quinta-feira, 30 de junho de 2022

Uma conversa particular


Não é fácil exprimirmos o que sentimos em todas as circunstâncias. Não é só um problema da língua, do ser difícil, traiçoeira, complexa, contraditória, ou tudo isso e mais alguma coisa. O dizermos, o que nos vai na alma, não passa de uma velha metáfora, despida quantas vezes de espiritualismo, mas pungente na nossa necessidade de afirmarmos, permanentemente, uma existência subjetiva e, de algum modo, transcendente em relação a uma entidade que nos espreita do outro lado do espelho; e que, tantas vezes, não identificamos nem reconhecemos como sendo a destinatária dos nossos expatriados pensamentos. O que nos vai na alma, ou, dito por palavras, o que sentimos, é um caudal iníquo e contraditório em que se misturam, de forma aleatória, quando não descontrolada, sensações, pensamentos, desejos, fantasmas, fantasias, medos vagos e outras coisas de igual ambiguidade. Os sentimentos propriamente ditos, aquele fluxo que medeia entre o amor e o ódio, a alegria e a tristeza, a tranquilidade e a inquietação, o desespero e a esperança, a inveja e a gratidão, habitam-nos como uma segunda pele e dão-nos, além do mais, algum sentido de existência e de coerência. Todos sabemos algumas coisas dos nossos demónios. Eu sei que preciso de fazer uma pausa para falar com eles - uma conversa em particular, como é evidente.



Da amizade



É um lugar comum dizer constantemente que todas as pessoas nos dececionam, mas assim como há pessoas que nos causam esse estado de amargura, outras há que nos surpreendem pela positiva; e outras, ainda, que confirmam tudo quanto já pensávamos delas.

Dizem que os amigos são para as ocasiões - e eu diria que cada vez menos sei quais são as ocasiões em que se deve apelar para os amigos e quais os amigos que se prestam e têm disponibilidade para nos acudir em dadas situações.

As amizades, com exceção daquelas mais antigas, que nos vêm da infância e nos acompanham ao longo da vida, acontecem-nos por zonas de interesse e ocupação, por empatias, por circunstancialismos, muitas vezes fruto do acaso, que nos surgem no trilho da vida. Tendemos a sentir empatia por pessoas que, julgamos, sentem o nosso pulsar, compreendem o nosso estilo de vida, as nossas perceções, possuem gostos semelhantes e objetivos que nos merecem sentido. E, por vezes, até os amigos vão sendo mais conjunturais, mais fruto das circunstâncias e das necessidades práticas de alianças, consequência de tumultos comuns que fazem com que duas vidas se cruzem no amparo da amizade recíproca.

Quando a nossa vida dá para o torto, quando os empregos falham, quando a solidão nos bate à porta, quando os divórcios ou o fim das relações amorosas acontecem e tudo se baralha dentro de nós, temos saudades dos amigos de outros tempos. É aí que escolhemos criteriosamente com quem podemos contar, de que modo e com que limites precisos, e descobrimos que nem todos os amigos são para todas as ocasiões.

É bom fazer amigos. Nos últimos tempos, em virtude da minha cada vez maior presença na música e também na poesia, tenho feito novos amigos. Nuns casos, trata-se de pessoas bastante mais novas do que eu, mas com uma forma de pensar lúcida e avisada, capaz de entender coisas que, julgava eu, só pessoas com a minha experiência de vida e maturidade conseguiriam alcançar. Noutros casos, são pessoas com idades próximas da minha, mas com vidas e saberes que me completam.
A vida tem destas coisas e nem imaginamos quão enriquecedor é permutar experiências, vivências, com personalidades diferentes.

Os mais velhos, contrariamente ao que diz a «sabedoria popular», também aprendem muito com os mais novos, especialmente quando se trata de pessoas que possuem uma mentalidade muito para além da sua idade biológica.

Gostei muito de ter feito novos amigos, pessoas que valeu a pena ter conhecido, para manter o contato e aprofundar a amizade, já que a vida tem uma duração aleatória e é demasiado preciosa para ser desperdiçada com seres sem luz e medíocres.

Cada vez mais me convenço que o dia-a-dia é feito de um contínuo destes pequenos acontecimentos: coisas que por vezes parecem não ter importância ou impacto, mas que vão dando cor e sentido ao fluir da vida e me fazem adivinhar que ainda há afetos a precisar de partilha, pessoas que gostam de gostar de pessoas e que esse é o maior desiderato da vida.

Leiria, 2013

(No geral, identifico-me com o que então escrevi





segunda-feira, 27 de junho de 2022

Espiritualidade

 



Até há bem pouco tempo permaneci de costas voltadas para a espiritualidade, entendida esta, em sentido restrito, como a que se conecta com uma dada religião. Para isso terão em muito contribuído os maus exemplos, a falsa religiosidade, as práticas fascizantes e a tremenda hipocrisia, que, desde tenra idade, comecei a decifrar nalguns adultos que me rodeavam.

Com seis anos de idade, recordo como se fosse hoje, fui levado para a Igreja de Santiago, conhecida como a Igreja Velha de Almada, e deixado entregue aos escuteiros - que haveriam de me integrar posteriormente nos “Lobitos” (uma nomenclatura que, presumo, já não existe nos dias atuais no escutismo católico).

Fiquei lavado em lágrimas porque pela primeira vez era “abandonado” pelos meus pais junto de adultos que desconhecia. Senti, talvez em estreia absoluta na minha vida, a sensação horrível que é a falta total de segurança e amparo. Chorei novamente, desta vez de alegria e conforto, quando passadas algumas horas os meus pais me foram buscar.

Foi nesse dia que conheci o António Valverde, com a categoria de chefe do agrupamento escutista, já falecido, o chefe do grupo, o Machado e os caminheiros Cesino Alves e Augusto Carreira. Os lobitos Nuno Valverde, Pedro Condessa, entre outros cujo nome não recordo, já eram meus amiguinhos de outras andanças, também ligadas ao catolicismo.

Foi graças ao escutismo que ganhei o gosto pela natureza e pelas caminhadas, o respeito pelos animais, a responsabilidade ecológica, a aprendizagem do desenrascanço, a prática de cozinhar, os diversos nós do escuta, a arte de fabricar uma casa no cimo de uma árvore, a manufatura de suportes de madeira para suster as tendas, as valas abertas em seu redor para que a água de uma eventual chuva não encharcasse o pano, o ateamento de fogueiras sem fósforos, somente com recurso à fricção de paus ou pedras.

Sempre que acampávamos e tínhamos de montar as nossas tendas (não havia verba suficiente para comprar tendas e as nossas eram feitas com o pano usado das velas das faluas do Tejo - uma espécie de bote grande, com velas, usado na descarga de navios - presumo, oferecidas aos escuteiros) éramos deixados entregues à nossa própria responsabilidade.

Foi graças ao escutismo que ganhei um amor precoce pela autonomia e pela independência, características que integraram a formação da minha personalidade e que ainda hoje me forram e têm guindado os meus desígnios. Os livrinhos de Robert Baden-Powell “Escotismo Para Rapazes” e “A Escola da Vida” eram as nossas bíblias. Estava lá tudo aquilo que nós lobitos precisávamos saber. O primeiro foi o livro que há mais de cem anos deu origem àquele que se viria a tornar o maior movimento de jovens a nível mundial: o escutismo.

O que menos gostei durante a minha permanência no escutismo foram as obrigações religiosas, as procissões, as promessas de novos escuteiros e, particularmente, os domingos na missa, fardado a preceito, ladeado por bandeiras, escutando ladainhas a que quase nenhum de nós prestava atenção.

Com a passagem para o estado juvenil, ainda antes da Revolução de Abril, a tomada de consciência das enormes incongruências das pessoas ligadas à Igreja Católica, que me rodeavam e formataram a minha infância, fazia-se anunciar forte na minha mente. O afastamento da Igreja foi rápido e definitivo. As recorrentes práticas misóginas – nunca a Igreja Católica permitiu que as mulheres fossem ordenadas sacerdotes - o conservadorismo intenso, a severidade das catequistas que impunham castigos físicos aos seus discípulos, o calvário dos seminaristas, o alinhamento com a extrema-direita, os pecados pedófilos dos padres, a hipocrisia desmesurada daqueles que frequentavam a missa aos domingos e, depois, na vida real, eram os piores seres humanos que se possa imaginar. Tudo isso me fez afastar da espiritualidade. E, talvez por falta de maturidade, capacidade de pensamento analítico mais profundo, tomei aquela parte que eu conheci como sendo o todo.

Passaram cinquenta e cinco anos e ainda mantenho contacto regular, ainda que virtual, e amizade com algumas das pessoas que fizeram parte no meu ritual iniciático de escuteiro, quer como dirigentes ou como lobitos, como eu. Guardo religiosamente numa moldura, o certificado, com o desenho de Baden-Powell no canto superior esquerdo, amarelado pelo tempo, que documenta a minha Promessa de Escuta no dia seis de fevereiro do ano de mil novecentos e setenta e dois.

“A mente é como um paraquedas, só funciona depois de aberta". Muitas vezes atribuída ao falecido Frank Zappa, um guitarrista fenomenal e uma espécie de guru para uma legião de seguidores, esta frase, independentemente da veracidade da fonte, foi por mim apropriada para que faça sentido neste discorrer de pensamento. A minha mente, como o paraquedas do Zappa, que é disso que se trata, abriu-se recentemente para um fenómeno novo: a espiritualidade.

Sempre soube distinguir entre o Bem e o Mal e, em consequência, fazer as minhas escolhas. E as vezes que escolhi o Mal em vez do Bem foram quase sempre em meu próprio prejuízo. A minha relutância em praticar o Mal é quase limitada à legítima defesa e nas poucas vezes que fiz mal a alguém, a culpa foi tão grande que saí sempre perdedor.

Muitos estudos de cariz psicológico provam as evidências de que a religiosidade e a espiritualidade têm correlação com a qualidade de vida, atuando principalmente no enfrentamento em situações adversas. Duvido que alguma vez perca a minha racionalidade e aquilo que considero lógico. Jamais conseguirei aceitar dogmas burilados por mentes alheias sem exercer sobre eles o meu pensamento crítico. Mas alguma coisa está a mudar na minha vida, porque passados muitos anos encontro necessidade de ir ao encontro da espiritualidade, seja o que for que isso signifique. Não concebo voltar as costas à racionalidade, mas estou, talvez pela primeira vez, disposto a que o metafisico entre na minha mente e no meu coração e é algo que sinto tentado experimentar.



Neste texto, voltei ao passado, aos meus anos precoces. E isto são para mim recordações eternas que me conquistam definitivamente. Desista de me ler quem busca um fio coerente nas minhas narrativas, uma afirmação rotunda, uma narrativa concisa. Vou cambiando ou se calhar descobrindo, em cada dia que passa, facetas de mim próprio que eu próprio desconhecia.



Dedico estas linhas aos meus grandes amigos de infância Pedro Condessa e Augusto Carreira.

Bem hajam!

Leiria, 26 de junho de 2022






sexta-feira, 24 de junho de 2022

Uma tarde insólita.


Fiquei empanado. O carro não pegava. Por coincidência, um amigo, a quem acabara de telefonar, estava próximo do local e deu alguma ajuda até chegar o pronto-socorro.

Chamei a assistência em viagem e fui no reboque até à oficina que indiquei. Quando lá cheguei, dei à chave e o Ford funcionava às mil maravilhas. Parecia um relógio suíço, mas resolvi não arriscar.

Deixei o carro à porta da oficina e regressei com o sr. do reboque, uma simpatia de pessoa, como nos dias de hoje é raro encontrar.

Deixou-me à porta de casa, com a guitarra, os acessórios da música e as compras do supermercado; e ainda me ajudou a transportar tudo até à porta do prédio. Era o espólio mais importante da bagageira e que não podia ficar.

Ainda se encontra gente simpática e disposta a dar uma mão a quem precisa. E é por isso que continuo a apostar nas pessoas; e, na medida das minhas possibilidades, ajudando os outros com o melhor de mim.

Fazer bem sem a olhar a quem, sem esperar nada em troca, torna-nos melhores pessoas e é um prazer que muita gente deveria experimentar. Torna-se viciante e aplaca a nossa (má) consciência.





quarta-feira, 15 de junho de 2022

O desamor

A frase mais pusilâmine que conheço é esta: «Eu na altura pensava que gostava dela». A frase correta e decente seria: «Eu na altura gostava dela.» O que aconteceu depois a esse 'gostar' pertence ao tempo que entretanto passou e ao que o coração conformou. Mas o presente não tem direito de veto sobre o passado. Dizer o contrário é cair verticalmente num pântano moral.





Dos afetos



Um amigo meu dizia-me que as amizades têm um prazo de validade, e que por vezes encontramos um indício de que esse prazo chegou ao seu termo.

É preciso então agir? Ou a amizade morre por si mesma? E devemos perder uma amizade por causa de uma teoria da amizade?

Eu penso que os afetos, não importa a sua ordem, devem ter um tratamento idêntico àquele que damos à comida dos periquitos: não é precisar andar sempre a pôr alpista no comedouro, mas, com alguma frequência, devemos soprar as cascas das semente secas, por forma a deixar a descoberto o importante.

Assim devemos lidar com o afeto: não sufocar o outro, gostar sempre, manifestar isso mesmo, mas não tomar atitudes de cobrança.

Muitas amizades novas são claramente fruto de circunstâncias da nossa vida, pessoas que, de algum modo, começaram a fazer parte de nós, mas acredito, sim, em afetos imorredouros.



terça-feira, 14 de junho de 2022

Em que estás a pensar neste momento?


Na escala de Dó M, sem sustenidos nem bemóis; nas inversões dos acordes; nos diversos tipos de dedilhados que já sei fazer e nos arpejos; no meu regresso aos textos e ao meu blogue, perdido na blogosfera, como uma nave errante; nas viagens de mota sozinho; na diferença entre a moral e a beleza: é que nós sabemos que a beleza existe mesmo; que uma utopia, mesmo que transportada para a dimensão pessoal, continua a ser uma utopia: uma coisa que não acontece nunca; que falo em demasia e escrevo em demasia; que tenho alguns anos e ainda não me sucedeu nada, capaz de me fazer feliz, que fosse verdadeiramente lógico. Tudo acontece no plano do inesperado e contra quaisquer espetativas.



domingo, 12 de junho de 2022

A minha Fonte da Telha


Não faço ideia que idade eu teria, talvez uns 7/8 anos. A foto é dos anos 60 e foi tirada pelo meu pai, na Fonte da Telha, perto da Costa da Caparica, à porta de uma casa que nos emprestaram para umas férias de verão.

Nessa época, a Fonte da Telha era um lugar inóspito, acessível apenas por um autocarro da carreira, vagaroso e fumarento, que partia de Cacilhas e fazia a viagem quatro vezes por dia. Quando a demanda era muita, em especial no pino do verão, faziam os famosos desdobramentos e aumentavam a frequência diária. Somente os mais afortunados tinham automóvel, um acessório indispensável nos dias de hoje, e a maioria da população usava os transportes públicos e achava normal estar 3 horas na fila, na torreira do Sol, à espera do autocarro para a ir à praia.

Até meados dos anos 70, na Fonte da Telha, não havia água potável nem luz elétrica. Apenas boas praias, natureza e um ar extremamente saudável e não poluente.

Recordo-me que existia um trator com um atrelado que transportava as pessoas desde a arriba até à praia e também no regresso. As pessoas sentavam-se em bancos de madeira sem qualquer proteção ou regras de segurança. Como não havia água potável nem luz elétrica no local, em nosso auxilio, usávamos candeeiros a petróleo. Um aguadeiro passava pelo local e vendia-nos água fresca e também alimentos. Tudo era transportado em carroças puxadas por mulas e o mundo ficava mais aventuroso e apetitoso para a criançada.

As memórias do Facebook trouxeram-me esta recordação que me foi enviada em 2011 pela minha prima Paula Arocha.

Eu estou com uma bola na mão e, à minha esquerda, o meu irmão mais velho. No lado direito, a minha dita prima Paula.

Velhos tempos de inocência e abundante felicidade.


Sapiosexual



Hoje aprendi uma palavra nova: Sapiosexual. Segundo me disseram, uma pessoa é considerada sapiosexual quando a sua libido é estimulada pela admiração intelectual que tem por alguém.
O étimo vem do latim sapiens, que significa inteligência, sabedoria, e quando aplicado como prefixo forma o neologismo sapiosexual.

Acho realmente estranho existirem sapiosexuais puros, como me quiseram fazer crer, pois, na minha ótica, gostar de alguém, ou sentir atração, resulta geralmente de um concurso de diversos fatores e nunca por uma única razão. Mas quem me vendeu esta ideia, afirmou ser muito comum nas universidades, especialmente no mundo feminino, este tipo de atração em relação a certos professores.

O Woody Allen, lembro-me agora, é o exemplo clássico de um homem sem quaisquer atrativos físicos, mas que pôde ser desejado apenas pela sua imensa intelectualidade. O facto de ser um cineasta com imenso prestigio e dinheiro, pode ter distorcido o busílis da questão e perder-se a pureza dos motivos.

 Quem sabe das razões verdadeiras para ter tido belas mulheres ao longo da sua vida? Eu não, certamente.



sexta-feira, 10 de junho de 2022

Miranda no 10 de Junho de 2022

Em 1981, o catedrático, Professor Doutor Jorge Miranda, foi meu Professor de Ciência Política e Direito Constitucional I na FDL. Mais tarde, num mestrado, foi de novo meu docente. Sempre lhe reconheci extrema competência científica, a par das suas notórias excentricidades. Vi-o agora mesmo, na CNN, como se 4 décadas tivessem passado por eles sem fazer ruínas. Este ano, o insigne jurista é o mestre das cerimónias do 10 de Junho.

Jorge Miranda, Adriano Moreira, Oliveira Ascensão, Suarez Martinez, Freitas do Amaral e o nosso atual presidente, Marcelo Rebelo de Sousa, entre outros, foram todos meus professores. Há muitas histórias sobre o Professor Jorge Miranda e também sobre outros membros do corpo docente da FDL. Algumas são narrativas fantásticas ou exageradas, para não dizer inventadas, e passaram de geração em geração por tradição oral; mas outras há que são demasiado reais, passo a tautologia. É sobre algo que presenciei, pois aconteceu no decurso da minha prestação de exame oral com o dito Professor, que vou relatar dois episódios, à luz dos dias de hoje, considerados intoleráveis e com teor fascizante ou de muito mau gosto.

Nos anos 80, bem como, presumo, também terá acontecido, nos anos anteriores, nenhum homem prestava provas orais perante o Professor Jorge Miranda sem ter uma gravata e um casaco vestido. Às alunas, o constitucionalista, proibia o uso de mini-saias ("roupa indecorosa", nas suas palavras) - no entanto, existiam professores que, pelo contrário, gostavam das indumentárias arrojadas das alunas e sonhavam com eventuais prémios futuros por lhes mostrarem alguma benevolência. Era um jogo de sedução bastante usual na época e funcionava com alguns docentes.

Sabendo eu das exigências do lente, no que ao dress code dizia respeito, aparecia trajado com fato domingueiro, como se já fosse um "doutor", mas uma grande parte dos alunos esqueciam de trazer os preciosos adereços. Na maioria das vezes, os examinados que já tinham terminado as suas provas orais, emprestavam o casaco e a gravata aos alunos desengravatados e sem casaco. O truque resultava e a exigência bizarra do catedrático cumpria-se.

O Sr. Charneca, um auxiliar de ação educativa que, à época, antes do eufemismo - um neologismo parido numa qualquer reforma posterior - se chamava contínuo, era considerado uma instituição no seio dos alunos e funcionários. Era um homem idoso, quase analfabeto, e, para arredondar o magro salário, vendia à porta da Faculdade "aulas desgravadas", putativamente atribuídas a diversos docentes, sem que estes revissem os textos ou sequer autorizassem a prática. Para promover um maior sucesso no seu negócio - a prática era tolerada há décadas por todas as direções da Faculdade - classificava e glosava os apontamentos com menções por ele inventadas do tipo: "aulas muito boas e completas!"; " matéria que vai sair nos exames finais!"; “ Resumos excelentes!”. Fotocopiava vários exemplares, os originais eram-lhe oferecidos pelos alunos, e tinha uma banca à porta da Faculdade onde habitualmente passava grande parte do dia.

Jorge Miranda, face à sua conhecida personalidade rígida e intolerante, a raiar o doentio, foi o único Professor a ameaçar diretamente o "Doutor Charneca", como este era popularmente conhecido, com uma ação disciplinar e outra judicial, caso este persistisse no atrevimento de vender “aulas desgravadas” como sendo da sua autoria. Mas nunca o fez, pelo menos que eu tivesse conhecimento. O medo de cair no ridículo certamente deve ter sido mais forte. O certo é que o “Doutor Charneca” fez uma fulgurante carreira de vendedor de sebentas até ao final dos seus dias.

O "doutor Charneca", falecido há quase duas décadas, fazia bastante dinheiro com os caloiros do 1º ano, pelo menos até eles descobrirem que lhes ficava mais barato pedir emprestado as sebentas, compradas por alguns incautos à entrada da Faculdade, e fazerem eles mesmos depois as fotocópias.
Quando faltavam casacos e gravatas para a rapaziada enfrentar o Miranda em prova oral, mediante o pagamento de uma imperial e uma sandes, o “Doutor Charneca” emprestava o seu casaco cinzento e a gravata preta cheia de lustro e retirava-se para os seus aposentos, até que alguém lhe ia entregar a indumentária.

O Miranda percebia o golpe evidente, mas, cumprida a formalidade por ele exigida, nada podia fazer: a mesma gravata preta cheia nódoas e lustro e um casaco cinzento-rato, pertencente à farda então utilizada pelos contínuos dos estabelecimentos do ensino superior, era usada por vários examinados e a alguns, como seria de esperar, o casaco ficava curto em demasia ou comprido em excesso. A gravata conhecia nós estranhíssimos, feitos à pressa, e mais parecia um trapo preto mal-amanhado. Perante o risível da situação, no entanto, ninguém se atrevia a deixar escapar uma manifestação de humor, pois a tensão do exame oral, que decidia da vida ou da morte do aluno àquela cadeira, ia em breve conhecer um veredito.

A exigência formal imposta pelo catedrático estava cumprida e os alunos, assim que terminavam a prova, iam para a casa de banho para se desfardarem e dar de empréstimo a um dos próximos examinados. No final, alguém estava encarregue de devolver o casaco e a gravata ao “doutor Charneca”, que entretanto já esperava algures no bar, em mangas de camisa, a mamar imperiais e sandes de presunto, tudo pago.

O desfiar de histórias grotescas atribuídas a este Professor não têm fim e limito-me a contar aquelas que presenciei.

Num dia de provas orais, a que nós habitualmente assistíamos, para saber o género de perguntas que eram feitas e quais as que se repetiam, estando eu na sala de exames, aproximou-se um contínuo da mesa do júri e teve a ousadia de interromper o catedrático para o informar de algo supostamente grave. Quase lhe segredou ao ouvido a informação e ninguém ficou a saber o que se estava a passar. Como resposta ao funcionário, Jorge Miranda empregou as seguintes palavras que jamais esquecerei: “Quando terminar o exame deste senhor já vou lá a baixo resolver a situação".

De acordo com o testemunho de imensas pessoas - eu pessoalmente não presenciei este cenário, pois a sala de exames orais encontrava-se no segundo piso do lado sul do edifício e o parqueamento automóvel situava-se na entrada da Faculdade, no lado norte - um dos filhos do Professor, com algum grau de deficiência mental, tinha ficado dentro do automóvel do pai, enquanto este despachava rapidamente os 4 ou 5 alunos que restavam ser examinados naquela tarde. O rapaz, ao que parece, tinha ficado com a cabeça entalada no vidro e estava com dificuldades em fazer reverter o elevador. Ninguém na parte exterior podia fazer alguma coisa porque as portas estavam trancadas. Só partindo uma janela do automóvel.

O Professor terminou o exame oral que tinha em mãos e depois saiu calmamente da sala. Nunca lhe notei qualquer sinal de ansiedade, perda de concentração ou perturbação.

Este era o bizarro Jorge Miranda, o homem que, com pontualidade britânica, lanchava pelas 17h00, servido de bandeja, levada a pé pelas escadas até ao último andar, onde se situava o seu gabinete, pela contínua mais graxista e serviçal da Faculdade, que tinha uma forma peculiar de o cumprimentar, em tom flauteado: “Boa tarde, Sr. Professoooooooor!”.

O senhor Doutor nunca frequentava o bar dos alunos nem se misturava com a arraia-miúda - o povo, nas palavras do cronista Fernão Lopes, trazido hoje à colação pelo nosso presidente. Sentia-se, outrossim, pertencer a uma casta superior. Lembro-me perfeitamente dos assistentes ladearem-no e colocarem-lhe o casaco pelas costas à saída do gabinete, bem como nunca o ultrapassarem nos corredores.

A Faculdade estava repleta de lambe-cús, começando nos funcionários, passando pelos alunos e terminando nos assistentes. Todos se curvavam perante o poder absoluto que por lá reinava, ao abrigo de um perverso sistema chamado “autonomia universitária”, que, em nome da “liberdade científica”, quase tudo permite.

Hoje foi sem surpresa que o vejo igual a si mesmo: longe da populaça, épico, formalíssimo, vazio de emoções.

Felizes dos que conseguem ficar a 4 metros de distância do insigne. Famoso pelos seus perdigotos quando fala, a boca inunda-se-lhe de uma espuma branca horrível e a ausência de um guarda-chuva pode redundar numa tragédia.

Velhos tempos que não voltam mais.











quinta-feira, 9 de junho de 2022

Diálogo vis a vis



"Nunca mais a viste?
"Não, nunca mais"
"E não sentes saudades?"
"Uma perda é sempre uma perda, mas o rolar do tempo mitiga qualquer perda. O tempo tudo amortiza e cobre de folhas as réstias de qualquer saudade"
"Sim, tens razão, daí a expressão «tempus fugit»
"Não sei se os latinos a empregavam com tal sentido, mas não há dúvida alguma de que o tempo é fugaz, impossível de ser aprisionado, tal como o voo de uma andorinha no alvor da primavera. O agora é uma mera ficção. Existe, sim, passado e futuro"
"Pondo de lado a filosofia, torno a perguntar-te: não sabes nada dela?"
"Não, absolutamente nada. Desde que a soube com aquele furriel italiano, não imagino se continua com ele se decidiu mudar-se para outra patente"
"Irónico como sempre..."
"Tu sabes, eu sei, que vós as mulheres procuram sobretudo duas coisas nos homens: segurança e afeto"
"Tens razão. Tenho de condescender que percebes bastante da natureza feminina e talvez por isso te movas tão bem no seio das mulheres - se quiseres, com o sentido metafórico e o menos metafórico da afirmação"
"Vês-me como um Casanova, uma espécie de predador de mulheres incautas. Para ti sou um mero colecionador de troféus, mas a maior cobardia de um homem é despertar o amor de uma mulher sem ter intenção de a amar"
"Essa frase vale para ambos. Já não há mulheres incautas e tu também sabes bem disso. Não te culpabilizes..."

Leiria, 2010


quarta-feira, 1 de junho de 2022

Dia Mundial da Criança


Hoje é o Dia Mundial da Criança e continuam a existir em todo o mundo crianças mal tratadas, violentadas, forçadas à indigência e à prostituição, traficadas pelos próprios pais, torturadas e mortas sem piedade. Erradicar a maldade e a perversão, fazer do amor pelo próximo a meta maior das nossas vidas, isso, sim, seria guindar a nossa espécie a um nível superior e dar-lhe um sentido de Ser, consistente com o milagre de existirmos em cada dia que passa. Este é o meu desejo instantâneo de hoje, que dedico à consciência de todos nós.

"O melhor do mundo são as crianças...", disse um dia Fernando Pessoa