terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Amanhã



Aprendi na História que o costume de dar os parabéns e de celebração com o requinte de velas acesas, nos tempos antigos, era para proteger o aniversariante de demónios e garantir segurança no ano vindouro. Entretanto, vencidas que foram as resistências da Igreja, face ao paganismo do costume, a prática enraizou-se e ainda assim se celebra o aniversário de alguém nos dias de hoje.

Por razões que não convém revelar nesta escrita, há muito tempo que não celebro o dia dos meus anos. Limito-me a agradecer, com sinceridade, às muitas pessoas que perdem um bocadinho do seu tempo para me parabenizar. E nisso o Facebook é um auxiliar precioso, pois, a menos que não revelemos no perfil a data do nosso nascimento - muitas senhoras não o fazem pois gostam de manter o mistério sobre a sua idade real -, os amigos e conhecidos são sempre alertados acerca do momento em que determinado fulano cumpre mais uma volta à roda do Sol.

O ano de 1961 foi de sobressaltos. Nasci um mês depois do Henrique Galvão ter chefiado um assalto ao paquete Santa Maria, com o objetivo de provocar uma crise política contra o regime de Salazar. E, precisamente no mês seguinte, aquele em que nasci, um grupo de angolanos, munidos de facas e catanas, efetuou um assalto à prisão de Luanda e à esquadra da polícia, sendo este ato considerado como o início da guerra colonial portuguesa.

Entretanto, no contexto da Guerra Fria, na Europa, as autoridades da ex-República Democrática Alemã encerravam a fronteira com a Alemanha Ocidental e iniciavam a construção do muro que ficaria
conhecido como o Muro de Berlim.

Alheio a tudo isto, na cidade de Setúbal ( até ao facto de não ser uma criança desejada, mas fruto de um "acidente"), um bebé franzino, o segundo filho de um casal, mais desavindo do que amoroso, dormitava algures num berço no rés-do-chão esquerdo de um prédio familiar.

A história deste petiz, saído da casa paterna com 17 anos de idade para tomar a vida a seu cargo, prestes a fazer 61 anos, tem décadas de peripécias dignas de figurar numa novela camiliana; mas isso é o que cada um de nós sempre diz acerca da sua própria narrativa.

Entretanto, o repositório de memórias em que nos transformamos, esse ninguém nos tira, a menos que alguma demência apague o disco rígido das nossas recordações.

Chegamos ao mundo como se estivéssemos chegando a um país desconhecido para uma estada por tempo indeterminado. Mas não é verdade. O nosso tempo é limitado. Precisamos aprender como viver neste novo lugar e vamos encontrar no caminho pessoas que vão nos amar e nos ajudar a lidar com a vida; e outras que não vão gostar de nós e que nos vão tornar a vida mais difícil, mas temos de aprender a lidar com isso. A resiliência é uma prova de vida, a nossa sobrevivência.

Assim é o viver. Sabemos que estamos de passagem. Sabemos que nascemos para morrer, e que cada dia a mais é um dia a menos. Vivemos com a angústia da morte atrás de nós, embora a maior parte do tempo façamos de conta que ela nunca vai nos alcançar. Mas só esquecendo a morte é que é possível seguir em frente e dar um sentido à nossa vida. Viver como se houvesse sempre um amanhã.

Leiria, fevereiro de 2022