segunda-feira, 30 de julho de 2018

A distância de um abraço




Há doze anos que percorro com alguma regularidade a estrada entre a cidade do Lis e Almada. Sempre que posso, evito a auto-estrada e opto pela nacional 1. Atualmente chamam-lhe IC 2, mas nos meus tempos de menino, quando em família viajávamos até ao Porto ou em excursões à Serra da Estrela, chamávamos-lhe simplesmente a "estrada para o Porto". O troço da auto-estrada entre Lisboa e Vila Franca de Xira, foi inaugurado no ano do meu nascimento, mas somente em 1991, volvidos 30 anos, as duas maiores cidades do país ficaram ligadas por auto-estrada.

Nos anos sessenta, a modernidade acabava quando deixávamos o troço da auto-estrada em Vila Franca de Xira e nos embrenhávamos na estrada nacional, enfileirados atrás dos vagarosos camiões que transportavam mercadorias entre as duas cidades principais. A "Ponderosa", para os lados de Alenquer, era paragem obrigatória dos excursionistas. Um eventual arranjo entre os donos do café/restaurante e os motoristas, que a mim, criança, me passava despercebido, fazia com que todos os autocarros de excursão parassem naquele lugar, para satisfação das necessidades fisiológicas e um cafezinho.

Se a paciência abunda e a pressa de chegar não é soberana, vou sempre pela nacional. Conduzo uma Yamaha X MAX 250cc que, além de ser bastante confortável, económica e segura, faz velocidades de cruzeiro relativamente baixas, o que permite o deleite integral da paisagem. Quando conduzia a Yamaha FJR 1300 ou mesmo a Aprilia Caponord ETV 1000, chegava mais rápido ao meu destino, mas gastava incomensuravelmente mais combustível e as únicas sensações que retenho dessas viagens, são as ultrapassagens estrondosas e uma estranha incapacidade para conduzir no respeito dos limites de velocidade permitidos.

Hoje tenho tempo. É bom ter tempo e não viver confinado à ditadura dos prazos, dos horários, do tempo controlado e imposto à nossa vontade.

Sigo direito à Batalha e passo rente ao mosteiro, que agora tem umas barreiras acústicas celebérrimas, para salvaguarda dos impactos de ruído e poluição sobre o Mosteiro de Santa Maria da Vitória, declarado património da Humanidade pela UNESCO. E tudo por causa do "impacto ambiental" - adoro esta expressão, mas ainda gosto mais do vocábulo "sustentável". Tudo o que não seja "sustentável", nos dias que correm, não presta, pelo menos até à invenção de uma nova expressão ou teoria.

São Jorge, Cruz da Légua e Aljubarrota vão ficando rapidamente para trás. Saí de casa às 13h00, pois almocei bastante cedo, e sigo viagem em bom ritmo. Há pouco trânsito. Tenho o depósito atestado e não conto parar. A manhã, a principio bastante nebulosa, deu lugar ao início de uma tarde solarenga com uma temperatura convidativa ao passeio. Depois da Benedita e da Venda das Raparigas - o meu falecido pai tecia sempre piadas de franco mau gosto cada vez que passámos por este lugar - a paisagem começa a ser deveras encantadora. À minha esquerda, na Serra de Aires e Candeeiros, as enormes ventoinhas eólicas não cessam de rodopiar, enquanto um ou outro estorninho faz rasantes à roda dianteira da mota e os mosquitos vão-se estatelando na viseira do capacete. Pouco antes do corte para Rio Maior, a Serra dos Candeeiros fica para trás e a sensação de nos encontrarmos no Ribatejo adensa-se. A seguir vem Alcoentre, terra sobejamente conhecida por albergar um dos maiores estabelecimentos prisionais do país; e depois Aveiras de Cima e Aveiras de Baixo, terra que só tem significado para mim como nome dado a uma estação de serviço da auto-estrada.

Sigo na direção da Azambuja - terra da antiga fábrica da Ford - e Vila Nova da Rainha, que tem um avião de caça à beira da estrada, para relembrar que é o berço da aviação portuguesa e onde existiu a primeira escola militar de aviação. Depois, segue-se o Carregado, a localidade com o maior outlet do país e onde teve início a primeira viagem de comboio em Portugal, Castanheira do Ribatejo e finalmente Vila Franca de Xira. Agora, à medida que me aproximo de Lisboa, o trânsito é muito menos fluído. As paisagens campestres dão lugar a edifícios feios, urbanizações caóticas, lixo urbano, grafitis nas paredes, cartazes rasgados e estradas esventradas. Um pouco por toda a parte a pegada humana faz-se sentir. Os detritos da nossa existência tomaram conta do que outrora foram campos semelhantes àqueles que alguns quilómetros havia deixado para trás. Pouco já há para saborear no que à paisagem respeita e o interesse é chegar rápido.

Deixo para trás, Alhandra, Vialonga e Póvoa de Santa Iria. Todas partilham da mesma fealdade pragmática dos subúrbios. São ilhas onde se concentram pessoas de baixos recursos que não conseguem comprar ou arrendar casa na capital. De semáforo em semáforo, vou volteando pelo meio do trânsito, com manobras próprias de muitos anos de motociclista, até encontrar uma escapadela para a 2ª Circular em direção ao Eixo Norte-Sul. Antes das 15h00 já me encontro em cima da Ponte 25 de Abril a saborear uma aragem fresca que alivia o calor que sinto na cabeça. Já só penso em ver-me livre do capacete.

Subo a Avenida Bento Gonçalves e estaciono a mota frente ao Café Central de Almada. Acabei de perfazer cerca de 180 kms. A primeira personagem com que me deparo é o Zé Sobral. Tanto quanto recordo, nos anos 70, já invariavelmente o avistava todos os dias naquele local. O Zé Sobral mora a poucos metros do Central e fez toda a sua vida naquela circunscrição geográfica. Dantes, sei que vendia droga e ocupava-se de pequenos delitos, no intervalo de outros expedientes mais honestos. Encontro-o bastante magro, pele e osso, as tatuagens dos braços e do pescoço mirradas na pele queimada por muitos anos de sol, mas o mesmo semblante de sempre. Arruma cadeiras numa esplanada do outro lado da praça, levanta as mesas e varre o chão. Ao que me disseram, ganha para o tabaco e para alguma bucha. Tem uma doença qualquer. Não parece reconhecer-me ou, se calhar, finge não saber quem eu sou. Desvio o olhar em sinal de respeito pela sua condição e entro no café. Ao balcão peço um bolo podre. Há cinquenta anos atrás, elegi-o como o bolo da minha predileção e sempre que me davam uns trocos, juntava dinheiro para comer um. À época, era das maiores satisfações que a vida me dava. Uma homenagem ao travo das coisas simples.

A X Max 250cc ficou no parqueamento subterrâneo do Pingo Doce, pois Almada é terra de larápios. Logo em frente é a casa da minha mãe. Subo no elevador e rodo a chave na porta. Entro na sala de estar e a minha velhinha nem me deixa pousar a mochila. Levanta-se, abraça-me e diz: "Meu rico filho. Tenho rezado tanto por ti!". Também a abraço e ficamos juntos no sofá a ver a televisão sem som. A mãe é surda e não acha necessário subir o volume do som. E eu não me importo. Estamos juntos.

domingo, 29 de julho de 2018

Quando a bota não bate com a perdigota


É da natureza das coisas que as afinidades atraiam pessoas a interagirem entre si. Normalmente, a afinidade é definida quando há um encontro de identidades ou personalidades semelhantes entre duas pessoas. Ter afinidade é ter sintonia com as mesmas ideias, gostos e sentimentos característicos de outra pessoa. É também o sentimento de pertença a um mesmo grupo social e a convicção que ambos partilham de se encontrarem “ao mesmo nível”, seja por se acharem ambos atraentes, terem estaturas físicas semelhantes, níveis de cultura idênticos, ou, porventura, situarem-se no mesmo patamar social. Os motivos que levam duas pessoas a sentirem atração uma pela outra, são muitas vezes o somatório de características comuns e a empatia, dizem, é a base para um bom relacionamento. 

Mas se é verdade que comummente vemos médicos casados com médicas e/ou enfermeiras, professores consorciados com professoras, advogados com companheiras que trabalham na área da Justiça, membros do exército e dos corpos policiais que encontraram a sua parelha nas instituições a que pertencem e invisuais ou surdos-mudos que encontram parceiro/a em virtude de uma deficiência comum, as exceções não são tão insignificantes como se possa julgar. 

É natural que encontremos a nossa cara-metade dentro da mesma profissão ou no seio dos grupos onde mais interagimos, mas as redes sociais e a possibilidade atual de se conhecer alguém fora do nosso universo socioprofissional e geográfico, vieram possibilitar o que outrora seria estatisticamente improvável. Conheço, inclusive, pessoas que desejariam conhecer alguém, com intuitos relacionais, de preferência, fora do seu circuito profissional e social. No entanto, as regras que ditam a aproximação entre duas pessoas, ainda continuam a ser a empatia e o sentimento de identidade comum. 

Decidido a comprovar empiricamente estes pensamentos, desde há alguns dias que observo com curiosidade os casais que passam por mim. Para não parecer um voyeur ou um qualquer tarado em fase maníaca, decidi que o melhor seria observar as pessoas numa grande superfície onde, à falta de imaginação fértil, os casais passeiam regularmente aos fins-de-semana. As pessoas estão entretidas a ver as montras e eu posso estar tranquilamente sentado num daqueles sofás bué de confortáveis, colocados à disposição das almas mais fatigadas. 

Observo o par que está sentado à minha frente. São o protótipo do casal aldeão de meia-idade que, de quando em quando, vem à cidade, mais concretamente, ao shopping, lavar as vistas com coisas chiques. Parecem estafados da caminhada pelos longos corredores e nota-se que não se sentem à vontade com os trajes domingueiros que envergam. Ela usa uns brincos de oiro parecidos com os da minha avó materna, que nunca os tirava, e que um dia vi na palma da mão da minha mãe. Fora ela, minha mãe, quem lhos retirara das orelhas já no leito de morte; e, sendo a única filha sobreviva, ficara com eles. 

O marido usa um chapéu dos anos 50, suspensórios de elástico e tem uma barriga tão proeminente que parece ir rebentar a qualquer momento. Não interagem um com o outro, nem há quaisquer mostras de carinho ou cumplicidade. Limitam-se a estar sentados em silêncio e olham no vazio do longo corredor. Estão provavelmente cansados e a ganhar forças para o regresso a casa. Mas parece-me evidente que estão unidos por um destino comum, incapazes de viver um sem o outro, quem sabe, juntos o tempo de uma vida, até que a morte os separe. 

Ao meu lado sentou-se um casal relativamente novo. Não têm mais de trinta e poucos anos. São ambos obesos e comem com sofreguidão o conteúdo de dois baldinhos de gelados Häagen-Dazs, acabados de comprar na loja em frente. Cada um deles exibe uma tatuagem semelhante, desde o ombro até ao antebraço, em forma de flor de cor púrpura e azul anil. Vestem roupas muito idênticas e são fisionomicamente parecidos. Não tenho dúvidas que nasceram marcados para se conhecerem. Ela foi a primeira a acabar o gelado. Limpou-se a um lenço de papel e já está a surfar no telemóvel. Utiliza com bastante destreza o polegar direito para fazer deslizar as páginas que vão passando no écran. Usa e abusa do “bué da fixe”, ri alto, sem se importar com quem está ao seu redor, enquanto vai visionado publicações no Facebook. O companheiro, ainda de volta da lambedura do gelado, vai deitando o olho ao telemóvel dela e, sempre que não tem a boca cheia, exclama com veemente aprovação: “Épico, minha, épico!”. 

Nos meus tempos de estudante liceal, o género épico era uma narrativa em versos, que enaltecia episódios heróicos da história de um povo. Acho curiosa a apropriação que a juventude atual faz destes termos para uso em contextos diametralmente diferentes. 

Não tenho qualquer dúvida de que esta parelha nasceu para se complementar. Houve tempos em que ser gordo era sinónimo de bem-estar social e algo benigno. Magros eram os pobres. Na atualidade inverteram-se os valores e a realidade – os alimentos ultraprocessados e mais baratos ao alcance dos menos abonados criaram obesos, com acrescento de culpa. Mas nada disto gera preocupação neste anafado casal que, suspeito, muito faz ranger as molas do colchão lá por casa. 

A minha vista concentra-se agora num casal gótico que acabou de passar. Estando nós em Julho, acho estranho ver estas personagens por aqui, uma vez que o Festival Extramuralhas, um dos maiores eventos do género a nível europeu, dedicados à cultura gótica, que acontece todos os anos na cidade de Leiria, tem tradicionalmente lugar nos últimos dias de agosto. 

Usam piercings em ambas as orelhas, as tatuagens cobrem-lhes quase por completo as partes do corpo expostas, trajam de negro e calçam fracas imitações de botas Doc Martens. Ela tem o cabelo pintado de negro azeviche e os lábios de roxo. Ele tem o cabelo rapado e a cabeça tatuada com símbolos esotéricos. São fiéis representantes da identidade do grupo gótico e fazem questão de exibir os símbolos e comportamentos comuns associados à tribo a que sentem pertencer. 

Foi em Londres, corria o ano de 1978, que tomei contacto pela primeira vez com esta subcultura urbana, que teve início no Reino Unido durante o final da década de 1970 e início da década de 1980. Os meus 17 anos de idade e especialmente o facto de viver num país recém-saído de 40 anos de trevas, não me conferiam qualquer preparação para o que me foi dado ver na capital inglesa no final dos anos 70. O que agora observo neste casal passante é uma reprise mal-amanhada das personagens desse movimento de contra cultura, o punk - descaradamente violento, quer nas expressões musicais, no culto gratuito da discórdia ou na agressividade do vestuário – que à época vi surgir na Grã-Bretanha e do qual os góticos são uma variante suave. 

O casal está em perfeita consonância. Aliás, nem imagino um gótico gostar de um tipo como eu. Um gótico só pode juntar-se a outro gótico, tal como um crente fervoroso de um culto religioso não se imagina emparelhado com um ateu ou um praticante de um culto oposto. E o curioso é que eles devem achar que eu sou um careta insignificante, farinha do mesmo saco, com a mesma petulância com que eu, em pensamento, os rotulo de outsiders e inviáveis. Nestes casos, pertencer-se a uma tribo comum, é uma condição inultrapassável para um acontecimento relacional de cariz amoroso. 

O meu olhar dirige-se agora para um casal na casa dos 40 anos. São os dois altos, bonitos, com ar inteligente e saudável. Vestem roupas caras mas bastante confortáveis. Ele calça sapatos de vela, polo Ralph Lauren e calças chino Sacoor Brothers, tudo a condizer. A mulher traja um vestido branco com bordados azuis e calça uns ténis de marca. Não se limitam a ver as montras, pois transportam sacos com os logótipos de lojas de referência. São pessoas com posses. Passam de relance, mas consigo de imediato ver neles a empatia necessária à completude de uma casal. Nota-se que “foram feitos um para o outro”. 

Decido levantar-me e dar uso às pernas. Erguer-me desta nuvem de preguiça, que me faz estar refastelado no sofá verde, sem me apetecer fazer mais nada que não seja observar os casais que passam, ignotos da minha aventura voyeurista. 

Dirijo-me à porta de saída do shopping e passa por mim um casal assaz curioso. Ele tem o cabelo rapado e uma longa barba com reminiscências jihadistas. Da orelha direita, pende-lhe um brinco de argola tão grande, que dava para pendurar as chaves de casa e mais algumas utilidades. Veste umas jardineiras e calça uns ténis simples. A rapariga é loira, bastante bonita e é seguramente 10 cm mais alta do que ele. Além disso, é mais nova. Usa umas calças às riscas, que lhe realçam as formas voluptuosas, e uma túnica curta. Parecem formar um casal feliz, descomplexado e, com franqueza, não os imaginava juntos. É a primeira desconexão a que assisto ao fim de meia hora de observação. Mas depois, já na rua, comecei a ver com mais regularidade outras assimetrias e constatei que a regra tem tantas exceções, que chega a ficar ameaçada a sua condição de regra. 

Enquanto me dirigia para o automóvel, absorto no pensamento da inutilidade de todo este meu exercício, dei uma mirada instintiva na enorme superfície vidrada das portas do centro comercial e, de relance, observei a minha figura refletida. Assustei-me com a imagem que a vidraça me devolveu, pois não encontrei semelhanças mínimas com qualquer das criaturas objeto da minha observação. E todas as mulheres que passaram por mim e que imaginava podendo fazer parelha comigo, tinham a seu lado um indivíduo totalmente diferente da minha pessoa. Posso imaginar que jamais me escolheriam como parceiro, mas procuro refúgio no consolo da exceção que contraria a regra, na bota que não bate com a perdigota. E se as afinidades são cruciais para uma comunicação plena e para o bom funcionamento de uma relação amorosa, muitas vezes são as particularidades do outro, as diferenças, e as assimetrias que fazem alguém apaixonar-se. Se no final a coisa resulta bem, é outra conversa que aqui seguramente não vai ter lugar.

Das dores crónicas




Já escutei chamar poetas do quotidiano aos cronistas dos nossos dias, talvez por causa do seu discurso que se move entre a reportagem e a literatura, entre o oral e o literário, entre a narração impessoal dos acontecimentos e a força da imaginação.


Na crónica, há uma ideia pacificamente aceite de que, mais do que um diálogo com o leitor, existe um forte monólogo com o sujeito da enunciação, já que a subjetividade percorre todo o discurso e o derramar das palavras ocorre muitas vezes ao sabor da vertigem do pensamento.

Trata-se um exercício livre, sem deadlines, imposições temáticas ou preocupações com o juízo de quem nos lê. É por isso que gosto particularmente deste discurso livre, errático, que oscila entre o profundo e o brejeiro e cujo valor reside essencialmente na genuinidade despudorada das palavras.

Eu não sei se o que me proponho publicar são crónicas ou simplesmente prosa livre. Prefiro de longe a não rotulagem e só por comodidade chamarei crónicas aos escritos que tenciono postar - este feio neologismo - com alguma regularidade nesta rede social (somente visíveis para algumas pessoas). A escrita é (quase) sempre uma catarse, uma espécie de alívio e libertação e, sobretudo, uma forma de falarmos sem sermos interrompidos.

Há dores crónicas que nada têm a ver com as ditas crónicas das letras, mas que afligem diariamente muita plebe que não sabe o que fazer com tamanha frustração. A dor de cotovelo é um paradigma desta maleita que prolifera e é identificável em quase todos os lugares. É constatável nas conversas nos cafés, nos restaurantes, nos espaços públicos em geral, mas sobretudo nas redes sociais e chega a nausear, tanta a repetição da boçalidade falha de originalidade.

É fácil detetar os crónicos da frustração e da inveja pelos sinais de baixa auto-estima que mimeticamente emitem, pois as frases que verbalizam ou escrevem são invariavelmente as mesmas: "tenho a universidade da vida"; "aquele gajo lá por ser doutor não deixa de ser mais burro do que eu"; "sou uma pessoa simples (leia-se: inculta, iletrada) e (só) gosto de pessoas simples ( as outras, como não as entendo e ofendem-me por serem diferentes de mim, odeio-as); " na fábrica substituía muitas vezes o engenheiro e até sabia mais do que ele"; "não sou doutor mas não sou burro!"; " eu toda a vida trabalhei e não estive sentado a uma secretária"

Os exemplos multiplicam-se e não serei o único que está cansado de escutar e ler impropérios deste género a despropósito de coisa alguma. Basta, digo eu! E é para mim um alívio falar hoje destas coisas. Ninguém é mais do que ninguém e todos temos o nosso valor. A nossa sabedoria soçobra perante a grandeza da nossa ignorância em assuntos que não dominamos e desconhecemos em absoluto. O que seria de mim sem os sapateiros, os canalizadores, os médicos, os padeiros, os enfermeiros, os informáticos, os engenheiros, os agricultores, os pescadores, os serralheiros? Nós somos aquilo para que nos treinámos durante o percurso da nossa vida e, pela lógica da especialização, ninguém consegue ser bom em tudo. Todos dependemos uns dos outros e temos de ter a humildade de aprender e confiar naqueles que treinaram certas valências que para nós são absurdos desconhecidos.

As coisas existem. Estão lá. Não vale a desculpa eterna, a lamuria recorrente, a inveja peçonhenta e sabe-se lá o sacrifício que muitos fizeram para alcançar os patamares a que se propuseram. Quem quer uma coisa tem de lutar para o conseguir, fazer escolhas, desistir de algo em prol de prioridades, dispor-se ao sacrifício. A regra é igual para todos. Não sei de outra forma de conseguir alguma coisa que tenha desejado muito. O contrário é a conformação com uma dor crónica de inveja: o eternizar de uma mediocridade auto-infligida e desejada.