sábado, 21 de dezembro de 2019

Vade retro Drugstores





A minha embirração com centros comerciais é antiga e de todas as minhas mitologias esta é porventura uma das mais persistentes. Sempre detestei aqueles ambientes estereotipados, claustrofóbicos, pejados de pessoas aos encontrões, com uma iluminação surreal, enfeitados de avenidas com lojas de um lado e do outro, onde as vitrinas, quais meretrizes apelativas, contam com a rendição absoluta de muitos às marcas da moda - que pretensamente lhes acrescentam algum prestigio social.

Se me pedissem para balbuciar alguns neologismos que bem caracterizassem este meu sentimento deplorativo, talvez que as expressões "forumfóbico" ou "shoppingfóbico" me assentassem como uma luva.

Em Lisboa, nos anos 70, assisti ao desabrochar da maioria dos Centros Comerciais, ou Drugstores, como também se lhes chamava. O Drugstore da avenida, "Drugstore Sol a Sol", com entrada pela Avenida da Liberdade e o "Drugstore Tutti Mundo", na Avenida de Roma, ainda abriram nos finais dos anos 60. Mas, mais tarde, outros maiores foram abrindo um pouco por toda a cidade. Era uma moda norte-americana que tinha vindo para ficar, tal como a Coca Cola e os hambúrgueres.

O verdadeiro boom dá-se precisamente na década de 70. O Apollo 70 (homenagem à nave espacial), ao Campo Pequeno, com bowling (uma novidade na capital), jogos americanos, uma delegação da Valentim de Carvalho (discoteca), um estúdio de cinema e uma cafetaria, entre outras lojas, fazia as delícias dos lisboetas e dos habitantes das cidades circunvizinhas. Lembro-me de ir propositadamente lá para comer uma banana split, uma novidade em absoluto à época, e de ter sido uma das experiências gastronómicas mais felizes da minha juventude.

Seguiu-se o aparecimento do "Centro Comercial Castil", na Rua Castilho, do "Caleidoscópio", do "Imaviz", na Avenida Fontes Pereira de Melo do "Centro Comercial Fonte Nova", em Alvalade; e, já nos anos 80, o aparecimento do "Shopping Center das Amoreiras", arquitetado pelo celebérrimo Tomás Taveira, na altura o maior de Portugal. A nossa parolice era de tal monta que recordo excursões vindas do norte propositadamente para verem a cascata artificial do "Imaviz", ou para os excursionistas experimentarem os elevadores e as escadas rolantes das Amoreiras. O país vivia embasbacado com os centros comerciais e juntamente com esse delírio também surgiu um novo tipo social: as "meninas do shopping": loiras pestanudas, carregadas de quilos de maquilhagem, com ar e futilidade no lugar do cérebro e ambições de vida brejeiras, mas que atraiam muita clientela para o consumo; e sobretudo mirones.

Cedo, os centros comerciais desapareceram do meu radar. Deixei de os frequentar porque sempre foram um ambiente hostil à minha maneira de estar e ao recato que aprecio. Entro nalgum em situações in extremis, quando tenho de comprar um livro ou algo que, face à política comercial concentracionária que insiste em aniquilar o comércio tradicional, sei que só posso encontrar numa Fnac ou numa Bertrand. Desespero com a dificuldade do estacionamento e, de uma forma geral, com tudo o que por lá se passa.

Sei que as cidades mudam, que a viabilidade financeira dita o fecho de cinemas, lojas tradicionais, cafés e edifícios emblemáticos. As cidades estão cheias de lugares desses, locais de encontro que de repente fecham e por vezes nem mudam, ficam décadas entaipados a aguardar uma decisão judicial ou uma qualquer solução económica que lhes confira novo destino.

O Natal é a época do ano em que precisamente se enfatizam todas as coisas que me fazem detestar centros comerciais. Para além da tralha abundante que por lá existe e deambula, sou interpelado por jovens que me querem vender cartões de crédito, outros que me oferecem papelinhos para snifar perfumes; e, como se tudo não bastasse, sou obrigado a escutar em repeat musiquinhas de natal, enquanto vou avançando aos tropeções até à Fnac ou à Bertrand - os únicos oásis que me merecem.

tamanhos sacrifícios. 

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

A Elsa deprimida

A depressão Elsa nome de flor miosótis nas minhas memórias juvenis assobia flauteados por entre as frestas das janelas enquanto a água pluvial cai copiosamente alagando o chão e os sistemas de saneamento básico rebentam pelas costuras saturados com quantidades que não conseguem digerir e bolsam como crianças engasgadas no vómito do leite e as pessoas amontoam-se à porta do hospital à espera que a chuva passe mas ela não passa e já quase ninguém consegue entrar ou sair pela porta das consultas externas tal a quantidade de receosos se aglomerou para ver os desmandos da Elsa e os vultos brancos que correm fugindo da chuva que devem ser médicos e enfermeiros e um deixa cair um estetoscópio no chão e volta para trás e os carros que se movem com vagar em passo de funeral com os vidros embaciados deitam fumos quentes que reagem histrionicamente ao frio exterior evaporando-se com rapidez exagerada com vultos lá dentro que se assemelham a espetros e então não por coragem mas porque tem de ser agarro na mota faço-me à estrada e venho para casa com a Elsa deprimida à pendura e chego à garagem muito parecido com o Gene Kelly no Singin' in the Rain quando lhe deitavam água para cima para parecer que estava a chover em dia de depressão feminina.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Simplício bocejou



A luz da tarde morre nos telhados dos prédios fronteiriços, engalanados por dezenas de antenas, que fazem vagamente lembrar os ramos de alguns quadros de Miró. Ao fundo, o Tejo, mulher vaidosa, veste-se com um rasto de luz doirada que quase toca a outra margem. Na Ponte 25 de Abril, silhuetas negras, pontos minúsculos, movem-se em direções opostas numa constância de relógio de pêndulo. No estuário do rio, são várias as embarcações que se movem no vagar do final da tarde deixando atrás de si um rasto de espuma branca na água esverdeada.

A vista da estreita varanda é o luxo maior do meu apartamento. Trata-se de um prédio pombalino de cinco pisos, com escadas de madeira que rangem como velhas cheias de ciática, forrado de azulejos cor de esmeralda, testemunha silente de milhares de histórias. Pouco a pouco, os candeeiros públicos acendem uma luz trémula, que se mistura com os fiapos dos raios de sol, a que se juntam o chiar dos carros eléctricos e o matraquear corpulento dos motores diesel dos autocarros da Carris, que sobem a custo a íngreme Calçada. Sei que não tarda é noite. Estamos no inverno.

Bocejo ao mesmo tempo que coço a cabeça. Encontro-me diante do monitor luminoso do computador e pareço hipnotizado com a luminescência do écran. Não me surgem ideias e o prazo para a entrega da crónica semanal que escrevo para o jornal regional aproxima-se do fim. Mais uma falha da minha parte e é certo que arranjam outro cronista para preencher a pequena coluna que ocupo há vários anos. O redator nunca me perdoou o facto de, por duas vezes, ter utilizado textos meus, embora adaptados, mas já publicados noutros espaços, para o preenchimento da minha crónica semanal. A única exigência que o jornal me faz é a de que disserte sobre temas atuais e controversos, se possível, sem fazer desvios acentuados à linha editorial do semanário, que é manifestamente de esquerda. A temática, de resto, é da minha lavra, bem como o curso que quiser imprimir à escrita.

A liberdade de expressão é bastante apreciada pela equipa de redação, mas Elias, o redator-chefe, nunca se esquece de me relembrar que as crónicas, além de terem de ser textos curtos, devem tratar de acontecimentos corriqueiros do quotidiano; e por estarem tão extremamente conectadas ao contexto em que são produzidas, com o passar do tempo perdem sua “validade”, ou seja, ficam fora do contexto.

Elias tem um doutoramento em Comunicação Social e é respeitado entre os jornalistas que compõem a equipa do semanário. Apesar de não ter grande verve como escritor, todos reconhecem nele metodologia e precisão e uma capacidade de liderança indiscutível. Eu próprio lhe reconheço bastante mérito nesse campo.

Nunca se é totalmente livre, cogito, e basta que haja uma qualquer relação de dependência, ainda que mínima, para que o resultado da ação não dependa inteiramente de nós. O escritor, o artista, o criador, o compositor, integram profissões onde, porventura, a liberdade é sobejamente maior do que noutros ofícios. Desagrilhoados dos horários rotineiros e escrupulosos que ocupam a maioria da população ativa, os criadores recebem uma espécie de carta de alforria que os liberta, para poderem fazer nascer algo e lhe darem forma e substância. E essa espécie de espaço vital, onde o tempo e o modo são decididos pelo criador, parecem ser condições impreteríveis para que algo possa acontecer. Mas os deadlines existem, seja nos jornais ou nas revistas. Muito para além do entendimento e respeito pela condição do criador, há negócios a decorrer e as empresas movem-se segundos os objetivos que lhes estão na origem: gerar o máximo de lucro dentro daquela esfera de atividade.

Lendo várias entrevistas com Lobo Antunes, que considero o escritor mais contracorrente de todos os que integram o panorama atual da gente que escreve e publica com sucesso, parecemos ficar com a impressão de que ele é completamente livre de redigir e publicar o que lhe dá na real gana e pouco se importa com as críticas ou com o volume de vendas dos seus livros. A sua conhecida arrogância e sentido de humor cáustico assim o indicam. Mas não é de todo verdade. Antunes é bastante sensível às críticas e sofre, mais do que por nunca ter alcançado o almejado Prémio Nobel da Literatura, pelo facto dos seus livros não terem o nível de vendas de outrora. O enfant terrible das letras portuguesas, que fazia parar o país literário cada vez que saía um livro seu, que tinha milhares de exemplares vendidos e edições esgotadas em poucos dias, desapareceu. E desengane-se quem pensa que os seus livros de crónicas se vendem melhor. Quem gosta das crónicas de António Lobo Antunes vai lê-las na revista Visão e não compra o livro. E quem sou eu, Simplício, junto à vasta sombra de Lobo Antunes?

Olho de novo para o écran do computador e reparo que a página deixada em branco - ausentara-me por breves instantes para me deleitar com a vista magnífica que desfruto da pequena varanda, da mansarda que ocupo no quinto piso - apresenta agora uma série de caracteres indecifráveis: “qwedddddddddsa btyy”. Mefistófeles, o gato persa que comigo partilha a vida e a habitação, esteve a dar marradinhas no teclado e deixou impressa a sua pegada felina.

Olho para o relógio e fico assustado. São 18h00 e antes das 21h00 a crónica tem de estar pronta e revista para ser enviada por mail. No dia seguinte, sábado, sai o jornal e a minha crónica habitual ocupa uma coluna que preenche cerca de um terço de uma das páginas centrais do semanário. Penso em temas da atualidade aos quais possa acrescentar um olhar pessoal, mas tudo me parece de uma banalidade confrangedora. O pensamento apenas me fluí para devaneios sem consistência capaz de gerar um texto.

O meu nome de baptismo, Simplício, sempre foi motivo para chacotas, mas, com o passar dos anos, que também nos faz importar cada vez menos com aquilo que possam pensar de nós, habituei-me a ele e agora até gosto. Antigamente era comum os pais colocarem nomes estranhos e complexos aos filhos, enfeitados de vários sobrenomes, pois na época isso representava poder, glamour e riqueza. Tinha sido por insistência da minha mãe que o nome Simplício me havia sido posto. A minha mãe era uma fervorosa admiradora dos filmes portugueses dos anos 40 e Simplício Costa (António Silva), mais conhecido por Costa do Castelo, um homem preguiçoso mas um grande guitarrista, era de longe o seu personagem predileto. Então a sua única criaturinha tinha de ser baptizada com o nome do seu herói cinematográfico.

Sou sexagenário, embora aparente ter menos idade. Moro numa mansarda arrendada, distante do centro da cidade e todos os dias apanho o elétrico para me dirigir à Baixa. Vivo de uma magra reforma que os anos de serviço como professor me proporcionam. A escrita, paixão antiga, levou-me um dia ao jornalismo, embora nunca tivesse tido carteira profissional. Desde muito novo, comecei a enviar textos para os jornais, para algumas revistas e editores, sempre com a esperança de um dia ver um dos meus escritos publicados. E foi assim que as coisas aconteceram. De colaborador ocasional, tornei-me cronista efetivo e ganhei um espaço próprio no semanário.

Preciso de me concentrar na crónica mas sinto-me incapaz de tal exercício. Nisto o telefone toca - um trim trim que mais parece o som da campainha de uma bicicleta pasteleira, daquelas que antigamente circulavam pelas aldeias – e interrompe os sons habituais que comigo coabitam o apartamento. Atendo o telefone mas do outro lado desligam. Não raro, fazem-me isto e parece que alguém quer propositadamente perturbar-me. Já pensei em indagar junto da operadora sobre a possibilidade de detetar a autoria dos telefonemas, mas o número nunca se encontra identificado.

Algures, num dos andares abaixo do meu, escuta-se o arrastar de móveis e, mais longínquo, o choro de birra de uma criança. Quando a imaginação falha, qualquer ruído distrai-me e funciona como uma ótima desculpa para a falta de ideias. Fico levemente irritado.

Habito já há bastantes anos o piso cimeiro, que sofreu obras recentes por parte dos proprietários. A renda é coisa simbólica e de vez em quando os proprietários escrevem-me cartas com ofertas generosas para que deixe o apartamento vago. Nunca aceitei e o destino das cartas é invariavelmente o caixote do lixo. Sinto-me incapaz de enfrentar mudanças e somente o pensamento de tal cenário me apavora. A inquilina originária era a minha última companheira, falecida há quase uma década e eu herdei a condição de arrendatário.

No rés-do-chão direito mora uma velha solitária que todos dizem estar louca há muitos anos, devido ao desgosto provocado pela morte do seu único filho, em terras angolanas, na guerra ultramarina. Ninguém sabe ao certo o seu verdadeiro nome, pois, sempre que se referem a ela, dizem: “olha, lá vai a maluca!”. É comum falar sozinha até altas horas da noite, rir e barafustar com pessoas invisíveis. A sua última loucura é atirar vasos e pedras para cima dos carros que se atrevem a estacionar debaixo das suas janelas. Na polícia, as queixas amontoam-se, mas nada acontece à velha. E ela ri, ri-se de tudo. Certo é que ninguém que a conheça se atreve a estacionar o automóvel ao alcance dos seus arremessos.

O rés-do-chão esquerdo só é habitado durante o verão. A proprietária, uma viúva herdada, cujo marido enriqueceu em terras sul-africanas, passa o inverno em Cape Town e só regressa a Lisboa para passar os meses do verão. Amante do calor, recusa enfrentar o inverno português, a chuva, o frio e os dias cinzentos. Talvez por estar habituada a residir num país extremamente violento, mandou instalar uma grade de ferro, pintada de branco, na entrada da porta do seu apartamento. Não tardaram denúncias na Câmara, porque se trata de um edifício histórico e houve alterações não autorizadas. Dizem por aí, pelo que me confidenciaram no café fronteiriço, que todos julgam ser eu o delator, só porque sabem que escrevo coisas direitinhas e fui professor. Ao que parece, a denúncia também foi escrita de uma maneira muito direitinha. Uma cartinha toda composta e detalhada que chegou à Câmara Municipal. Já cá esteve o fiscal.

No primeiro andar direito mora uma família ucraniana. A mulher trabalha a dias desde que se levanta até à noitinha, enquanto o marido, que responde a toda a gente que lhe pergunta “não tem trabalha”, beberica imperiais e taças de branco na taberna do Mirmécio. Os filhos são cinco, um deles já nascido em Portugal, e a Sevtlana desunha-se mais de dez por horas por dia nas limpezas para alimentar os filhos e as beberagens do marido. Ela tem 35 anos mas aparenta ter mais de 50. No leste europeu, não é incomum o alcoolismo fazer parte dos agregados familiares e ela parece aceitar com alguma placidez o seu destino. Vejo-a sempre bem-disposta e sorridente. Aos domingos, a família passeia junta e ela agarra-se ao marido por um braço, com uma ternura maternal e conformista. São muito barulhentos, especialmente aos sábados à noite. Convidam metade da comunidade ucraniana residente na capital, embebedam-se, dançam, riem e fazem uma algazarra por mim audível no 5º andar. A polícia já foi chamada algumas vezes – não se sabe por quem – mas, tal como a maluca, que apedreja automóveis indiscriminadamente, para além das ameaças e dos pedidos de desculpa, nada acontece.

O primeiro andar esquerdo está desabitado. Dizem que um velho que ali morava morreu e o filho, seu único herdeiro, tem a casa ao abandono desde então. A casa nunca mais foi usada ou limpa e já passaram cinco anos. De vez em quando, um cheiro nauseabundo desprende-se lá de dentro e invade as escadas. Ditoches de mau gosto que circulam no tasco do Mirmécio, atribuem o odor pestilento aos restos mortais do velho, que se calhar nunca chegou a ser enterrado. Ninguém foi ao seu funeral, nem mesmo o filho. Vivia sozinho e sozinho morreu naquela casa. Dizem, entre taças de branquinho, que o velho está há cinco anos a apodrecer na cama.

No segundo andar direito mora uma professora do ensino básico, cinquentona, feia como a noite, com uns dentes dianteiros demasiado salientes que não lhe cabem dentro da boca. Mesmo com a boca fechada, os dentes ficam a morder o lábio inferior e quando coloca baton, ficam pintados de vermelho Ferrari os dentes e os lábios. Sempre que me cruzo com ela nas escadas, assusto-me com a forma como ela me sorri: a boca escancarada e os dentes em posição de abocanhar o que esteja ao seu alcance. Evito-a, até porque não simpatizo com as mesuras com que me trata e as tentativas para entabular conversação. É solteira, divorciada, ou viúva, ninguém sabe ao certo e lá no Mirmécio também se especula que ela deve ter abocanhado todos os homens da sua vida, daí estar só.

No segundo esquerdo, mora um casal de lésbicas. São ambas quarentonas e trabalham num ministério qualquer para os lados das avenidas novas. São inquilinas pacatas e não produzem ruídos desagradáveis. Cumprimentam toda a gente com cordialidade, mas mantêm recato sobre as suas vidas. Possuem dois pincheres castanhos em miniatura e todos os dias de manhã cedo levam-nos à rua, ao jardim que fica ao fundo da rua, para fazerem as necessidades. Por vezes, ao final do dia, repetem o mesmo percurso. Andam sempre juntas, seja para ir às compras ou sair a algum lado. Somente o seu ar arrapazado, o cabelo curto, a ausência de maquilhagem ou quaisquer adereços femininos, denunciam as suas preferências sexuais. Tanto quanto me lembro, nunca escutei alguém dizer mal delas.

O terceiro andar direito e o esquerdo estão ambos vazios e em obras. Consta que foram comprados por um emigrante que está em França e que se prepara para pedir balúrdios pelas futuras rendas.

No quarto andar direito, mora uma violinista. É uma rapariga jovem, com cerca de 20 e poucos anos. Deve ser estudante, pois entra em casa bastante tarde e durante a manhã não se escuta qualquer ruído. Deve dormir até tarde. Todos os dias, perto da hora do almoço, oiço-a debitar escalas durante mais de duas horas. Somente depois desses exercícios consigo escutar algumas melodias. Não recebe visitas e parece ser uma jovem bastante solitária. Nunca a vi acompanhada.

O quarto andar esquerdo é habitado por um velhote que dizem ser pintor e poeta. Raramente me cruzo com ele, mas a sua figura, de uma magreza excessiva, o olhar penetrante, o nariz adunco e o cabelo totalmente branco, fazem-me lembrar o Mário Cesariny, uma das maiores vozes da nossa poesia e o principal representante do surrealismo português. Não sei o nome do inquilino do quarto esquerdo, mas imagino-o alguém como o Cesariny, que nunca teve medo da liberdade e deu de barato qualquer verniz para se apresentar aos seus contemporâneos tal qual era. Assumidamente excêntrico, provocador e homossexual.

Por último, nesta pequena mansarda, ensanduichado entre os restantes inquilinos e o telhado, moro eu. Devo a ser o personagem menos interessante de todos quantos habitam este prédio, construído após o terramoto de 1755, a mando de um tirano marquês, que um dia mandou cuidar dos vivos e enterrar os mortos. Aposto que nenhum dos inquilinos alguma vez pensa em mim, ou sequer se importa em indagar quem eu sou, como vivo, quais os meus gostos, desgostos e anseios. As nossas vidas não se cruzam, exceto nas escadas do prédio. Ninguém sabe, por exemplo, que um dia dirigi uma decadente revista literária chamada Pena e que escrevo compulsivamente para tentar manter a vida nos eixos, criando projetos e rascunhando livros que nunca vou terminar. Que a escrita, para mim, mais do que uma forma honesta de ganhar uns trocos, é o modo natural que utilizo para expulsar os demónios que atormentam a minha cabeça. Não sabem que sou um homem extremamente solitário, mas que apesar de toda a solidão, busco também refúgio no humor. Que me satirizo a mim mesmo de forma cruel, quando exponho o ridículo da minha vida nas personagens que vou entretecendo ao longo das minhas histórias. Que toda a minha escrita reflete claramente um homem abandonado, talvez traído pelo seu próprio orgulho e personalidade intempestiva. Mas que lhes importaria saber isso? O que mudaria?

Vou ter de fazer das tripas coração e inventar uma treta de um texto qualquer para ser publicado como mais uma das minhas crónicas. A realidade é que o dinheiro da reforma é pouco e tudo o que vier a mais dá-me imenso jeito. Desconfio que o meu senhorio se prepara para me aumentar a renda. Já me falou nisso diversas vezes. Nos últimos tempos, na baixa lisboeta, têm surgido imensos incêndios com origem misteriosa e todos em prédios antigos, com rendas muito baixas. Não saem a bem saem a mal. Diz-se que são os proprietários que pagam a alguém para pegar fogo aos imóveis como forma de pressionar os inquilinos a saírem. A maioria dos arrendatários é idosa e paga rendas totalmente desajustadas face às condições do mercado. O alojamento local está na ordem do dia e a mira do lucro é o leit motiv, que faz com que sociedades de investimento estrangeiras cada vez mais adquiram imóveis na baixa pombalina.

Tenho medo que me peguem fogo à casa e que eu morra cremado vivo aqui dentro. “ O próprio viver é morrer, porque não temos um dia a mais na nossa vida que não tenhamos, nisso, um dia a menos nela”, escreveu Pessoa. Mas Pessoa não gostava muito de viver, ou, pelo menos, nunca se preocupou em prolongar a sua vida, com sacrifício dos vícios e de tudo o que lha abreviava. Enquanto não atravessarmos a dor da nossa própria solidão, continuaremos a nos buscar em outras metades, não forçosamente do sexo oposto. Mas, mais importante do que viver a dois é antes ser um e isso é aquilo que eu tento ser, juntamente com o meu Mefistófeles, nesta mansarda cujo teto quase nos cai em cima. Quanto à crónica para o jornal, vai mesmo isto, escrito sem conteúdo planeado, que toca a reflexão pessoal, o mexerico com a vida dos inquilinos e um pavor quase absurdo que se agiganta em mim cada dia que passa: o de ser queimado vivo.




segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Pingo Doce - Heróis de Angola





Apesar de nesta vida já ter palmilhado quase seis décadas e da miséria, os infortúnios, a dor, as injustiças e, de um modo geral, o sofrimento, próprio e/ou alheio, não constituírem surpresas para mim, ainda não perdi a capacidade de me espantar com certas coisas. O que faz um jovem, com vinte e poucos anos, sentado no chão, à porta do Pingo Doce, acompanhado de um pincher empoleirado num banco, tocando acordeão? Pede dinheiro, com certeza. Mas porque motivo? Qual a sua história de vida que o fez desviar-se dos percursos normais da maioria dos jovens: estudo, trabalho, estruturação de bases sólidas para a sobrevivência em sociedade? O que foi feito pelas nossas instituições, na sua grande maioria, sustentadas pelos nosso impostos, para ajudar este jovem?

Na Europa Comunitária animam-se processos para a criminalização dos Sem-Abrigo e dos pedintes, como se, ser Sem-Abrigo – não ter teto nem casa – fosse um crime! Assiste-se, em muitas áreas, a verdadeiros retrocessos civilizacionais, como se o azar não pudesse, um dia, bater à porta de qualquer um de nós!

Há exemplos, bem concretos, da aplicação de sanções para mendigos, e para quem os ajude: a proibição da mendicidade e a criminalização de quem pede esmola na Noruega, por exemplo, é uma amostragem da perseguição e da criminalização de que têm sido alvo os Sem-Abrigo na Europa. Em Setembro de 2013, o Parlamento Húngaro aprovou legislação que permite aos seus municípios impor multas, serviço comunitário e até pena de prisão, a pessoas sem-abrigo. O presidente da Câmara de Verona – Itália – diz que os Sem-Abrigo são “uma ameaça à saúde pública”, pelo que, quem decidir alimentá-los, incorre numa multa entre 25 e os 500 euros!

Em Portugal, algumas pessoas, de grande responsabilidade nas áreas sociais, recomendam “bom senso”. Eu alinho nesse tom, totalmente. O que é preciso é mesmo isso. Indagar sobre cada caso, com as suas particularidades - não há histórias de vida iguais - e tudo fazer para ajudar quem carece de apoios.

Mais de 46 anos da minha vida foram passados em Lisboa e nos seus arredores, onde os problemas sociais são bastante mais sérios do que em Leiria. Habituei-me a ver, no dia-a-dia, a miséria nas suas formas mais sórdidas, mas nunca perdi a capacidade de me indignar. Uma pessoa que dorme na rua e se alimenta dos caixotes do lixo (visões muito comuns na Lisboa dos anos 80), hordas de Sem-Abrigo, fazendo das arcadas do Terreiro do Paço o hotel dos desafortunados da vida, todas as noites envoltos em mantas mal cheirosas e pedaços de cartão, ou agora um jovem de tenra idade a pedir esmola, são situações que deveriam envergonhar quem administra o nosso dinheiro e o gasta com primazia em subsídios tauromáquicos e outros degradantes espetáculos perdulários. Urgente e primordial é isto!

Leiria, Avenida Heróis de Angola, 09122019

domingo, 17 de novembro de 2019

Nada de novo



São 13h00. Saio para ir almoçar. Uma chuva torrencial, diluviana, abate-se sobre o meu carro e obriga-me a circular com cuidados redobrados. No meio da estrada, no final de uma descida, deparo-me com uma poça de água tão funda, que dou graças à divina providência ter optado por comprar um veículo com alguma altura em relação ao chão. No restaurante baratucho onde normalmente vou aos domingos, uma grupo sessentão de excursionistas assenta arraiais. Devem ser peregrinos de Fátima ou coisa que o valha. A empregada descreve-me a ladainha do cardápio sempre igual. Decido-me pelo bitoque de vaca. Penso que se um dia for autopsiado, provavelmente atribuirão ao excesso de bitoques a causa provável para a minha morte: "overdose de bitoques", ficará escrito no certificado de óbito.

Agarro no Correio da Manhã. Dou uma vista de olhos pelas notícias. Os useiros casos de violência doméstica, um milionário alemão que fazia orgias, presumivelmente com menores, na sua mansão do Monte Estoril, as novidades futebolísticas que preenchem duas páginas do jornal, um grupo de javalis que cheirou e destruiu cocaína no valor de quase 20 mil euros, numa floresta na Toscânia, em Itália. Nas páginas cor-de-rosa segue o folhetim da Ágata. O "Chico das Cassetes", seu ex-marido, presidente honorário do Desportivo de Chaves, apaixonou-se por uma boneca trinta anos mais nova e já lhe ofereceu um apartamento, um Mercedes, pagou-lhe umas mamas novas e uma lipoaspiração. Os filhos do "Chico das Cassetes" não gostaram e a peixeirada instalou-se. O que mais magoa a Ágata é que o seu Chico até mandou retirar o hino do Chaves onde ela cantava!

Termino o bitoque e preparo-me para pagar. Quero fugir da algazarra provocada pelos excursionistas e voltar para o meu mundo. Sentado no balcão, a olhar para mim, imóvel, encontra-se um velho. Tem os cabelos compridos, oleosos, espalhados pelos ombros, como os tentáculos de uma alforreca gigante que o mar trouxesse à areia e ali rebentasse numa golfada suja. A mulher das limpezas, indiferente aos comensais, agarra numa vassoura e começa a varrer diligentemente o chão do restaurante. Lá fora, a chuva continua a fustigar os transeuntes que correm para se abrigarem. Faço o caminho de regresso. Penso no velho que olhava obstinadamente para mim. Terá família? Imagino-o a morar num prédio degradado, ou numa família sem recursos, talvez doente, só e desamparado. É com certeza mais um cidadão que vagueia pelos espaços e tempos da nossa derrota coletiva, vítima da solidão e da desesperança, com uma infância esbulhada, onde improváveis sonhos lhe afloram a mente como último resíduo do humano. Esforço-me por renunciar aos meus pensamentos, mais do que por mero egoísmo, por um imperativo de sobrevivência e concentro-me nas minhas tarefas para o resto da tarde. O caminho de regresso é o mesmo e atravesso a mesma poça de água profunda com as mesmas cautelas. Vou tocar baixo elétrico, que é o meu derradeiro entusiasmo musical. Afinal, são sempre as projeções que fazemos, as esperanças, que nos dão alma para viver e continuar e as escolhas fazem com que cada um de nós seja um ser irrepetível e, a seu modo, incomum.

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

O Terramoto de 1755





No dia 1 de novembro de 1755, há 264 anos, talvez numa manhã nevoenta semelhante à de hoje, ocorreu um sismo violento que ficou conhecido por Terramoto de 1755. A Baixa de Lisboa ficou quase toda destruída e foi atingida ainda grande parte do litoral do Algarve e Setúbal. O sismo foi seguido de um maremoto e de múltiplos incêndios, tendo feito certamente mais de 10 mil mortos. Àquela hora, muitas pessoas encontravam-se na missa e foram esmagadas pela queda das abóbadas das igrejas. Foi um dos sismos mais mortíferos da História e os sismólogos estimam que o sismo de 1755 atingiu magnitudes entre 8,7 a 9 na escala de Richter.

A lembrança da procissão em honra de Nossa Senhora do Bom Sucesso, uma tradição que se cumpre desde 1756 em Cacilhas, no Dia de Todos-os-Santos, como sinal de agradecimento à santa padroeira da localidade pelo milagre, segundo os devotos, de ter evitado que Cacilhas fosse totalmente arrasada pelas águas do Tejo durante o sismo, seguido de maremoto,
faz-me recuar aos tempos primevos da minha infância.

Ex-seminarista, católico devoto, presidente da Conferência de São Vicente de Paulo, ex- militante da Mocidade Portuguesa, salazarista convicto e assumidamente retrógrado, o meu pai não falhava todos os anos esta procissão. Ninguém na família o queria acompanhar exceto eu, que gostava de ver os bombeiros fardados a rigor, transportando em ombros o andor e o homem do bombo, com umas enormes luvas brancas, a fazer ribombar as peles com um estrondo que ecoava pelas ruas.

Só muito mais tarde, ao estudar História, soube a razão de ser da procissão, que sai da Igreja de Nossa Senhora do Bom Sucesso e percorre as principais ruas da freguesia, antes de ser levada para a beira-rio, onde, depois de colocada defronte para Lisboa, se desenrola o ritual da bênção.

Educado na fé cristã, somente na adolescência ganhei maturidade e espírito crítico para consciencializar que não queria seguir os caminhos da cristandade. No entanto, a religiosidade e os seus rituais, impostos pela fé inquestionável do meu pai, entreteceu toda a minha infância e foi responsável por imensos episódios saborosos que recordo com alguma ternura e saudade. Na verdade, devo às práticas associadas à religiosidade, nas quais tomei parte como um ser impoluto e permeável, alguns dos momentos mais felizes da minha vida.

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Ação de despejo



Hoje é finalmente o dia da transladação dos restos mortais do ditador Franco do Vale dos Los Caídos, a cerca de 40 kms de Madrid, para um cemitério nos arredores da capital. Ainda assim, a operação vai custar 60 mil euros aos contribuintes espanhóis - ao que se sabe, o estado espanhol nunca pagou indemnizações às famílias das vitimas do franquismo.

Finalmente, as vítimas da ditadura franquista em Espanha vão deixar de pagar com os seus impostos o túmulo do ditador e oxalá seja o início de um governo que se responsabiliza em ajudar as vítimas da ditadura, a identificá-las e entregar os corpos às famílias. Em Espanha, mais de 100 mil pessoas continuam desaparecidas

O Vale de Los Caídos, um lugar idílico que já visitei por diversas vezes, mandado erigir pelo generalíssimo Franco em homenagem às vítimas da guerra civil, foi totalmente construído por prisioneiros políticos, em trabalho forçado. Sinistro seria manter o ditador sanguinário nesse pedestal.

sábado, 19 de outubro de 2019

Os amigos da caneta



Nos idos anos 70 do século passado, ainda as redes sociais e a Internet não tinham sido inventadas, mas decerto já sonhadas, existia um sucedâneo das atuais redes sociais, muito popular à época. Refiro-me ao "Global Penfriends".

Constatei que a organização ainda existe, mas com um espírito totalmente comercial, longe da natureza desinteressada dos seus primórdios. Fruto da globalização e da infestação capitalista que nos rege, transformou-se numa rede internacional de contactos, à semelhança de tantas outras, onde se paga para ver e contactar perfis.

Na minha juventude, os amigos por correspondência, os chamados pen-friends, eram pessoas com as quais nos correspondíamos através de cartas, geralmente de correio aéreo. O pen pal (literalmente: amigo de caneta) era alguém com quem comunicávamos, por vezes, durante largos anos, sendo raros os casos em que nos conhecíamos fisicamente, apesar das mútuas promessas nesse sentido.

Bastava fazer uma inscrição, que era enviada por correio, julgo que gratuita ou com um preço simbólico, escolher as idades, o género das pessoas e os países com os quais nos queríamos corresponder. Depois, recebíamos moradas e perfis de pessoas que encaixavam nas nossas preferências. Gastava-se somente o dinheiro do selo, do envelope "air-mail", a tinta da caneta e o papel de carta.

Nos anos 70, imediatamente após o 25 de Abril, a música pop/rock, até então com difusão mitigada em Portugal, fazia as delicias da juventude. O interrail, o conhecimento de "novos mundos", as vindimas em França - forma expedita de ganhar dinheiro suficiente para viajar - a ida a Londres, capital mítica do pop/rock e da moda juvenil, faziam parte do imaginário dos guedelhudos, de calças à boca-de-sino, com missangas nos pulsos e bornais militares a tiracolo, em que eu me inseria.

O conhecimento da língua inglesa, falada e escrita, era o passaporte natural para os jovens que recusavam fazer parte de uma geração retrógrada e alheada do "real world" que acontecia lá fora. Para muitos da minha geração, os pen-friends foram a forma expedita de praticarem o inglês, conhecerem estrangeiros/as, apaixonarem-se virtualmente, fazerem promessas vãs, por vezes, juras de amor, pregarem algumas mentiras dificilmente verificáveis e colecionarem fotos de lindas suecas e inglesas, que eram passadas de mão em mão no pátio do liceu.

Cheguei a ter 12 pen-friends, que iam desde a Suécia até à África do Sul e penso que a quase todas prometi um dia as visitar pessoalmente. Nunca me aconteceu conhecer fisicamente uma pen-friend, até porque, com o avançar da idade, os meus interesses começavam a focar-se em realidades mais tangíveis. Sei, no entanto, de casos em que os pais financiaram viagens a certos meninos, para que estes pudessem ir conhecer as suas princesas longínquas. Pelo menos num caso que sei, deu em namoro, mas apenas durante o período da visita.

Independentemente da ingenuidade inerente, recordo o tempo dos pen-friends como uma época fantástica que em muito contribuiu para preencher o meu imaginário e consolidar alguma fluidez na escrita do inglês. Ainda guardo numa caixa as muitas dezenas de cartas que me foram remetidas, bem como muitas fotografias de lindas jovens com os penteados da moda 70s. De vez em quando, em dia de arrumações, lá tropeço numa das caixas e releio com deliciosa vontade as missivas que me enviavam.

Num dia em que eu já não esteja, atirem para o lixo tudo isso e mais alguma coisa. As coisas que nos importam, só têm a medida da importância que dada por nós mesmos. Esses tempos foram saborosos e não voltam mais. Vivemos noutra dimensão, não necessariamente melhor.
 

sábado, 5 de outubro de 2019

Um desejo



Não quero uma grande história de amor, daquelas complicadas, com desencontros, reencontros e lágrimas à mistura. Quero uma história simples com sorrisos e abraços sinceros.

Não quero um amor com dor e sofrimento na esperança de um final feliz. Quero ser feliz todos os dias, nas coisas simples do dia-a-dia, nas atitudes, nas conversas e até nos silêncios.

Não quero dramas, nem discussões, ainda que com pazes à mistura feitas de promessas vazias. Quero tardes calmas com conversas assertivas e manhãs serenas, na quietude dos teus braços.

Não quero incertezas, nem atitudes sem consequências, ainda que vividas com paixão ou loucura. Quero a intimidade que vem da confiança, de amar sem preconceitos, nos limites da loucura dos sentidos.

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Português para estrangeiros





Este ano repito uma experiência letiva, desta vez na Universidade Senior de Pataias, que já havia tido, há alguns anos atrás, por diversas vezes, com crianças e jovens de diversas nacionalidades: o ensino de Português/iniciação para estrangeiros.

Contava ter no máximo 4/5 alunos, mas compareceram na minha primeira aula catorze. São, com exceção de um suíço, o Jean, casado com uma portuguesa e que bem conheço das caminhadas, todos franceses e residentes no concelho de Alcobaça, que escolheram o nosso país para morar e gozar a merecida reforma.

Quando ensinei Português a crianças russas e ucranianas (nos anos 90) e, posteriormente, a jovens de diversas nacionalidades no SPEAK, registei a imensa facilidade que tinham na aprendizagem. Era tudo fruto - mais do que da motivação pessoal, que em alguns era pouca - de uma fabulosa capacidade de raciocínio e memorização, própria de cérebros novinhos em folha. Alguns jovens, com estudos superiores quase terminados, eram naturalmente os ases da classe.

Nos seniores passa-se exatamente o contrário: à menor capacidade de rápida aprendizagem, contrapõe-se uma muito maior motivação e responsabilidade - assim espero.

Penso que todos eles têm plena consciência da enorme barreira colocada à sua integração, decorrente do facto de não falarem português. A tendência é juntarem-se em colónias de francófonos, residentes nas proximidades, e auto-excluírem-se do restante tecido social.

Para alguns, a comunicação com a comunidade tem-se resumido, como me confessam, às palavras suficientes para terem uma vida funcional: ir à compras, ao médico, ao café ou ao posto de combustível. Em tudo o resto, por desconhecimento da língua, vivem alheados da realidade que os circunda, .

Cabe-me a mim como professor incutir-lhes um espírito de resiliência, mas terão de ser eles mesmos a medir os seus progressos e a esforçarem-se por querer ir sempre mais além, conscientes que estão dos benefícios que podem colher do facto de aprenderem Português.

Cada um vai fazer bem a sua parte. Assim espero.

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

A esplanada do Central



A esplanada do Café Central de Almada, lugar de pouso do outono da minha infância e, posteriormente, de grande parte da minha juventude, à tarde, é lugar de suecada. Sexagenários e septuagenários, em alegre algazarra, competem por moedas, com assistência dos jogadores de bancada - que ora apupam uns, ora incitam outros. Quem diria que este celebérrimo café estaria destinado a transformar-se numa arena, onde idosos se batem fervorosamente pelos ases e pelos trunfos numa gritaria insana e ensurdecedora?!

Em meados dos anos 70, durante os anos 80 e até ao início dos anos 90, a esplanada do Central acolheu intelectuais, drogados, traficantes, estudantes, professores, ladrões, parasitas sociais, filósofos, políticos, músicos, poetas, pintores, ativistas e quejandos. Era difícil encontrar um lugar tão heterogéneo em toda a cidade. Célebres eram as noites em que se transformava na arquibancada onde se podia assistir aos ralis noturnos. Os competidores desciam, a velocidades alucinantes, a avenida D. Nuno Álvares Pereira e, chegados à rotunda da ex-Praça da Renovação (mesmo defronte da esplanada do Café Central), faziam piões e chiavam os pneus de tal forma que o cheiro a borracha queimada fazia-se sentir nas narinas. Só quando aparecia o "Nívea", o velho Volkswagen azul e branco da PSP, é que toda a gente debandava. Horas mais tarde, as corridas recomeçavam noite dentro. Não raro, havia despistes contra as montras de lojas.

Almada está cheia de reformados. Gente que trabalhou uma vida inteira e que contribuiu para agora merecidamente gozar o outono da vida. Mais difícil é conceber que a tolerância chegasse ao ponto de permitirem a transformação da esplanada de um café num casino de rua. Não faltam, na cidade, locais mais apropriados para a reunião e o convívio das cartas. Mas a centralidade do lugar apetece e, sobretudo, a complacência das autoridades e dos empregados do café, permite aos velhos algo que a outras idades seria reprimido. Os velhos já arrastam consigo a penosidade da idade e, muitas vezes, da solidão e da doença. Quem sabe não seria cruel afugentá-los da esplanada, como se fossem pombos portadores de maleitas. Não tarda, a sua vida some-se e os novos suspiram por poder chegar à idade da matiné das suecadas no Café Central.

Seeking Sole Mates



Li algures sobre um método infalível para encontrar o par da meia perdido. A ideia básica é separar em categorias - por exemplo, cores. Começa-se por dividir as meias assim: uma pilha de meias cinzas, outra com as pretas e uma terceira para as brancas. Depois, escolhe-se outro critério, como o comprimento.

Isto não é mais do que a aplicação do método dedutivo (do geral para o particular), ou a modalidade de raciocínio lógico que faz uso da dedução para obter uma conclusão a respeito de determinadas premissas - no caso em apreço aplicado a meias.

Mas, sem ofender as premissas da Lógica, que muito respeito, acabei de adotar um método amplamente mais eficaz. Caso demore muito tempo a encontrar o par da meia, coloco as meias perdidas num saco de plástico, a aguardar as que virão de novas lavagens. Se jamais aparecer o par correspondente, passam à categoria utilitária de panos para engraxar, ou coisa que o valha. Mas mais eficaz do que todos os métodos, a partir de hoje só compro meias rigorosamente iguais. É a chamada solução final.

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Duterte & Companhia


Lido por aí: "Duterte pede ao povo filipino que ‘atire’ em funcionários públicos corruptos".


Com esta simultaneidade, não me recordo de uma época recente em que o mundo tenha tido tantos governantes de topo com tamanhas irresponsabilidades.

María Corazón Aquino, também conhecida por Cory Aquino, foi presidente das Filipinas entre 1986 e 1992. Foi a líder do movimento que derrubou a ditadura no seu país, então liderado por Ferdinando Marcos - o tal cuja mulher se deslocava de avião todas as semanas a Paris para comprar roupa e sobretudo sapatos, artigo que colecionava aos milhares, enquanto o povo morria à fome e era torturado e morto nas prisões .

Aquino, falecida em 2009, recebeu diversos prémios e era uma figura respeitada a nível internacional. Foi provavelmente a melhor presidente que as Filipinas tiveram nos tempos modernos

Mas agora as Filipinas têm como presidente o advogado Duterte, eleito por sufrágio supostamente livre e democrático, que afirma publicamente já ter abatido a tiro muitos traficantes e delinquentes. Para além disso, o atual presidente, apela a que seja feita justiça popular, sem recurso aos tribunais, ou a quaisquer direitos de defesa para os eventuais acusados de crimes violentos ou de corrupção. Duterte, que incita a população a praticar a lei de talião e a vindicta privada, recorde-se, é advogado.

Neste estranho mundo atual, temos simultaneamente a decidir os destinos dos seus países, com influência direta ou indireta no planeta: o Trump nos Estados Unidos, o Boris Johnson no Reino Unido, O Erdogan na Turquia, o Kim na Coreia do Norte, o Duterte nas Filipinas e aqueles loucos fanáticos de turbante branco, o Hassan Rohani e o Ali Khamenei, no Irão, entre outros cujo nome não recordo.

A perigosidade de uns é seguramente superior à dos outros, sobretudo pelo poder militar que os respetivos países concentram, mas a particularidade de todos serem belicosos e manifestamente incompetentes para serem líderes mundiais, não nos deve deixar esperançosos de que enveredem por soluções pacificas e consensuais na resolução de eventuais conflitos.

As organizações internacionais correm sérios riscos de se tornarem tigres de papel no cenário das atuais relações internacionais, se é que não o são já, uma vez que o incumprimento das suas resoluções, é cada vez mais impossível de ser aplicado coercivamente, pelo menos no que respeita a certos estados. O direito do mais forte é e sempre será a maior fonte do Direito Internacional Público.

domingo, 8 de setembro de 2019

Eduardo Beauté



Leio as notícias do dia.

O cabeleireiro Eduardo Beauté, com 52 anos de idade, faleceu. Segundo os amigos e pessoas próximas, estaria doente, por demonstrar sintomas de depressão profunda. Não era a primeira vez que isto acontecia, como o próprio revelou em várias entrevistas.

Foi casado com o modelo Luís Borges, bastante mais novo do que ele, de quem se divorciou após discussões recorrentes e que foram alvo de alguns escândalos noticiados nas revistas cor-de-rosa. Entretanto, o casal tinha adotado três crianças, que ficam agora órfãs de um dos pais.

O famoso cabeleireiro, de seu verdadeiro nome Eduardo Ferreira, foi encontrado morto em casa no sábado passado. Aguardam-se notícias oficiais das causas da morte, mas tudo aponta para suicídio.

Aproximadamente uma em cada seis pessoas que cometem suicídio deixam um bilhete que, às vezes, dá pistas para as razões para essa atitude. Não se sabe, por ora, se isso aconteceu no caso do Eduardo.

Os comportamentos suicidas geralmente resultam da interação de vários fatores, sendo que o fator mais comum que contribui para o comportamento suicida é a depressão.

Pessoas que passaram por viuvez, separações ou divórcios, como é o caso de Eduardo, que confessa em algumas entrevistas estar a fazer um luto muito difícil da sua separação, têm maior probabilidade de consumar um suicídio.

Eduardo nasceu na Marinha Grande e foi em Leiria que abriu, nos anos 80, o primeiro salão em nome próprio. Chamou-lhe “Eduardo Haute-Beauté”. As pessoas, quando iam ao seu cabeleireiro, diziam que iam ao Eduardo Beauté e assim ficou sendo conhecido. Muitas pessoas de Leiria lembram-se bastante bem do salão de cabeleireiro e falam amiúde dele. Eu vi o Eduardo algumas vezes em Lisboa, mas nunca o conheci pessoalmente.

Infelizmente, a depressão, já considerada a doença do século e, segundo a OIT, responsável pela causa maior de abstinência ao trabalho, ainda é um estigma severo, para os atingidos pela doença; e vista com uma enorme incompreensão por todos aqueles que nunca sofreram desta maleita. Seja por grave ignorância ou insensibilidade pura - em geral as duas causas concorrem juntas -, as pessoas atingidas pela depressão são consideradas seres fracos, desistentes e criaturas a evitar. São muitas vezes estigmatizadas pelos ditos "seres não deprimidos" e rotuladas de inúteis.

Longe vão os tempos em que as pessoas atingidas por qualquer doença mental eram, juntamente com outros indesejáveis, a saber: alcoólicos, indigentes, criminosos reiterados, pedófilos, pederastas, sádicos, masoquistas e quejandos, encerradas em hospícios, que mais não eram do que casas dos horrores, como forma de os subtrair ao convívio social. O hospício era o pátio traseiro da sociedade.

Felizmente que, hoje em dia, nas sociedades com algum grau de evolução social, a inclusão de pessoas atingidas por alguma patologia mental é prática corrente. Mas ainda existem muitos jurássicos que - sorte a deles - nunca sofreram uma depressão e insistem menorizar as pessoas atingidas pela doença, classificando-os como párias sociais.

A mudança de mentalidades é um trabalho de décadas e por vezes séculos. Temos de esperar algumas mortes e nascimentos para ver renovado o tecido social com novas seivas de pensamento.

A confirmar-se o suicídio, Eduardo foi mais uma vítima desta secular doença e foi esta a única forma que encontrou de colocar um ponto final no atroz sofrimento que o consumia.

RIP, Eduardo

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Dos imigrantes





A imigração portuguesa em França em massa iniciou-se em meados de 1950 e durante as décadas de 1960 e 1970, para fugir da ditadura salazarista e, no caso dos homens, da guerra que se desenrolava nos territórios ultramarinos.

Foram milhares os portugueses que, entre finais dos anos 50 e início dos anos 70, passaram "a salto" as fronteiras para chegar a França, recorrendo a passadores para os guiarem, a depositários para guardarem o dinheiro da viagem, a transportadores e a angariadores de pessoas desejosas de emigrar. Os passadores que faziam este tipo de passagem viam - ou grande parte deles via - esta atividade como negócio.

Muitos dos imigrantes instalavam-se em bairros de lata da região parisiense, em condições insalubres de extrema miséria. A maioria destas pessoas era analfabeta, camponeses e aldeões que se empregavam como operários desqualificados, empregados de limpeza ou da recolha do lixo, em funções que os cidadãos franceses não queriam ocupar. Em Champigny-sur-Marne existiu o maior bidonville (favela) da história de França, ali residindo em barracas 15.000 pessoas.

Lembro-me do meu pai falar da censura exercida sobre um artigo do Paris Match, que publicava uma extensa reportagem fotográfica, sobre as condições miseráveis de vida dos nossos nacionais em meados dos anos sessenta.

Desde 2008 até 2014, têm-se registado significativos aumentos da emigração, sendo mesmo a maior de todos os tempos, devido à crise financeira que ocorreu em Portugal; e França continua a ser o país com maior número de portugueses residentes.

Felizmente, a nova geração de imigrantes portugueses em França, que vemos no mês de agosto encherem as praias, as aldeias e todos os lugares do país, não sofreram as agruras dos seus comparsas de primeira geração. Quando vêm de férias a Portugal, deslocam-se, na sua maioria, em viaturas novas, de alta cilindrada, que fazem questão de exibir, como sendo a prova do sucesso que fizeram em terras estrangeiras.

O sonho de quase todos os emigrados, no entanto, continua a ser o regresso ao país de origem, à aldeia natal, para passar uma velhice tranquila, na moradia vistosa que levou 30 anos de trabalho duro em França para construir. A casa terá de ser a maior e mais luxuosa da aldeia, para fazer morrer de inveja os vizinhos, decorada no género kitsch/emigrante, que todos conhecemos - muitos, velhos e incapacitados ao fim de várias décadas de trabalho intenso em França, deixam a humidade tomar conta dos andares cimeiros, tornados inúteis, do palacete de mil metros quadrados que erigiram, para viver o outono da vida unicamente no rés-do-chão. E as toneladas de cimento e tijolo gastos tornam-se uma amarga metáfora de 30 anos de vida em França.

Nos dias de hoje, muitos portugueses são patrões, fundaram empresas, obtiveram sucesso e contrariaram a pretensa imobilidade social dos imigrantes. Ainda há os que vivem menos bem, mas creio que serão uma minoria. Curiosamente, os turistas franceses que se deslocam a Portugal, na sua maioria, trazem automóveis de gama média ou baixa, contrastando com a ostentação dos portugas que por lá trabalham. E, das duas uma, ou os nossos emigrantes têm habilidades especiais para ganhar mais dinheiro do que os nacionais do país que os acolheu, ou há aqui bluff.

Dizem as más línguas, que muitos se endividam até às orelhas para comprar carros vistosos e que alguns são alugados. Seja como for, longe vão os tempos da mala de cartão da Linda de Suza e dos imigrantes desgraçados que vegetavam nos Bidonville dos arredores da Cidade Luz.


quarta-feira, 31 de julho de 2019

Rui Mingas



Um destes dias, em conversa com um colega do ginásio, onde quase diariamente faço a minha higiene física e mental, que por acaso é também ele professor de educação física, num estabelecimento de ensino secundário aqui na cidade de Leiria, recordei o meu professor Rui Mingas.

Andava eu no primeiro ano do ciclo preparatório, um ano antes da Revolução de Abril, tive o Rui Mingas como professor de ginástica, na Escola Preparatória D. António da Costa, em Almada. Já à época ele era um intérprete conceituado da música angolana e grande parte das aulas eram um misto de desporto e momentos musicais. Ele tocava guitarra, cantava e nós ficávamos deslumbrados a escutá-lo.


Nunca fui adepto das partidas de futebol, ou de outro tipo de competições que animavam a maioria da rapaziada, mas gostava, outrossim, de trepar às cordas, subir os espaldares, correr que nem um desalmado e usar o trampolim para dar saltos mirabolantes. O desporto coletivo e competitivo nunca me fascinou. Daí, os momentos musicais com o Rui Mingas terem sido as aulas de ginástica mais fabulosas da minha precoce juventude.

O Mingas foi praticante de atletismo, salto em altura e barreiras, no Benfica. Participou no celebérrimo programa televisivo Zip-Zip. Gravou vários discos e é um dos autores da canção "Meninos do Huambo", celebrizada em Portugal por Paulo de Carvalho.

Pertencente a uma família de influentes músicos angolanos, desenvolveu a sua sonoridade própria e uma forma única de interpretar a música da sua terra. Foi ele quem compôs a letra do Hino Nacional de Angola.

Foi professor, político, embaixador, cantor, letrista e atleta e é uma das figuras incontornáveis da cultura angolana. A parte que menos simpatizo da sua pessoa, deve-se ao alinhamento com a ditadura caciquista e dinástica de José Eduardo dos Santos. Sei que atualmente é o administrador da Universidade Lusíada de Angola, um cargo que a todos os títulos merece.

terça-feira, 16 de julho de 2019

Desperdício alimentar



Como muitas pessoas que vivem só, sou um grande consumidor de alimentos já cozinhados, à venda nos supermercados e noutros estabelecimentos que servem refeições. Seja por preguiça, ou até por uma questão económica - para uma única pessoa, é mais barato comprar comida já feita do que gastar água, ingredientes e gás na sua confeção, bem como detergente na limpeza dos utensílios -, praticamente todos os dias compro refeições prontas.

Algo que sempre me questionou foi saber o que acontece à comida que não é vendida. Sei que o IPL (Instituto Politécnico de Leiria) tem um protocolo com certas instituições e sempre que há sobras estas são doadas, uma prática que deve ser saudada. Mas tendo perguntado aos funcionários de alguns supermercados, sobre o que acontece aos excedentes alimentares, foi-me dito que pura e simplesmente vão para o lixo. Ao que parece, a nossa legislação não permite que a comida confecionada seja mantida para além do dia em que é elaborada, e a política em vigor nos supermercados não permite, sequer, que os alimentos sobrantes sejam dados aos funcionários. Algo difícil de entender!


Todos os anos, de acordo com a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura), desperdiçamos quantidades de alimentos que valem aproximadamente US$ 750 bilhões. Isso mesmo, enquanto estimativas apontam que 870 milhões de pessoas estão passando fome, o resto do mundo está jogando fora cerca de um terço de todos os alimentos que são produzidos. Apenas nos Estados Unidos, de 30 a 40% do fornecimento de alimentos pós-colheita acaba no lixo. É uma tragédia e uma falta de caridade. Bastaria um terço desse volume desperdiçado para amainar a fome no mundo.

A água que é usada para produzir comida desperdiçada é três vezes o volume do Lago Léman, ou três vezes o que flui pelo rio Volga. Por outras palavras, cerca de 35% do nosso consumo de água doce é jogado no lixo.

Desde 2016, os supermercados franceses estão proibidos de jogar fora alimentos não vendidos. Uma lei, aprovada por unanimidade pelo senado francês obriga as lojas a assinar um acordo de doação para instituições de caridade e bancos de alimentos. Um dos desejos é que a lei chegasse a toda a União Europeia para que também proíba o desperdício de alimentos nos supermercados.

Espero que Portugal, pioneiro em tanta legislação benéfica para a sustentabilidade humana, dê um passo em frente no sentido de contrariar este desperdício alimentar que é um crime. Mas a verdadeira revolução começa em casa e a partir da consciência de cada um. Colocar no prato somente aquilo que se vai comer. Temos de reduzir a porção de comida boa que vai para o lixo e pensar nas crianças que morrem a cada minuto por desnutrição.

sexta-feira, 12 de julho de 2019

Uma aventura hospitalar num país kafkiano



Anteontem recebi um sms do centro hospitalar para ir efetuar uma colheita de sangue, com vista a uma consulta externa a ter lugar no próximo dia 19. Chegado ao hospital, deparo-me com uma greve dos técnicos de análises. Depois de uma longa espera, consigo remarcar nova colheita para a véspera da consulta. Mostrei perplexidade pelo facto de enviarem sms aos doentes para realizarem colheitas de sangue, sabendo que os técnicos estão em greve, mas fui respondido com um encolher de ombros da funcionária.

Entretanto, estranhando não ter sido chamado para efetuar um exame radiológico (pedido há 6 meses) para ser apresentado nessa mesma consulta, por uma questão de jurisprudência das cautelas e já sabendo o que a casa gasta, fui ao serviço de radiologia indagar. Mandaram-me retirar nova senha e, depois de outra espera de 40 minutos, a funcionária que me atendeu disse-me secamente que ainda não houve vaga para efetuar o exame e que seguramente só iria ser chamado depois da consulta ( marcada há 6 meses para o próximo dia 19).

Sabendo que o exame era essencial para ser avaliado na consulta, sem mais delongas, fui à minha médica de família e pedi que me prescrevesse o dito exame radiológico, para ser realizado particularmente. No hospital, entretanto, fui informado que a médica especialista da minha consulta externa só aceita exames realizados no hospital.

O SNS é o serviço público que regista mais queixas no livro de reclamações, as quais, por serem tantas, acabam, a maioria delas, por cair em saco roto.

A vulgaridade de um serviço de saúde público próximo de países do terceiro mundo, aliado a índices de corrupção, desgoverno e impunidade a todos os títulos inaceitável, gera compreensíveis ondas de revolta nos cidadãos.

Verifico, com mágoa, que passados uns tantos limites e confrontadas muitas vezes com a impotência, a ausência de recursos e irresponsabilidades, algumas pessoas quase deixaram de se indignar.

A normalização deste desconcerto sem concerto, faz com que acabemos por conviver pacificamente com este estado de coisas. O que apetece mesmo é ter uma reação primária e partir para a vindicta privada. Felizmente que possuo um confortável lapso de tempo entre a vontade e a ação e isso permite-me refrear- me e... respirar fundo. Adiante.

quarta-feira, 29 de maio de 2019

A propósito de uma exposição



A propósito de uma exposição que decorre na ESECS, promovida pelo Museu Escolar de Marrazes, em Leiria, cujo tema é o ensino primário durante o Estado Novo - nome consignado ao regime político autoritário, autocrata e corporativista de Estado que vigorou em Portugal durante 41 anos sem interrupção, desde a aprovação da Constituição de 1933 até ao seu derrube pela Revolução de 25 de Abril de 1974 - recordei os meus tempos de escola primária.

Na 1ª classe, frequentei um externato particular, mas nos anos que se seguiram, o meu pai, num lampejo raro para um salazarista confesso, decidiu que o melhor era matricular os filhos nas escolas oficiais, para que cedo nos habituássemos a conviver com todos os extratos sociais e também com os pobrezinhos, um termo que lhe era particularmente caro.

Não existia ensino misto. Os rapazes e raparigas frequentavam escolas diferentes e havia punições severas para os alunos que fosse apanhados num estabelecimento de ensino do sexo oposto. O horário escolar era das 9h00 às 17h00 e o único recreio era à hora do almoço. As carteiras eram de madeira com os bancos pegados. Na cantina da escola ao almoço só davam a sopa e o pão, mas havia um reforço alimentar pela manhã - naquele tempo, muitas crianças iam para a escola de barriga vazia.

Todas as salas de aula tinham obrigatoriamente na parede três símbolos alinhados: uma fotografia de Salazar, outra do Presidente Américo Tomaz (símbolos de afirmação autoritária e nacionalista) e um crucifixo (o ensino era revestido de uma orientação cristã, ao abrigo de uma Concordata entre o Estado e a Igreja).

Cantava-se o hino nacional aos sábados, de pé e em sentido.

Na escola incutia-se a ordem, o respeito e a disciplina. Os professores aplicavam com muita frequência castigos corporais severos. Recordo, sem saudade, a régua e a temida palmatória, mais conhecida como a “menina dos cinco olhos”. Lembro as humilhações de castigos como as orelhas de burro. Não, raro, muitos professores primários davam largas aos seus recalcamentos e sadismo, sovando as crianças até lhes provocarem danos corporais graves. Recordo o Freitas - nunca mais soube dele - o filho do sapateiro, que ficou meio surdo, tantas as palmadas que levou nas orelhas e que lhe afetaram para sempre a capacidade auditiva. Mas a impunidade dos professores era absoluta e muitos pais encorajavam os professores a "chegarem-lhes com a roupa ao pelo".

As disciplinas dadas eram a Matemática, História, Língua Portuguesa, Geografia, Ciências e Religião e Moral. Os manuais escolares da escola primária mantiveram-se iguais durante décadas e hoje há reedições dos mesmos para quem queira recordar esses tempos de obscurantismo.

Os métodos de ensino baseavam-se na repetição, como método primário, até que o aluno tivesse decorado as matérias consideradas obrigatórias. Em caso de erro, havia uma panóplia de castigos corporais e humilhações sempre à espreita dos faltosos. Cantava-se a tabuada e tínhamos que saber, entre outras coisas, o nome de todos os rios, serras e estações de linhas de caminhos-de-ferro portugueses e das colónias ultramarinas.

Felizmente que os tempos de hoje são outros e eu já conheci os últimos estertores do salazarismo e do marcelismo.

Na minha aula de hoje na Universidade Sénior de Pataias, a última do presente ano letivo, analisámos um texto de Rubem Alves que começa com a descrição de Walt Whitman acerca do que sentiu - os sentimentos ambivalentes - quando, menino, foi pela primeira vez para a escola:

"Ao começar os meus estudos, agradou-me o passo tanto o passo inicial, a simples consciencialização dos factos, as formas, o poder do movimento, o mais pequeno inseto ou animal, os sentidos, o dom de ver, o amor - o passo inicial, torno a dizer, assustou-me tanto, agradou-me tanto, que não foi fácil para mim passar e não foi fácil seguir adiante, pois eu teria querido ficar ali a vaguear o tempo todo, cantando aquilo em cânticos extasiados..."

Falámos da importância da leitura e da responsabilidade do professor, que pode fazer a inteligência de uma criança florescer ou murchar; e dos novos métodos pedagógicos que ensinam sobretudo os alunos a formarem um espírito critico e a ter uma atitude de investigador e autoditata. E, sobretudo, da aventura e enorme prazer de que se reveste a aprendizagem de coisas novas e da educação do olhar. Um olhar diferente e abrangente, como se quer.



ESECS - Exposição do Museu Escolar

sexta-feira, 10 de maio de 2019

Onde eu moro



Há onze anos que moro nesta urbanização e há mais de uma década que assisto ao despontar da primavera nos ramos das árvores e à chegada das aves que se tinham resguardado dos rigores do inverno em paragens mais quentes. A primavera é sempre acolhida como uma época de renovação e esperança. Se não tivéssemos inverno, a primavera não seria tão agradável e se não experimentássemos algumas vezes o sabor da adversidade, a prosperidade não seria tão bem-vinda.

Durante uma década muitas coisas aconteceram por aqui. Alguns moradores são os mesmos de sempre, embora mais envelhecidos e outros há que se mudaram; e, de alguns, nunca mais soube novidade. Não deixa de ser inquietante observar o crescimento das árvores do jardim fronteiriço, em cada ano que passa, com mais folhagem e ramos mais maduros e compridos, enquanto os moradores antigos, em contra-ciclo, definham a caminho da inevitável velhice. A natureza segue inexoravelmente o seu curso e a renovação é a regra.

No prédio em frente, do outro lado da rua, instalou-se há poucos anos um casal muçulmano. São bastante discretos. Não frequentam os cafés das redondezas e apenas os vi uma única vez no supermercado. A mulher usa sempre um lenço e uma túnica. Os turbantes e túnicas usados hoje nos países árabes são quase idênticos às vestes das tribos de beduínos que viviam na região no século VI. É uma roupa que suporta os dias quentes e as noites frias do deserto. Em casa ela não usa o lenço, mas se calha vir à varanda, coisa rara, vem com ele posto.

No prédio do meu lado esquerdo, morava até há poucos anos atrás, F., um ex-colega meu. Ao que consta, agredia a mulher, num contexto de violência doméstica, mentiras e infidelidades. Ela fartou-se e pediu o divórcio. No meio profissional, as canalhices dele eram comentadas à boca fechada, até porque a mulher também é uma ex-colega de profissão. Venderam o duplex e cada um rumou a outras paragens. O apartamento esteve mais de um ano à venda até que tiveram de baixar o preço pedido e lá conseguiram despachá-lo.

As bizarrias fazem parte da vida e, de uma forma geral, todos os condomínios têm gente excêntrica. A riqueza do meu advém da sua diversidade, se não veja-se: Uma vizinha que atira pedras aos automóveis que estacionam debaixo da sua janela; outra que mandou instalar um gradeamento na porta da entrada do apartamento; outros que riem, falam em voz alta e escutam música, noite dentro; outro, que ( já cá não mora, felizmente) furava as fechaduras de todas as portas de casa, para que a mulher não se pudesse trancar quando tentava fugir das suas agressões. Enfim. A PSP era uma visita constante do condomínio, mas as coisas nos últimos tempos, fruto da renovação da vizinhança, andam muito mais calmas. Há quem pense que isto só sucede em bairros degradados, mas não é verdade.

Agradável agora é a quase chegada do verão, que trás o ruído das crianças que brincam no pequeno jardim debaixo da copa das árvores e a algazarra das pessoas que se juntam na esplanada do único café da rua, bebericando cerveja e comentando resultados desportivos. Eu estou na varanda, com o olho nos gatos, não vá algum deles dar um salto kamikaze ( dois deles já caíram, felizmente sem grandes consequências), enquanto observo discretamente a vizinha muçulmana, sem o lenço posto, que passa a ferro a roupa da família. Não consigo deixar de pensar que ela já nasceu com um destino traçado. Por motivos de religião e pudor, foi-lhe negada a autodeterminação, como os ramos das árvores que não param de engrossar, ou as aves que sempre voltam para nidificar por estas bandas, tudo sem vontade própria.