sábado, 29 de abril de 2017



Tempos houve em que a verdade era mais que o antónimo da mentira. Já se acreditou, inclusive, que a verdade era uma espécie de quinta essência, um âmago de sentido, que justificava uma busca grandiosa, que tornava o caminho da vida num percurso de aperfeiçoamento e crescimento em direção a uma qualquer transcendência que faria de todos nós seres maiores e melhores. Acontece que, nesta época feérica em que vivemos, o desgaste do conceito atinge tais proporções que uma mentira, se dita vezes sem conta, acaba por se tornar verdade.


Nos nossos dias, deixou de ser preciso dizer a verdade e as elites que nos governam, aqueles que têm nas suas mãos o poder de escolher os desígnios e as políticas que nos vão reger, são os que em primeiro lugar nunca dizem a verdade. Passámos a encarar as mentiras de um alto governante, de um deputado, de alguém com responsabilidades sociais intensas, como algo natural, normalíssimo até. Já não acreditamos em intenções vitalícias e é (quase) lícito prometer uma coisa agora e no dia seguinte quebrar o compromisso assumido.

E esta falência da verdade é correlativa à emergência da disfuncão aflitiva dos órgãos de cúpula que nos regem, que toleramos e com os quais nos habituámos a viver, não desperdiçando mais do que um simples encolher de ombros quando alguém nos pergunta se, ao menos, nos questionamos: "O que hei-de eu fazer?".

Lírico eu? Talvez, mas a História prova-nos que só as revoluções conseguem operar as ruturas necessárias para extirpar os cancros do tecido social. Se assim é, venham elas!

Vitória ou muerte! (onde é que eu já li isto?)


Nunca deixes de ser a água doce,
desnuda a tua franqueza cristalina
ri quando te apetecer rir,
e chora por dor,
não deixes presentes por desembrulhar,
rasga o papel dos teus sonhos,
deixa-te levar pelo amor,
sê o teu "Deus Super Omnia",
amabile contigo mesmo,
pois tu és o teu improviso,
o farol que ilumina o voo da ave,
o vencer ou morrer por ser,
o propósito de toda a expressão,
a carne feita da tua carne,
aquele que se permite mais do que é justo


(escrito em 2009 . Barreiro)

segunda-feira, 24 de abril de 2017

Espelho meu...


partir de uma certa idade, parece que o processo que dita o nosso envelhecimento multiplica-se de forma geométrica; e, em cada dia que passa, quando nos olhamos no espelho, achamo-nos mais envelhecidos. Dando por adquirida a verdade de que a fonte da eterna juventude nunca passou de uma efabulação literária, temos de aceitar que o encarquilhar da face, o branquear dos cabelos, a proeminência do ventre e a perda gradual da energia, são realidades com as quais temos de lidar; e, sobretudo, encará-las como fazendo parte de um processo gradual ao qual nenhum de nós consegue escapar.

Dizem, talvez para amortecer o desânimo que nos toca, que envelhecer tem os seus encantos e que os ganhos de maturidade e experiência de vida, de certo modo, contrabalançam o que se perde em vivacidade. O ideal seria, sim, conservarmos a juventude e a experiência, entretanto adquirida. É por isso que existem os ginásios, que se têm multiplicado como cogumelos, muito frequentados por cinquentões e cinquentonas, obstinados em não aceitar as sequelas naturais causadas pelo processo de envelhecimento.

Nada tenho contra os ginastas cinquentenários e saúdo todas as práticas em prol da saúde. Que isso fique bem claro. Acho, sim, patética, a atitude de certos figurões e figuronas, alguns bem conhecidos na nossa praça, que se pintalgam de loiro platinado, colocam perucas e capachinhos, fazem enxertos capilares, usam jeans rasgados e, acima de tudo, adoram serem descorados pela magia do photoshop. São pessoas que renegam infantilmente a idade que têm e nem se apercebem o quão ridículas ficam ao fazê-lo.

Há várias formas de encararmos a chegada da “idade da razão”, umas mais positivas do que outras, mas ficamos quase todos com uma tremenda necessidade de nos sentirmos seguros.

A perda da beleza é, mais do que nos homens, o maior pavor das mulheres. E o que é belo, como todos os conceitos difíceis, está muitas vezes para lá do que se vê. Há quem ache que o belo tem um caráter essencial, que se presume, tão indefetivelmente como tudo o que é importante e que, por isso mesmo, diz muito mais sobre aquele que contempla do que sobre o objeto de admiração. Daí a afirmação de que a beleza está nos olhos daquele que ama. Se for assim, quer dizer, se a beleza for o sintoma de uma rendição afetiva, então entramos num outro registo valorativo em que o sensorial manda.

Mas para lá da subjetivação do que seja ou não belo, existe certamente um conceito objetivo do que seja a beleza e a fealdade; ou seja: ninguém pode, sem usar de má fé, dizer que determinada atriz, eleita popularmente como uma sex simbol, é objetivamente feia. E é no retorno da (nossa) imagem, que o espelho nos dá todos os dias pela manhã, que reside o grosso de todos os nossos pavores: “Espelho meu, há alguém (ainda) mais feio do que eu?”

(escrito algures no ano passado)

quinta-feira, 20 de abril de 2017

Sexually Exploited Children



Uma das minhas leituras do momento é um livro impressionante, na sua versão original em inglês, 'Sexually Exploited Children' - desconheço se existe alguma tradução para a nossa língua -, escrito por Phyllis Kilbourn e Marjorie McDermid, duas pessoas intimamente ligadas ao fenómeno, pertencentes à Associação de matriz católica, 'Rainbows Hope', que se dedica maioritariamente à denúncia e ajuda de crianças vítimas de abusos sexuais.

O livro, como o próprio nome indica, trata da tragédia de mais de um milhão de crianças forçadas todos os anos à prostituição, estimando-se que mais de dez milhões de crianças em todo o mundo sejam vítimas da indústria do sexo. Desde o incesto, ao rapto, ao tráfico, à venda das chamadas 'crianças noivas', à mutilação genital, à pornografia, à escravatura e à sujeição a doenças infeto-contagiosas, de tudo as crianças inocentes são vítimas. E este negócio, apesar do incremento dos esforços das Nações Unidas e das ONGs, tem vindo a aumentar em cada ano que passa.

A Tailândia, a Índia, o Bangladesh, as Filipinas, o Laos, o Cambodja, o Vietname, o Sri Lanka e a China, situados no sudoeste asiático, bem como a Colômbia e o Brasil, na América do sul, são os principais países fornecedores da matéria prima para este chorudo negócio. Pelos motivos mais variados, estejam eles ligados a fatores de pobreza extrema, tradições culturais, corrupção, ou desrespeito absoluto pelos Direitos Fundamentais das Crianças, é um facto que, sobretudo nestes países, a proporção de crianças abusadas, vendidas e obrigadas a prostituírem-se em bordéis, é assustadora.

Hoje, o turismo sexual - sem procura não existe oferta - é, talvez, o principal instigador do fenómeno. Calcula-se que cerca de 700 mil ocidentais, sobretudo homens, viajem todos os anos para um destes países para terem sexo com crianças, uma vez que nos seus países de origem as leis são muito mais duras, as autoridades mais atentas e o estigmatismo social para com os pedófilos extremamente severo.

A Pedofilia, cujo étimo vem do grego e quer dizer literalmente 'amor pelas crianças', tem hoje um significado totalmente diferente. Trata-se de uma perversão sexual na qual a atracão sexual de um indivíduo adulto ou adolescente está dirigida primariamente para crianças pré-púberes. É encarada pela psiquiatria como uma patologia, um desvio sexual e classificada como uma desordem mental e de personalidade do adulto; mas face à consciência da ilicitude do ato e à possibilidade de escolher entre o praticar ou não, é severamente punida pela lei penal da maioria dos países, onde é igualmente considerada um crime público - que não carece de queixa, ou independente de queixa. Nos países acima descritos, onde a corrupção é transversal a toda a sociedade e em que na maioria das vezes os governantes têm lucros chorudos provenientes da exploração sexual, é fácil a impunidade.

Há na atualidade um debate aceso sobre o fenómeno da pedofilia e a hipótese da castração química dos prevaricadores tem sido aventada nos debates parlamentares de alguns países. A tese pacificamente acolhida tem sido a de que a concordância do pedófilo é sempre necessária e fundamental. Uma vez mais, mal-grado a minha formação jurídica e as injeções maciças de Direitos Fundamentais e da Personalidade que tive de estudar e engolir, não concordo com a desproporcionada proteção e garantia dada aos arguidos e aos condenados, face aos direitos das vítimas, a que se assiste na maioria das legislações penais das sociedades ocidentais.

Se a maioria dos cidadãos trabalha, paga os seus impostos, vive segundo as margens e os balizamentos sociais e obedece aos códigos de ética, social e legalmente aceites, de forma pacífica, tem o legítimo direito de ver a proteção da sua vida e dos seus bens primariamente reconhecidos. O prémio justo para com aqueles que vivem dentro das margens da lei, que não cometem crimes e que pagam o seu tributo social através dos impostos e das taxas, seria a existência de uma legislação penal pouco branda para com os criminosos e verdadeiramente desencorajadora da prática de crimes.

No caso dos pedófilos reincidentes, a castração química deveria ser sempre uma medida penal acessória do cumprimento de uma pena de prisão efetiva, sem carecer do consentimento prévio do prevaricador.

Enquanto não tratarmos os criminosos como criminosos, enquanto não nos decidirmos a premiar os cumpridores e punir eficazmente os faltosos, caminharemos paulatinamente, mas de forma eficaz, para uma sociedade laça, decadente, fraca, que soçobrará inevitavelmente face à sua própria inércia.

(escrito algures em 2011)

O Alfarrabista




Entra-se por uma larga portada de madeira em tons verdete, cravada com rebites ferrugentos, mesclados de laranja e negro, que só abre com um veemente empurrão, que faz soar uma sineta doirada de um tinido frouxo; e por onde quer que a vista avance, divisam-se livros, montanhas deles, posterizados em estantes gigantescas, simetricamente dispostos, como velhas fragatas ancoradas no último porto, guardião de uma quietude de paz, morredoura de silêncios.

O odor a acre que adeja o antro, torna-se mais intenso à medida que as narinas detetam as prateleiras mais esconsas, onde repousam os alfarrábios e as antigualhas que faz muito tempo perderam a afoiteza de se deixarem manusear. Os acordes de 'Claire de Lune' de Debussy, quase em surdina, conferem a sobriedade que o sacro lugar almeja.

Por detrás de um balcão, que mais parece um féretro tisnado de negro azeviche, está o alfarrabista: a tez esquinada, a cabeça cabisbaixa, quase calva, luzindo intensamente por entre a escassa cã. Veste uma camisa de popelina esbranquiçada, que mais parece a vela de um navio; e, aperrado ao cesto da gávea do colarinho, uma gravata de nó eterno, arroxeada, acaba abruptamente, pouco abaixo da zona do umbigo. Nas suas longas mãos de esterlina, lídimas como um papiro, move-se com desenvoltura uma esferográfica comum que rabisca algo que me suscita invulgar curiosidade. O vendedor de alfarrábios, finalmente erguendo a cabeça, como um grande vaso que se retira de um poço, deixa cair uns óculos ovais embaciados, encavalitados no terminal de um nariz adunco; e, esboçando um sorriso glicérico, estende um manual de ornitologia de lombada carmesim a uma jovem com ar de estudante afincada.

Os meus olhos, a principio ludibriados pela luz espúria, pousam numa estante dedicada aos temas de grave questiúncula: os intimoratos ensaios de Filosofia. Deixei para trás a 'Utopia' de Thomas Morus, o 'Elogio da Loucura' de Erasmo, o 'Organon' de Aristóteles, ou a 'A República' em três volumes de Platão, tudo obras que já lera por dever de estudante, para me debruçar nos ensaios do meu pensador preferido do século XX: Bertrand Russel. A clareza e utilidade imediata das suas ideias e, sobretudo, o incisivo poder de ortografar, de uma forma serena, sistemática e bem enquadrada, uma linha coerente de pensamento, sempre acolheram a minha dileta atenção. Russel foi um pensador do mundo; que sempre encarou como um todo.

Sem pressas, escolhido o livro de Russel, paguei e saí para a rua com ele debaixo do braço. Lá fora esperava-me um sol flavo e um dia de esplendor; e, se por sortilégio do acaso, me perguntassem onde é que eu tinha estado o tempo todo nessa linda manhã primaveril de Lisboa, responderia que tinha andado a explorar as margens da vida, entretido nas caves de mim, cada vez mais convencido que a vida não é para ser vivida dentro dos limites.

Quem sonha a dormir sabe que, de manhã, ao acordar, tudo era uma ilusão, mas os que sonham de olhos abertos acham que o estofo do futuro será feito desses sonhos. Eu quero acreditar nisso, assim como estou convencido que o Paraíso, a existir, deve ser parecido com um alfarrábio e não uma biblioteca, como cismava Borges.


(algures em 2010, por aí...)

A vida também se escreve



A liberdade de começar de novo é, porventura, a maior de todas as liberdades. A «capacidade Fénix» de nos reerguermos das cinzas, reunindo os cacos, o que sobejou da mobília e das loiças, pondo tudo numa maleta mal enjeitada, refazendo-nos noutro lugar, como se fora um dom de maturidade maior, ou uma mostra da mestria e poder de adaptação e sobrevivência.
[Há, inclusive, quem tenha definido a inteligência como a especial capacidade de adaptação a cenários novos, embora pensemos que qualquer tentativa de caraterização do termo redunde numa falácia - há muitos tipos de inteligência, não sendo de todo possível subsumi-la numa definição universal e finalística.]

Igualmente forte, como a significação de coragem, é o poder-dever de cambiar de opinião, arrepiar caminho, refletir, não fazer parte de «uma conspiração de estúpidos», acríticos, acéfalos, completamente tornados invisuais pela incapacidade de análise do self.

Fortalecemo-nos cada vez que nos imaginamos dotados desse sublime virtuosismo, que é a arte de nos reinventarmos. Sentimo-nos aptos a atravessar mares de tormentas, encapelados por ondas de contrariedades, contingências, agastamentos, saindo deles doridos, franzidos, mas capazes de endireitar os nossos amarrotados, de forma a nos apresentarmos quase incólumes.

Pretendemos, quantas vezes, delimitar as fronteiras entre o «correto» e o «incorreto» e – sabemo-lo bem – é impossível agradar a gregos e a troianos; movemo-nos sempre nas areias pouco seguras do relativo e do subjetivo, sem saber ao certo onde pára esse paradigma chamado «verdade».

A nossa vida desenrola-se num trilho a que chamarei, por comodidade, caminho principal: um lugar confuso, inóspito, repleto de encruzilhadas, ruelas esconsas, algumas sem saída, percursos alternativos; e, queiramos ou não, perante o que nos vai surgindo ao longo da rota, estamos sempre a ser confrontados com a necessidade de optar seguir por uma via ou por outra. Não há escolhas isentas de contrariedades, nem há nada capaz de escapar ao crivo da dúvida casuística. Todas as decisões condensam em si razões prós e razões contra. E a capacidade de escolher e ser consequente nas suas escolhas é o que distingue o maduro do latente.

Consciente da propensão, quiçá demasiado intimista e filosófica de alguns dos meus escritos, avessos a propiciar momentos menos lúdicos, graciosos, leituras leves, de prazer franco, achei por bem remeter alguns - os mais varicosos e depressivos - para um dossier esconso: um arrazoado diário, mais consentâneo com o derrame de mazelas - as minhas - que podem ser, em contraponto, a alegria do quotidiano de alguém.

segunda-feira, 17 de abril de 2017

Apologia da solidão

Há muito tempo que não escrevo com o coração. Sei que tenho andado um pouco arredado de mim mesmo e com uma vontade diminuída de expor as minhas entranhas. Esta coisa de termos vários espaços de escrita, como é o meu caso, dilacera-nos um pouco. Num espaço público, obedecemos à regra da contenção, uma vez que não nos protegemos com o anonimato e tudo o que escrevemos é passível de ser lido pelos outros, sem que haja ameaça à reserva da nossa intimidade. Noutros espaços, a coberto do anonimato, podemos extraviar o que nos vai na alma sem a preocupação de termos de nos proteger. Tal não significa que em ambas as situações não sejamos nós mesmos, mas existe sempre a diferença entre o que é dizível em público e o que não é. 

No nosso quotidiano, as multidões de gente nas ruas, a voracidade dos dias ocupados, o trânsito caótico, o corre-corre de um lado para o outro e as preocupações no trabalho, parecem ampliar o sentimento de isolamento, ao invés de conceder a esperável sensação de companhia; e a escrita é, sem dúvida, um dos melhores refúgios para os solitários por opção; ou por falta dela. No meu caso, sei que existe uma certa situação de isolamento social, voluntária e paulatinamente construída ao longo dos últimos anos, com evitamentos, escapismos, atitudes de distanciamento ou focagens excessivas, quando não obsessivas, como são o caso da leitura e da escrita. 

Para algumas pessoas solidão é sempre sinónimo de infelicidade. Para mim, a cadente consciência da efemeridade da vida, cada vez mais me empurra para a escolha criteriosa das pessoas com quem quero estar e empregar parte do meu tempo. Trocado por miúdos: já não perco tempo, a menos que para isso seja obrigado, como é o caso do dever profissional, com pessoas e situações que não me digam rigorosamente nada. A conhecida frase "mais vale só do que mal acompanhado", com algumas adaptações, pode muito bem ilustrar aquilo que há muito me vai na alma. Quem se mantém interessante e interessado; quem assume o protagonismo da própria vida; quem investe numa actividade - a escrita, a leitura, as viagens, o sonho! - só porque sim, no que encontra e no que lá está à volta, e não reivindica da vida direitos "naturais"; quem se motiva para o dia seguinte só porque ele vai chegar; quem gosta profundamente de alguém ou de alguma coisa, pode queixar-se de tudo menos de solidão.


A propósito dos biscoitos de canela

Não me incluo no género de pessoas que criam rotinas severas no que respeita a frequentarem sempre os mesmos supermercados, mas o Lidl seguramente que já integra o roteiro dos meus locais habituais de compras. Gosto de consumir alguns produtos que por lá encontro e não são só os preços acessíveis que me cativam. A mescla popular com que me deparo cada vez que lá entro: gente despretensiosa, vulgar, ignota de luxos, apenas interessada em encontrar artigos de primeira necessidade, com utilidade real, muitas vezes catando moedas perdidas do fundo da carteira para conseguir pagar a conta, fazem-me sentir a relatividade do que significa «ser-se socialmente importante».

Cada vez sinto com maior convicção que é no seio dos humildes, dos deserdados – muitos deles nem têm acesso ao mercado, para quê falar-se de economia de mercado?! –, que ainda resta alguma pureza e humanidade; alguma valoração daquilo que realmente importa reter nesta centelha de vida que não passa de um conjunto de efemeridades, sempre ao sabor de contingências que, por vezes, escapam por completo ao nosso controlo. É muitas vezes junto dessa gente sem história, anónima como o ar invisível da tarde, que consigo sentir-me uma melhor pessoa.

O Lidl, por contraposição aos hipermercados de primeira linha, verdadeiros templos do consumo hodierno, funciona como uma espécie de "Grande Mercearia do Mundo Real", onde os mais pobres podem aceder aos consumíveis alimentares que mais se aproximam dos seus parcos rendimentos mensais.

Eu gosto das batas desengonçadas, amarelas e azuis, dos empregados do Lidl. Gosto de surripiar uma caixa de cartão vazia de uma prateleira, andar com ela ao colo e enchê-la de produtos. Não gosto de ver as caixas onde se pagam as compras, vazias, somente com dois funcionários a fazer as vezes de cinco, alinhando numa exploração consentida, ameaçados pelo espetro constante da perda do posto de trabalho: " Se não aceitares trabalhar por cinco funcionários, há mais de mil que cobiçam o teu posto de trabalho!".

Esta é hoje a chantagem em quase todos nós irremediavelmente vivemos, por nossa culpa e consentimento.

Acho curioso pensar nas formas díspares como somos tratados nos diferentes supermercados, desde o El Corte Inglês, passando pelo Continente, pelo Jumbo, até ao Minipreço, ao Lidl ou ao Plus. Os vários estratos sociais reconhecem-se nas gentes que frequentam os mais diversos estabelecimentos alimentares que pulsam pelas nossas cidades.

E foi este pensamento curto, a clivagem social metaforizada nos frequentadores habituais de certo tipo de supermercados, que me fez tomar consciência de que o mundo é um espetáculo a múltiplas dimensões e não uma caixa arrumada de coisas, bichos e gentes.

Somos um país do "Primeiro Mundo", usuário do Euro, versado nas tecnologias da comunicação, outrora, reconhecido nos mercados financeiros, como detentor de uma pretensa "estabilidade económica", democracia funcional e paz social, mas tudo isso já era. E que cidadania é a nossa quando eu me deparo com uma velhota, na fila, mesmo à minha frente, dizendo que lhe faltam cinquenta e cinco cêntimos para levar dois litros de leite e um pacote de bolachas para casa? Choramos? Ofertamos-lhe os cêntimos? Assobiamos para o ar? Ganhamos coragem e dizemos não à nossa vergonhosa indiferença?

Desço às minúcias do dia-a-dia, à indiferença que confrange, sempre que me deparo com situações deste género e tudo se torna para mim objeto de interrogação. Fiquei sabendo que nesta cadeia alimentar - o LIDL - os operadores de caixa ganham o salário mínimo nacional, para além de terem de desempenhar funções que caberiam, muitas vezes, ao triplo dos colegas, no decurso das oito horas seguidas que dura a sua jornada laboral.

São estes os novos tempos a que assisto à medida que a idade vai tomando conta de mim. Eu que só entrei no Lidl para comprar os meus biscoitos de canela favoritos, contendo glúten, como eles fazem questão de mencionar no rótulo da embalagem e saio de lá pesaroso e reflexivo. A injustiça é endémica e irrevogável, mas cabe a cada um de nós pensar no outro.

Leiria - 2011


quarta-feira, 12 de abril de 2017

Sobre a paixão

Hoje, não sei porquê, apeteceu-me falar da paixão, esse estranho sentimento exacerbado entre duas pessoas, capaz de ultrapassar barreiras sociais, diferenças de formação, idades e géneros.

A paixão completamente correspondida causa grandiosa felicidade e satisfação ao apaixonado, pelo contrário qualquer dificuldade para atingir essa plenitude pode trazer grande tristeza, pois o apaixonado só se vê feliz ao conseguir o objeto da sua paixão.

A paixão é, por alguns, encarada como uma patologia amorosa, um superlativo fantasioso da realidade sobre o o outro, tendo em vista que o indivíduo apaixonado se funde no outro, ou seja, perde a sua individualidade, que só é resgatada quando na presença do outro. Com o passar do tempo, essa intensidade de fusão vai se esvaindo, tendo em vista que a paixão é uma idealização mítica do outro.

Temos períodos da nossa vida em que o deslumbramento dos namoros, da atração sexual, da moda, da própria capacidade de perceber imensas abstrações e ficar horas em congeminações sobre o infinito, o sentido da vida, sobre quem se é, de onde se vem e para onde se vai, preenche-nos por completo o pensamento. Deslumbramo-nos depois com relações, com pessoas porque são muito bonitas, muito elegantes, muito inteligentes, muito poderosas, muito qualquer coisa entre o que achamos que queríamos ser e o que queríamos ter. Também nos deslumbramos com o amor, com as coisas que vamos sendo e conseguindo e às vezes ultrapassam as nossas anteriores expetativas, com o mundo que nos rodeia e que em alguns aspetos nos surpreende favoravelmente.

Mas à medida que a idade avança, a capacidade de deslumbramento diminui na direta proporção. 

Penso que deve haver uma arte de amar, para justificar que ao longo dos tempos e de múltiplas formas de expressão o amor seja cantado, louvado, evocado como um sentido central da vida e da existência. Deve haver um jeito particular de alguns para ultrapassarem a emoção do que sentem quando se percebem vinculados a alguém e, a partir disso, construírem poéticas, estéticas e até éticas do ser e do estar.

Alguns, onde eu me incluo, parecem destinados a acreditar que a paixão, e o amor que por vezes se lhe segue, tem de ser pungente e cheio. Que a intensidade é melhor, muito melhor, do que a amenidade. Que o amor é mais profundo ou mais verdadeiro quanto mais exuberante e colorido for. Que o amor, erotizado, sacralizado, tingido de ternura imensa, é essencial à vida e cobre os amantes de uma transcendência única.

Pouco ou muito, ligado a grandes e nobres causas ou a pequenas e insignificantes necessidades, a paixão e o deslumbramento diz de nós mesmos e da nossa necessidade de emoção. Sinto, no que toca à paixão, que resulta mais saboroso pecar por excesso do que por falta, ainda que o equilíbrio seja, para todos nós, apenas uma tendência e não necessariamente o caminho escolhido pelo nosso coração.

terça-feira, 11 de abril de 2017

De dentro para fora



As memórias trouxeram-me à liça um texto que escrevi e publiquei precisamente há um ano atrás. Como nada do que então escrevi se encontra em desconformidade com a minha atual forma de pensar e sentir, resolvi (re)publicar as palavras que então me saíram de rompante.

A clivagem irremediável entre criaturas que vivem eternamente nas luzes da ribalta e os condenados a viver na sombra sempre me incomodou. Sacramentalmente, por razões do coração, onde cabem opções políticas e morais, entre outras, sempre me insurgi contra os poderosos e senti-me mais próximo daqueles que nada têm, e cuja importância é tão diminuta que grande parte da sociedade acha-se no direito de os desprezar. Esta minha forma de sentir afirma-se com clareza sempre que me deparo com pessoas de um certo calibre.

Os meus heróis pouco ou nada têm a ver com gente que dribla bem com uma bola nos pés ou nasceu para os lados da Quinta da Marinha, em piscinas repletas de dinheiro. No amor, em fazer bem ao próximo, na cultura, nas artes em geral, na música, na poesia e na literatura, fermenta-se a matéria com que são feitos os meus heróis - aqueles que não me importava de imitar, fosse o caso de possuir a sua verve.

Infelizmente, vivemos numa época de imediatismos, que atribui majoração a capacidades pouco recomendáveis e à posse de bens materiais. A ânsia insaciável de subjugar o próximo, a vertigem do poder, o estar acima do outro, são os valores-paradigma que guiam o tempo em que vivemos e no qual, confesso, não me sinto de todo integrado.

Talvez eu seja um romântico, no sentido mais comum da expressão, um idealista, um fantasioso, como já me chamaram, com um modo de pensar mais consentâneo com modelos societários hoje considerados retro, ou pertencentes ao jurássico das ideias. Confesso-me imperfeitíssimo e forram-me mais intenções do que as eventuais boas ações, que publicito, mas muitas vezes não pratico; mas, ainda assim, não abdico dos pensamentos que me constituem e integram. Não fora isso, o que seria de mim?

abril de 2015

quarta-feira, 5 de abril de 2017

Nunca percebi os teus olhos

Nunca percebi os teus olhos. Hoje começou mais uma noite outonal, com seu riso de feiticeira, a recolher os cansaços, a estender as suas sombras, onde só o frio habita. Tu telefonas para me dizer que estás a desinteressar-te completamente da tarefa árdua e chata de viver. Que tens sentido uma dor teimosa no lugar que presumo seja o teu coração. Uma dor lancinante que te esfarela. Nem consigo atinar com a razão porque hoje te falo. Já passou tanto tempo. Quando procuro entender a teia de acasos e erros, de brutalidades e absurdos, em que se transformou a tua vida, voltam-me à lembrança as conversas que mantínhamos no fiar da tarde, em que as nossas bocas se abriam só em diritambos, lendo os dizeres, como se fossem instantes de rosa, perfeitos. Nesse tempo o meu amor por ti existia. Tu eras o cheiro das flores, o cume dos montes, o inescurecível céu azul, puríssimo e sereno, o orvalho no limbo das folhas, o sol poente. Tu eras a minha poesia. O que aconteceu depois tu sabes. Cada um seguiu o seu rumo e trilhou os caminhos que entendeu. Vivi muito tempo no escuro de mim sem me interrogar, mas curei-me de ti. Não raro, recordava os teus olhos de amêndoa e os lindos cabelos compridos que penteavas, mirando-te num espelho minúsculo, oval, que trazias invariavelmente na mala e que cristalizava e multiplicava a luz, tornando-te filha do sol. Amei-te, sim, mas, confesso, nunca entendi os teus olhos. Estava certo que tinhas folhas de sol nos cabelos e um fragmento de céu no olhar. Mas hoje já nem sei. E, passado tanto tempo, comunicas-me a tua desistência, a mim que há muito decidi continuar até ao fim, ainda que raso como a lama.

Leiria - 2010