tornar-se Pessoa

 



Nos últimos meses, fruto de uma atividade que havia imenso tempo desconectado da minha vida e que entretanto retomei, tenho conhecido muitas pessoas. Em virtude do acaso ou de algum propósito metafísico que me escapa ao entendimento, retornei a um lugar do meu passado e tenho interagido com diferentes pessoas, algumas tão díspares de mim como a Lua e o Sol.

A aceitação do outro tal qual ele é, na sua diferente construção mental, prevalências, atitudes e entendimento, é neste momento, uma das tarefas mais árduas que me desafiam. É preciso (re)aprender a escutar, colocar-me no lugar do outro, praticar a humildade, refrear a soberba, rejeitar a crítica fácil, bem como a vontade de contraditar que muitas vezes me forra. Tudo na vida requer treino e uma mudança de comportamento, se por nós for desejada, não foge a essa regra.

O comportamento humano sempre me fascinou e desde muito novo que, a par dos romances da Agatha Christie, que são mini lições sobre a mente humana, comecei leituras de Psicologia. Carl Rogers, um psicólogo norte-americano, falecido nos anos 80, teve uma importância capital na minha compreensão do desempenho humano. Recordo em particular o livro “Tornar-se Pessoa”, escrito de uma forma acessível, sem os jargões técnicos recorrentes nas obras da especialidade, cuja segunda leitura possibilitou descobertas que muito me ajudaram.

Rogers escreveu que ”Ser empático é ver o mundo com os olhos do outro e não ver o nosso mundo refletido nos olhos dele” e essa é uma das mais difíceis tarefas que nos desafiam, quando lidamos com pessoas que não fazem parte da nossa matriz de afinidades habitual.

Gostar das pessoas pelo que elas são, deixando de lado as expetativas do que queremos que elas sejam, refreando o desejo de adaptá-las às nossas necessidades, é uma maneira muito mais difícil, porém mais enriquecedora de viver relações satisfatórias.

O ato de viver é dinâmico e novas experiências, diferentes abordagens, daquilo que padronizámos como sendo a nossa habitual forma de pensar e agir, podem ser colocadas em questão. E esse é por ora o meu propósito.



domingo, 13 de novembro de 2022

O prenúncio do Natal



Esta tarde andei por Leiria e depois, por um motivo fútil, tive a infeliz ideia de ir ao Shopping sabendo que era uma tarde de domingo. Duas coisas safaram-me: fui de mota e usei o autoapagamento na caixa registadora. Ainda assim, não me livrei de um oceano de gente que circulava nos corredores e áreas adjacentes, muitas vezes sem olhar para a frente e literalmente chocando com os outros passantes. De quando em quando, encontrava um português, percetível pelo acento no falar, em tudo semelhante ao meu.

Depois de ver a quantidade de pessoas que se perfilavam para pagar, pensei seriamente em repor as ninharias que tinha comprado nas respetivas prateleiras e vir embora de mãos a abanar. Felizmente para mim e para as senhoras que trabalham nas caixas registadoras, muitas pessoas ainda têm medo do papão do autoapagamento ou pura e simplesmente resignam-se a esperar numa longa fila. Eu adquiri uma cada vez mais retinta agorafobia no que respeita a Centros Comerciais e outros locais onde se reúnam muitas pessoas.

Hoje seria para mim impensável ir, como outrora, a um festival musical em recintos gigantescos e sentir aquele gozo vibrátil com os encontrões e o ruído das colunas dos sistemas PA que quase nos estouram a cabeça. Dêem-me paisagens, montanha, natureza, ar livre, vento, mar, luzes naturais, gatos no colo e performances musicais em espaços de dimensão mediana. Todo o resto dispenso.

Desde há bastantes anos, perante certos estados de espirito, aprendi a gostar do valor do silêncio ou de uma certa harmonia musical. Quando estou menos sereno se há algo que me acalma é escutar música clássica. Nada de musiquinhas relaxantes, daquelas que escutamos em elevadores ou espaços comerciais requintados, com água a correr ou passarinhos a chilrear. Oiço Chopin, mais precisamente o Noturno em Mi-bemol maior, Op. 9: n.º 2., o meu preferido, duas ou três áreas de Bach, Beethoven "Für Elise", Ravel e Vivaldi. Tenho uma playlist das minhas músicas clássicas preferidas e a minha terapia consiste em colocá-las em repeat até me sentir mais calmo. Resulta quase sempre.

No Centro Comercial, já se sente o ambiente festivo do Natal que, para muitas pessoas, é apenas uma época de consumo exacerbado. Sob o ponto de vista ecológico, é também um período em que o estímulo ao consumo provoca um maior impacto ambiental, com o desgaste de recursos e a consequente produção de resíduos: aumento do uso energético e produção de gases com efeito de estufa. São poucos os que olham para o Natal como sendo a celebração cristã por excelência e a festa em que por tradição a família se reúne; isto para aqueles que a têm.

O Natal dos shoppings é o mais triste de todos. É aquele em que as decorações são apenas um estímulo ao incremento do consumo. Porque associamos há tanto tempo o Natal a presentes e, mais recentemente, a consumo desenfreado de comida, bebida e bens de todo o género, para miúdos e graúdos? As opiniões dos historiadores dividem-se. A “culpa” pode ser dos Reis Magos que levaram ouro, incenso e mirra à criança nascida na manjedoura, mas também da generosidade proverbial de São Nicolau para com os mais pequenos ou ainda dos romanos, a quem o cristianismo, como foi sua prática corrente, poderá ter “copiado” o festival do solstício de inverno, também conhecido por Saturnalia. Seja como for, recordo com saudade os natais sem excesso de consumo, em família, com religiosidade e tradição. E esses sempre foram para mim os verdadeiros e os mais felizes.



quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Véspera

Como quase todos os seres humanos, detesto secas, longas esperas, espaços ultra congestionados, encontrões, excesso de ruído, embora reconheça que o deserto é bom para os santos. O deserto é a paisagem espiritual por excelência e a que mais se aproxima das formas puras. Só se lhe comparam o mar sem fim e o nevoeiro cerrado, que apresentam a mesma ausência de pormenor, uma matéria quase lisa em que não proliferam os elementos díspares.

Um aeroporto internacional, em período de vésperas de Natal, é tudo menos um lugar calmo. Não sei se fruto da idade, das grandes agitações que já passaram pela minha vida, cada vez mais aprecio degustar o sossego, a calma de uma sala onde apenas se ouve o tique-taque monocórdico de um relógio de parede ou Puccini em tons suaves. É nesta ambiência que gosto de escrever, ler, e meditar, que são das coisas que maior prazer me dão na vida e com as quais sempre me sentirei identificado.

É nos dias que antecedem uma grande viagem que imagino o sempiterno stress que me aguarda. Antevejo o Aeroporto da Portela, manhã cedo, com as costumeiras filas para despachar as bagagens; passageiros em trânsito, oriundos de todos os lugares do mundo, dormitando nos bancos; outros desembrulhando comidas; crianças tomadas pelo choro de um despertar matinal forçado; um vaivém de pessoas carregando malas e sacos aglomerando-se junto aos terminais dos controlos de embarque; as cafetarias, que cobram o coiro e o cabelo por um fanico de sandwiche, atulhadas com os habitantes sazonais desta enorme Babel aeroportuária.

Sensivelmente dez horas depois do enorme Airbus A 340 da Tap deixar a Portela, depois do ruído omnipresente dos quatro reactores ter-se transportado para a minha cabeça, começo a vislumbrar os montes em forma de Curva de Gauss que circundam a gigantesca Cidade Maravilhosa. O pássaro volta-se, primeiro para a direita, depois para a esquerda, e consigo vislumbrar a megalópolis plena de contrastes, onde prédios que pretendem arranhar os céus vivem paredes meias com favelas que ocupam tudo o que é morro. Em contrapartida, sei que assim que o avião pousar, volto a conviver com gente em tudo diferente do povo triste e macilento que deixo para trás e do ar cinzento e gélido do Inverno de Portugal. No hemisfério sul, o Estio está prestes a nascer e eu sou um convidado especial para assistir ao parto do Verão tropical. Levo comigo um bloco para notas e a "Caneta do Escritor das Frases Curtas", uma esferográfica que apresenta uma luzinha no topo, para escrever no escuro; mas só frases curtas, porque não ilumina mais do que três palavras compridas de cada vez. 

2007



Já fiz tudo isso



Já me queimei a brincar com uma vela; já fiz um balão com uma pastilha que se me colou na cara toda; já falei com o espelho; já fingi ser bruxo, mago, fazedor de feitiçarias medonhas. Já quis ser piloto, escritor, poeta, fotojornalista, magistrado, vendedor de combustíveis, pescador, taxista, professor. Já me escondi atrás de uma cortina e deixei esquecidos os pés de fora; já estive sob o chuveiro até fazer chichi. Já roubei um beijo, confundi os sentimentos, tomei muitos caminhos errados e continuo a gostar de trilhar o desconhecido, ainda que o mesmo me conduza ao cadafalso. Já raspei o fundo da panela onde se cozinhou o creme; já me cortei ao aparar a barba muito apressado e chorei ao escutar determinadas músicas no sossego da minha sala. Já tentei esquecer algumas pessoas e descobri que são as mais difíceis de esquecer. Já subi às escondidas até ao terraço para agarrar estrelas; já subi a várias árvores para roubar fruta; já caí mais de uma vez de uma escada. Já fiz juramentos eternos que não cumpri, escrevi no muro da escola e chorei sozinho na casa-de-banho por algo que me aconteceu. Já fugi de casa para sempre e voltei no instante seguinte [até que um dia não voltei mais].

Já corri para não deixar alguém a chorar; já fiquei só no meio de mil pessoas sentindo a falta de uma única. Já vi o pôr-do-sol mudar do rosado ao alaranjado; já mergulhei para a piscina e não quis sair mais; já bebi até sentir os lábios dormentes; já olhei a cidade de cima e nem mesmo assim encontrei o meu lugar. Já senti medo da escuridão; já tremi de nervos; já quase morri de amor e renasci novamente para ver o sorriso de alguém especial; já acordei a meio da noite e senti medo de me levantar.

Já apostei a correr descalço pela rua, gritei de felicidade, roubei rosas num enorme jardim; já me apaixonei e pensei que era para sempre, mas era um "para sempre" pela metade; já me deitei na relva até de madrugada e vi o sol substituir a lua; já chorei por ver amigos partir e depois descobri que chegaram outros novos e que a vida é um ir e vir permanente.

Foram tantas as coisas que fiz, tantos os momentos fotografados pela lente da emoção e guardados neste baú chamado coração que nem sei que mais o que por ora dizer…

Leiria, 2007

O Covid 22



Pensava eu, erroneamente, que fazia parte daquele núcleo, já objeto de estudo cientifico, que nunca teve Covid, ainda que muitas vezes partilhando o mesmo teto com pessoas infetadas. Acontece que, ainda que com o esquema vacinal completo - 3 vacinas - o bicho pegou-me. Não tenho uma certeza sustentada por uma evidência, sobre quando, onde e como fui contaminado, mas, uma vez que ando sem máscara, pode ter sido em qualquer lugar. Desconfio dos elevadores do meu prédio. Sempre os vi como incubadores de doenças do trato respiratório. Ninguém usa máscara aquando da sua utilização, o espaço é reduzido e muito facilmente as gotículas que emitimos se mantêm em suspensão no seu interior. Para adensar as minhas suspeitas, sei que há pessoas com Covid no prédio. Deixo, por isso, um aviso à navegação: usem máscara em espaços fechados, sem ventilação, mormente elevadores públicos.

Hoje é o terceiro dia- não o primeiro dia do resto da minha vida, como a canção do Sérgio Godinho, assim o espero - covidiano, para usar um neologismo do qual julgo não ser eu o pai.

Anteontem, farto de me armar em valentão, com dores imensas no ombro direito, devido a uma queda aparatosa numas escadas junto ao prédio da casa da minha mãe, tomei consciência de que: não conseguir dobrar o braço direito, nem tocar guitarra, acordar com dores a meio da noite sem conseguir dormir ainda que usando camadas industriais de reumon gel, era tempo perdido. Vencido pelas evidências, decidi ir às urgências hospitalares, ainda com a sinistra lembrança de lá ter estado 12 horas nos tempos da pandemia.

Estive 6 horas no serviço de urgência e só não se estendeu o tempo porque me dirigi às informações, onde um enfermeiro jovem, com muita má vontade, mas rendido pela minha forte insistência, me informou que eu já tinha sido chamado, pois no sistema informático constava como estando a ser atendido. Entrei no open space dos doentes com pulseira amarela e deparei-me com um cenário digno de um hospital na retaguarda de um campo de batalha. Na sua maioria idosos, os doentes gemiam, com dores ou por mero desespero e tantas eram as macas que não havia literalmente espaço para circular. Os profissionais de saúde, cada vez que queriam chegar perto de um doente, tinham de arredar as macas, por forma a encontrar espaço para conseguirem ver o paciente em questão.

Em condições diferentes, teria feito uma reclamação escrita, por negligência, mas, face ao cenário verdadeiramente bélico com que me deparei, "relevei", como dizem os nossos irmãos brasileiros e aceitei a falha da médica como plenamente justificada. Naquela enfermaria estavam muitas pessoas em condições de saúde piores do que a minha. No meio daquele autêntico caos, crível somente por quem já presenciou uma situação semelhante, consegui ser muito bem atendido por uma médica moldava, a Aline, que me prescreveu medicação. Não admira que o burnout nos profissionais de saúde que laboram nos hospitais seja tão frequente, mas não vi nenhum deles stressado com o cenário dantesco da enfermaria. Cumpriam ritualmente as suas funções, alheios aos gemidos e gritos dos doentes.

Li ontem no "Região de Leiria" que as urgências do Hospital Distrital fecharam no período noturno, estando os doentes a ser reencaminhados para outras unidades hospitalares. A falta de resposta dos hospitais públicos em Portugal, é talvez um dos maiores problemas que o país enfrenta. Fosse eu 1º ministro e tomaria uma decisão radical: alocava tudo o que fossem verbas destinadas a atividades não essenciais, à contratação de profissionais de saúde e construção de novas unidades hospitalares. Desviava o dinheiro atribuído às não essencialidades e diminuía substancialmente os ordenados de políticos e assessores. Lírico, dirão, mas as grandes reviravoltas da História, antes de serem materializadas, foram sempre sonhadas por líricos e idealistas. A maioria das situações não se resolvem por falta de vontade de quem tem poder para decidir. Veja-se a escandalosa contratação para assessor de uma ministra, com um vencimento de 4000 euros/mês, de um jovem com 21 anos de idade, sem qualquer experiência ou currículo, licenciado em Direito há apenas uma semana!

Para além da luxação grave no ombro direito, sentia dores musculares, cansaço generalizado e uma tosse seca, pelo que pedi que me fizessem o teste ao Covid. Sai da unidade hospitalar sabendo estar positivo. Nessa mesma noite, a febre chegou quase aos 39º, com tosse ininterrupta, dores musculares intensas, fraqueza generalizada, suores frios e falta de apetite. Foi mesmo o pior momento, mas felizmente estou em plena recuperação. Isto não é uma "gripezinha", como num dado tempo foi declarado por um alto responsável politico. Caso eu não tivesse o esquema vacinal completo, estaria agora, muito provavelmente, ligado a um ventilador por causa do agravamento das condições respiratórias.

Este pequeno texto tem um propósito maior que é o de agradecer às pessoas que, pelo telefone, pela rede social, através de mensagem ou publicação, desejaram as minhas melhoras. Foram muitos, muitos mais do que algum dia esperei, aqueles que se ofereceram para vir a minha casa tomar conta de mim, ir às compras ou ajudar naquilo que fosse preciso. A todos agradeci e declinei a ajuda, pois desde os 17 anos de idade que tomo conta de mim e habituei-me a fortalecer-me dessa forma. No entanto, estou na primeira linha quando se trata de ajudar o próximo e toda a vida assim fui, mas quando se trata de aceitar ajuda alheia fico bastante relutante. O meu sentido de autonomia e independência atingiu extremos e tenho de rever esta minha estranha forma de ser, só não sei como. Não sou ingrato, apesar do extenso catálogo de defeitos que possuo e tenho consciência de que o valor das pessoas, mais do que pelas palavras, mede-se pela suas ações. Constatei que, para muitos amigos, solidariedade não é uma palavra vã. De novo, o meu muito obrigado.




segunda-feira, 7 de novembro de 2022

O ascensor



"Um elevador ou ascensor é um equipamento de transporte utilizado para mover bens ou pessoas verticalmente ou diagonalmente."

Esta é a definição corrente que podemos encontrar em qualquer dicionário sobre o significado da palavra ascensor. Para quem mora em apartamentos situados acima do 4º andar, torna-se bastante complicado abdicar da sua nobre função, em especial se nos fizermos acompanhar dos sacos das compras ou outros carregos.

O elevador, nas cidades modernas, onde os edifícios destinados a habitação ou escritórios, são construídos em altura, para melhor rentabilizar a área de construção, tornou-se um acessório insubstituível. Desde a sua invenção em meados do século XIX, os ascensores passaram a ser correntemente utilizados em prédios de habitação um pouco por todo o mundo.

Os elevadores mais rápidos funcionam desde 2016 no Guangzhou CTF Finance Centre, um arranha-céus situado na República Popular da China e são capazes de atingir 72,4 km/h, subindo do primeiro piso ao piso 95 em 43 segundos. Uma velocidade de cortar a respiração!

Não restam dúvidas de que o ascensor é um bem de primeira necessidade e para algumas pessoas de mobilidade reduzida, a única forma de acederem às suas habitações.

Acontece que nos prédios onde funcionam estas primas-donnas, o contributo mensal para a prestação do condomínio é substancialmente mais elevado, pois estas caixas mágicas "the state of the art", carecem de manutenção periódica e gastam muita luz. E quando acontece uma avaria grave, o custo da reparação é regra geral muito elevado. Nestas situações, também parece ser regra, o fundo de caixa do condomínio nunca ter dinheiro suficiente para dar provimento às reparações extraordinárias, seja porque o dinheiro foi gasto noutras urgências, ou porque há condóminos que entendem não ser sua obrigação pagar mensalmente a prestação que lhes é devida.

E, já que estamos em maré de regras, também é usual os condóminos dos apartamentos situados nos pisos inferiores, mas servidos pelo ascensor, acharem que não têm por obrigação pagar reparações de elevadores porque, dizem eles, utilizam as escadas. Um argumento que não colhe, pois de acordo com o disposto no artigo 1424º nº 4 do Código Civil, só não participam nas despesas de conservação e reparação dos ascensores os condóminos cujas frações não sejam por eles servidas. Situando-se a fração no rés do chão, no vestíbulo da entrada principal do prédio, e local de onde parte o elevador, como é óbvio, os respetivos proprietários não comparticipam nas despesas com o elevador.

Os ascensores são parte comum do prédio, tal como as escadas interiores, o telhado ou os acessos. Ninguém mandou os vizinhos do 1º andar, servidos pelo elevador, furtarem-se ao uso do mesmo com exercícios aeróbicos inusitados. Se querem fazer ginástica é a todos os títulos louvável e só lhes faz bem à saúde, mas ficam desde já convidados a darem todos os dias uma voltinha de ascensor, nem que seja para justificar a parte que lhes cabe na reparação do mesmo, que esperamos seja paga voluntariamente e não através de uma ação judicial movida para o efeito.

Morar em apartamentos, é mais prático do que habitar em moradias. É mais seguro, pois estatisticamente há menos assaltos; mais económico, já que as despesas de conservação são divididas por todos os proprietários; e mais fácil de conservar e manter a limpeza no espaço habitável. Mas "não há bela sem senão".

Morar em condomínios é aceitar o risco de não conhecermos o vizinho da porta do lado ou o que mora três andares abaixo. É viver lado a lado com pessoas que são arrendatários dos apartamentos e não se importam com a conservação do prédio. É conviver com a mudança constante de vizinhos e o desconhecimento sobre a sua índole. É igualmente viver na incerteza de não sabermos se coabitamos num prédio com psicopatas - pessoas capazes de prometer por termo à nossa vida quando lhes recitamos o Código Civil e os advertimos das suas responsabilidades como condóminos.

Para evitar tudo isto só vejo uma solução: viver numa cabana no cimo de um monte, rodeado de cabras e ovelhas, horta diversificada, ar puro e pasto e nunca sair de lá. Habitar num lugar sem ascensores, vizinhos quezilentos, gente que involuntariamente acercamos da nossa casa e das nossas vidas de uma forma indesejada.

domingo, 6 de novembro de 2022

No tempo do 850 branco

Quando ultrapassamos as seis décadas de vida, começamos inevitavelmente a ter um repositório enorme de memórias do tempo passado.

Nos idos anos 60, uma época que compulsivamente me aflora a mente, talvez por nela ter vivido os tempos mais felizes da minha vida, somente as famílias da classe alta e média alta possuíam automóvel. O carro era um luxo a que muito poucas pessoas tinham acesso, a não ser que fosse uma viatura destinada ao trabalho.

Geralmente os automóveis duravam muitos anos no seio das famílias e não existia este moderno costume de mudar de veículo em cada x anos; tão pouco havia a facilidade de crédito que, nas suas diversas formas, está à disposição das pessoas nos nossos dias. Os Bancos privados eram escassos, pertenciam a famílias muito abastadas, aparentadas com o regime fascista e as taxas de juro cobradas eram altíssimas. Somente se concedia crédito a quem realmente desse garantias reais de poder pagar os empréstimos nas condições requeridas pelos Bancos, geralmente proprietários ou industriais.

A mobilidade social era muito baixa e a linhagem do nascimento, regra geral, definia a condição futura das pessoas. Quem nascia pobre, pobre também seria a sua prole. Para o liceu, iam os filhos das classes alta e média alta, com vista a depois frequentarem a universidade, enquanto os cursos comerciais e industriais destinavam-se aos filhos das classes economicamente menos favorecidas. Ser "doutor" era um luxo de ricos, reservado aos filhos de pais que podiam custear 4 ou 5 anos de Universidade. Os jovens oriundos das classes mais desfavorecidas frequentavam preferencialmente um ensino que rapidamente lhe desse acesso a uma profissão e ao mercado de trabalho.

Recordo-me que eu tinha 7 anos de idade quando o meu pai comprou o seu primeiro automóvel. Era um Fiat 850, modelo de1968, branco frigorífico, com os estofos vermelhos e o motor traseiro. Aquecia muito em filas de trânsito ou em subidas que exigissem esforço do motor e o espaço interior era bastante reduzido. No dia em que o meu pai o comprou, a família (os meus irmãos mais novos ainda não eram nascidos) decidiu ir ao Cristo Rei para estrear a novíssima máquina italiana, vinda de Turim para o agente da Fiat em Almada. Nunca me esqueci da matrícula - EF-42-31, pois fixar matrículas era um dos grandes passatempos da minha infância.

O meu pai, no início, era bastante maçarico a conduzir e enervava-se com facilidade, mas ninguém, para além da minha mãe, podia rir-se das suas constantes aselhices. Há mais de 6 anos que ele já não está entre nós, e, ainda que consiga ler os meus escritos, com toda a certeza não vai levar a mal que eu conte este episódio por ele protagonizado na estreia do 850.

Todos já estavam a bordo, o meu pai colocou o motor em marcha, engrenou a marcha atrás, não sem antes arranhar várias vezes a mudança da caixa de velocidades, mas o carro parecia não querer sair do mesmo sítio. Ele acelerava e nada. Entretanto começava a cheirar a queimado e o nervosismo instalava-se entre todos os membros da família. O meu pai bradava aos céus que a porcaria do carro novo já estava a dar problemas logo no primeiro dia.

Providencialmente, o dr. Silvestre, advogado com escritório frente à nossa casa, junto ao Externato Frei Luís de Sousa, amigo do meu pai e dono de um fabuloso Mercedes negro, passava na rua naquele mesmo instante. Foi ele quem disse para o meu pai destravar o carro, caso contrário nunca iriamos sair dali.

Lembro-me que a manobra de marcha à ré teve a assistência de grande parte dos populares que por ali passavam. Ditavam ordens para o meu pai virar o volante para a direita e depois para a esquerda. No percurso até ao icónico monumento da cidade de Almada, o carro foi abaixo inúmeras vezes, mas chegámos a casa sãos e salvos. Por ordem expressa da minha mãe, o pai teria de praticar sozinho durante mais algum tempo até que a família pudesse viajar em segurança. E assim foi. Ele, entretanto, tornou-se um excelente condutor e levou-nos muitas vezes pelas estradas da Europa e do Norte de África. Em 1971, o 850 foi trocado por um Ford Cortina, um sedan com três volumes que durou muitos anos na sua posse.

Em Almada, as famílias do nosso convívio e as pessoas em geral, eram identificadas pelo automóvel que possuíam. Os Inácio tinham um Taunus 12 M, com uma cor azul peculiar, quase verde; os Lamelas um Opel 1700 Rekord cinzento mate; os Valverde um Austin 1300 verde azeitona; os Rebelo um Ford Cortina 1300 branco; os Santos um Opel Kadett azul claro e assim sucessivamente. Existiam muito menos automóveis e os veículos eternizavam-se na posse dos seus proprietários. Quando alguém se queria referir a uma pessoa que o interlocutor não estava a reconhecer dizia-lhe: - É aquele que tem um Taunus 20M azul escuro!

Os tempos felizmente mudaram para uma maior equidade social, a disparidade entre pobres e ricos reduziu-se bastante e aqueles que se queixam das atuais condições de vida - felizmente não era o caso da minha família - não imaginam o que era ser pobre há mais de 50 anos atrás. Ninguém consegue ser feliz sem ter as suas essencialidades garantidas, bem como a saúde preservada, mas a abastança não é necessariamente um passaporte para a felicidade.

Creio veementemente que é possível ser-se feliz vivendo com os bens materiais essenciais, desde que tenhamos família, harmonia, amor, ética e doses substanciais de alimento espiritual. Se me fosse possível escolher uma viagem na máquina do tempo, não me importava regressar àquelas manhãs chuvosas de outono em que o meu pai me levava no Fiat 850 até à Escola Conde Ferreira. Sentia-me o menino mais importante do mundo quando chegava ao portão da escola.


Foto: Internet
Pode ser uma imagem a preto e branco de automóvel e estrada
Gosto
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