sexta-feira, 27 de maio de 2022

Amor em liberdade

Se amamos alguém ao ponto de desejar que esse alguém seja feliz, nunca poderemos ter a arrogância de saber o que fará essa pessoa feliz. Se impomos a condição de que queremos que o outro seja feliz, ao nosso lado, então não amamos, tornamo-nos ditadores. Quando amamos verdadeiramente, e não impomos condição alguma, permitimos que cada um seja feliz à sua maneira. A única relação íntima possível é connosco mesmo. É duro viver com alguém que nos impõe continuamente a sua vontade. Um inferno. Ninguém gosta de ditadores.




A vontade de poetar



Tenho muita vontade de tornar a escrever poesia, mas, mais do que a prosa, a escrita poética exige desertos de solidão e um estado de espírito especialíssimo que não se arranja quando se quer. A poesia é sempre um derrame da alma de quem escreve, um estado de exposição franca, um corpo esventrado, engalanado com laivos de estética.

Muito do que se escreve fica na gaveta, ou em rascunho, mas, tarde ou cedo, alguém certamente acaba por ler os nosso sobejos. Nunca destruímos completamente tudo o que escrevemos, ainda que imputemos falta de qualidade literária às nossas palavras; mas deixar rastos faz parte da natureza humana. Mesmo depois da nossa morte, há sempre quem rebusque o nosso espólio e fique surpreendido com o que encontra, acabando por ficar a conhecer mais do nosso âmago: facetas de personalidade impensáveis, corações eternamente inquietos, seres mal-amados, infâncias marcantes, mentes distorcidas e tortuosas. Foi assim com Fernando Pessoa e com tantos outros génios da poesia e não há motivos para pensar que possa ser diferente com poetas menores.

Em vida, mostramos as caves das nossas emoções somente àqueles que reputamos merecedores de tomar a ciência sobre o nosso Eu: a nossa carne viva. Pouco interessa que os destinatários dos (nossos) poemas os entendam e os recebam como interpretações autênticas dos mesmos, pois, essas só o autor poderia desvendar; e, nalguns casos, nem mesmo ele conseguiria explicar cabalmente tudo o que quis dizer. Interessa, outrossim, que quem leia os poemas sinta as palavras e lhes atribua sentidos possíveis para além da estética que lhes está subjacente.

Escrever poesia é um pouco como radiografar o nosso interior, a forma como a nossa sensibilidade se organiza, como subjetivamos o que nos rodeia, ou os sentires que povoam a nossa mente, e depois expo-los a uma luz que permita o olhar dos outros. Não deixa de ser tudo um grande delírio, um universo metafórico onde as palavras vertidas aparentam, não raro, uma pálida correspondência com a realidade. Há verdades, mentiras, ficções, desejos, crenças, malformações, tudo num turbilhão. Há máscaras na poesia, tal como no teatro existem disfarces, trajes, artefatos, cenários e o palco onde se desenrola o processo teatral. Na poesia o palco é a nossa mente. As palavras fluem da nossa mente, entontecidas, em voragem, quase sempre perfumadas com odores agradáveis como os que se desprendem das acácias em flor.

Mas o disfarce é constante, irrevogável. O poeta é um perito na arte do embuste e recusa conscientemente a linguagem denotativa. Por isso se diz que a poesia representa, de certa forma, a antítese do normal valor gramatical das palavras. O poeta prefere as praias da metáfora, da alegoria; e, não raro, delicia-se com o perfeito exagero. É o encenador da trama criada pelas suas palavras, mas também pode ser um ou vários dos personagens do enredo que criou; pode ser uma forma anímica, ou não; ou, ainda, outra coisa qualquer. O limite não é o absurdo, mas a inestética; e o desvalor das palavras é sempre um pecado.

Tal como a prosa, também a poesia pode enfermar de prolixidade, abusar da adjetivação, das imagens, das tautologias e usar de franco mau gosto com vocábulos rebuscados. A tentação do facilitismo e o seguidismo de "modelos de sucesso" nunca nos abandonam por completo. E isso é mais visível nos poetas menores. Mas na poesia valora-se sempre a sinceridade de quem escreve e, mais do que o evitar dos lugares comuns, das rimas fáceis e das construções frásicas delicodoces, é a sua autenticidade que nos conquista e faz amá-la; e isso mais do que outra coisa qualquer.



Ainda Lautrec


Lautrec sempre foi dos pintores que mais me fascinou. Talvez que a sua vida devassa e curta, vivida durante a época áurea do decadentismo, na cidade europeia império do vício, tivesse afilado o meu imaginário, mas não recordo nenhum artista que tão intensamente tivesse retratado o seu próprio quotidiano como ele. Ainda hoje são famosos os cartazes anunciadores de espetáculos, por si ilustrados, e que sempre constituíram a sua fonte primária de sustento.

Toulouse-Lautrec, nasceu em 1864 e faleceu em 1901, pouco depois da viragem do século. Foi ilustrador, cartonista, retratista, pintor e a sua imersão absoluta na sórdida e teatral Paris do final do século XIX, foi sempre a musa inspiradora da sua obra. Lautrec vivia em Montmartre e dedicava parte do seu tempo a retratar a vida no Moulin Rouge e noutros cabarets parisienses, bem como dos bordéis imundos, onde de resto era presença assídua. Alegadamente, terá vivido longos períodos em lupanares, como amante e confidente de prostitutas, onde contraiu sífilis. Alcoólico profundo, acabou por morrer cedo, ainda antes de ter completado 37 anos de idade, face ao acumulado dos problemas de saúde de que padecia.

Foi um "filho de boas famílias", míope, com o pé boto e estatura de pigmeu, que se auto excluiu de quaisquer mundos que não fossem girândolas cor-de-folia. Cumpriu o fatalismo de outros tantos seres geniais no campos das artes: viver a vida à velocidade de uma estrela cadente e esvair-se cedo.





Pensamentos à solta



Há pessoas que estão sempre a afiar as garras e que julgam que a melhor defesa é (sempre) o ataque. Bater antes de ser batido. Marcar desde logo território e partir para o combate numa posição de vantagem. Deixar o adversário knock out sem que ele tenha, sequer, a possibilidade de esboçar um gesto de defesa. É a política da "terra queimada", no que às relações pessoais respeita.

As guerras sempre começaram por ser pequenas escaramuças que degeneraram numa escalada sem fim à vista. Não são mais do que uma representação superlativada dos conflitos interpessoais.

Neste mundo egótico em que a regra maior é sobreviver, ter outro comportamento pode, muitas vezes, levar-nos à auto-aniquilação, ou à morte consentida. Ser bom, ter um comportamento altruísta, implica aceitar à partida a ideia de perda, de sofrimento e possuir uma capacidade infinita para amortizar injustiças. É dar sem esperar retorno. É aceitar o sacrifício. É conseguir ser o melhor Ser do mundo e arvorar-se da qualidade maior que é a bondade. É mais fácil ser culto, interessante, esteta, filósofo, ensaista, poeta, diseur, whatever, do que ser genuinamente bom.

Essas boas pessoas são as melhores do mundo e são as únicas que invejo e admiro.

Leiria - 2016


quarta-feira, 25 de maio de 2022

Mulher sentada à beira do Lis



Alguém me disse, com um ar muito convicto, que estas bolinhas de algodão em rama que andam por aí a esvoaçar sem rumo e fazem imensos rodopios antes de assentarem no chão, desprendem-se aos milhares dos enormes plátanos que bordejam o Lis e provocam alergias. Eu não sei se isso é verdade, mas acredito que assim seja. O que é certo é que a primavera regressou com força e desde que comecei a escrevinhar estas linhas os pardalitos ainda não largaram a minha janela. Por mero deleite, costumo deixar uns miolos de pão, ou bolachas, em cima do parapeito da varanda, pois sei que mais tarde ou mais cedo eles acabam por aparecer. Sinto um gozo soberbo quando no final da tarde escuto os chilreios destas avezinhas trémulas e gorduchas que dão saltinhos para a esquerda e para a direita rodando sobre si.

Mas será que era disto que eu queria falar? Da primavera, dos oráculos que, um pouco por toda a parte, conseguimos ver anunciar a passagem da meia estação com uma luz que faz as cores do mundo resplandecerem no contraste com o azul do céu? Talvez, sim. Este tempo positiva-me...

No próximo fim-de-semana espera-me uma tarefa árdua: fazer por esquecer recordações, papéis diversos, fotografias, por vezes mesmo pequenas coisas escritas e guardá-las algures no fundo de uma gaveta ou na parte de trás de uma estante mais elevada e de difícil acesso, ou porventura, mais assertivamente, deitar tudo no lixo. Sei que há uma página da minha vida, pesada como chumbo, que quero virar. As outras laudas, as que inevitavelmente lhe seguem, estão em branco e cabe-me a mim preenchê-las com os tais momentos que careço: prestações positivas e a felicidade de uma vida fresca.

Há muito que abandonei o zapping doentio que em definitivo se incorporou nos tiques domésticos de quem se senta na sala depois do jantar. Os meus entretenimentos passam pela leitura, pela escrita, pela música ou pelos passeios pela cidade vazia, depois da acalmia do trânsito e recuperar o prazer de olhar os prédios, as janelas, os telhados, as cores de todas as coisas. E assim, por vezes, vou escorregando de ideia em ideia, afinando planos e contingências que careço solucionar dentro de mim.

Quem me lê, por certo, já se apercebeu desta minha veia diarista, epistolar – em mim recorrente - e talvez que o meu olhar sobre a vida e os seus enfeites abram alas a que alguém me explique melhor o porquê de tantas coisas, as respostas que eu não tenho, ou, se tenho, já nem sei onde as guardei.


* Mulher sentada à beira do Lis
Leiria - 2007

domingo, 22 de maio de 2022

Primeiras impressões



Estou em Leiria há cerca de 15 dias. Habito um apartamento modesto que divido com uns engenheiros de formação recente, rapazes novíssimos, boa gente. Da urbe, só conhecia vagamente a entrada principal que, no momento, está tomada pelas obras do «Polis». O centro histórico, com as suas ruelas antigas e casarões fidalgos, encontra-se demasiado entaipado para se poder adivinhar o que vai surgir por detrás desses biombos cinzentos que tudo desfeiam. Toda a cidade parece suspensa na expetativa que a recuperação dos imóveis degradados lhe devolva o brilho e a dignidade de outrora.

Leiria é uma cidade em expansão. A «Nova Leiria», como os leirienses lhe chamam, é uma espécie de Restelo cá da terra. Construída sobre terrenos rústicos, outrora de lavoura, convertidos em lotes urbanos – o dinheiro fala mais alto – onde pontificam apartamentos moderníssimos com tipologias diversas, oferece aos mais abastados todo o conforto moderno. Por lá, exultam duplex, penthouses, ares condicionados, aquecimentos centrais, lareiras, vídeos de porta, aspiradores centrais, garagens com portões automáticos, e toda a gama de paramentos que os consumistas acham necessários à sua nova condição de novo-rico, ou neo-individado. Para muitos, infelizmente, é essa a condição sublime da felicidade, talvez a única que conheçam.

No meio de densa vegetação, dominando por completo, num ângulo de 360 graus, uma cidade originária que dele fez o núcleo de polarização, surge, lindíssimo, o castelo altaneiro. É em especial à noite, visto da Praça Rodrigues Lobo, mercê de uma iluminação suave, amarelejada, que lhe realça ainda mais a beleza, que perco, incansável, o meu olhar no recorte da sua silhueta.
O Liz serpenteia ao longo de toda a parte baixa da cidade, tornando aprazíveis as margens frondosas, bordejadas por álamos e choupos, que derramam os seus braços sobre as águas, onde casais trocam carícias enquanto se deliciam olhando os gansos, os cisnes, os patos, que se deixam ir em inocência e languidez ao sabor da corrente.

Encontro em Leiria uma cidade típica de província, embora já demasiado evoluída para poder merecer o epíteto pejorativo com que, o mais das vezes com injustiça, os lisboetas brindam as cidades dessacralizadas de grandes superfícies comerciais e obras de regime magnificentes.

A pequenez do meio ressalta quando me apercebo que os seus habitantes, não raro, se tratam pelo nome próprio, quando são clientes nas lojas, nos cafés, nas repartições públicas. Trata-se de uma cidade pouco populosa, por comparação às urbes que rodeiam Lisboa, compostas de aglutinados sem fim.
Há 16 anos atrás, por força de circunstâncias algo semelhantes, morei no Baixo Alentejo, em Santiago do Cacém, mas Leiria, sem dúvida, é incomensuravelmente mais evoluída, menos fechada nos seus ritos, menos preconceituosa.

A noite já desceu sobre a Praça Principal, que faz lembrar uma Calle Mayor em tamanho minúsculo. Do poeta plagiador de Camões, jaz a um canto a sua estátua, sóbria, de uma discrição quase irritante. No cimo, o castelo «Korrodi», sobrevoado por errantes bandos de andorinhas, surge iluminado de graça suave, no introito de mais um final de dia. Pelas ruelas da antiga Judiaria, magotes de jovens tenrinhos, estudantes dos vários estabelecimentos de ensino superior que cercam a cidade, demandam a zona histórica à procura dos bares e da felicidade de mais uma noite de folia. Não tarda, o resto de Leiria, a parte menos jovem, vai dormir, e eu também. *

* Primeiras impressões sobre a cidade de Leiria.

Leiria - Junho de 2006.


sábado, 21 de maio de 2022

Na praia



Prezo muito a doce penitência dos pescadores solitários, fiéis, sempre, junto à sua cana, vigiando o dançar periclitante da linha, como pastores vigilantes de um rebanho de peixes, num prado eterno feito de mar. De quando em quando, desviam os olhos do horizonte e rodam o carreto de nylon verde, ensaiam um lançamento longo, mais junto às rochas negras forradas de algas, em águas mais afortunadas, onde os cardumes se alimentam.

As canas estão fincadas na areia, em suportes próprios. São artes antigas, instrumentos pontiagudos que vão adelgaçando à medida que se aproximam da extremidade. Do lugar donde as vejo, sempre que o vento clama mais forte os seus caprichos, curvam-se com graciosidade, como bicos de tucano. Ao seu lado, muito perto, baldes vulgares, repletos de água do mar, servem de depósito a peixes que já não nadam: jazem argênteos, no fundo, numa quietude de impressionante morte fresca, mas a vibração da água, por breves momentos, parece que os vivifica; mas é mentira.

Sigo sempre no sentido contrário à zona dos chapéus-de-sol, caminhando contra a luz. Fujo das áreas concessionadas, das barracas «Olá», laranja e escarlate; das cadeiras «Pepsi» azul noite. Raspo-me das areias movediças da mundanidade, pelejada de gentes, pauzinhos de gelado, caricas, beatas de cigarros e beatas da vida. Quero-me na praia onde não pontificam os vestígios humanos – não quero «ser-humano» – na língua da areia onde o mar suserano, em frenesim, sem parcimónia, traga despojos de presenças alienígenas (a mim).

Tenho a caneta bem fincada na areia, um pouco acima da linha da vazante, abrigada da rebentação. É uma caneta cinzenta, paper-mate, uma flexigrip ultra, chiquérrima, aborrachada, daquelas que não magoam os dedos, mas, por vezes, magoam a alma. Ela é muito mais pequena do que as canas que observo em meu redor.

Os pescadores distam a alguns metros de mim. Estão dispostos ao longo da praia, em espaços intervalados, cinquenta metros distantes uns dos outros. A minha flexigrip não verga na ponta quando a brisa entorna mais densa. As canas sim.

Aguardo a chegada dos advérbios frescos, de olhar esbugalhado; das frases coragem; dos parágrafos comestíveis, dispostos a disputar-me o domínio, mas eles não vêm. De tempos a tempos, olho para a ponta esférica e aguçada da minha flexgrip. Um raro movimento, um estremecer por breve que seja, enchem-me o coração de esperança e brilho azuláceo. Agora o silêncio. O som do mar. O piar absurdo de uma gaivota que se afasta. As franjas brancas das ondas, ao longe, que aparecem e desaparecem. Um navio a fingir, no horizonte.

[Sempre quis ter uns óculos de sol da cor da felicidade, pois já tenho um chapéu da cor do mar. O mar existe?]

Passaram por mim duas mulheres com os corpos densamente povoados de desejos. Os pescadores não pestanejaram. Permaneceram quedos, os olhos postos no horizonte brilhante. Esperam. Desenleiam as linhas das canas como quem desembaraça os escolhos da vida. Os chumbos estão pendurados no nylon verde como pêndulos de relógios de cuco antigos – O Pêndulo de Foucault não é de chumbo.
Cheira-me a abandono e sinto arrepios de luz pela espinha acima. A felicidade é um acontecimento. Dizem-me que não a devo procurar mas sim esperar. Às vezes canso-me.

A minha flexigrip continua hirta, espetada na areia como um soldado perfilado na parada, mas a borracha que a envolve parece ter amolecido. Começa a desfazer-se, pingando gotículas de talento derramado que o mar depressa engole. Os veraneantes, lá longe, parecem vultos pré-fabricados. Movem-se em constância: para lá, para cá, para lá, para cá.

Os pescadores são agora sombras recortadas na contraluz e, com o dedo indicador, acompanho o recorte da silhueta de cada um deles, que me cabe na palma da mão. Os peixes – ainda aguardam por eles – de quando em quando, deixam-se morrer para viverem, ainda que por instantes, dentro de nós. Nós vivemos. Eles não.

Coloco o meu estetoscópio de sonhos e ausculto o pulsar das emoções que me rodeiam. Tomo o pulso à vida, paciente, e peço-lhe com delicadeza que abra a boca e faça: «Ah!». Vi a língua da vida! Ena! Que sensação! De seguida, agarro na minha máquina de fotografar ilusões e proponho-me captar momentos genuínos – um completo desastre! Fico-me pela película da memória. Apetece-me fugir.
Guardo a minha flexigrip, ou o que resta dela. Torno a casa com o mesmo peso com que cheguei. Concentro-me no regresso ao trivial, que é onde a maior parte das coisas se movem e estão à vista de todos. Basta-me sacudir toda esta areia de perseverança, que me incomoda, colocar a pequena mochila às costas e pôr no semblante o sorriso que sempre guardo para os momentos em que me quero parecer com os outros.

Não me despeço dos pescadores, nem do mar, nem do céu, ou da areia. Parto sem olhar para trás, pois sei que as despedidas deixam-me sempre angustiado. Um dia voltarei e, dessa vez, trarei uma cana a sério, muito isco, balde, e tudo o que é necessário para pescar. Por ora, só quero tornar a casa com os pés calçados de subtilezas, antes que cheguem as parábolas da noite e me perguntem o que é feito da minha farta pescaria.

Leiria - escrito no verão de 2006






Sobre a inveja



Se há sentimento mais desajeitado, infeliz, irritantemente inútil e absolutamente a dar com nada, só posso estar mesmo a referir-me à inveja. E diferentemente do ciúme ou da cobiça, que lhe são parentes próximos, não se relaciona com algum objeto externo, não corresponde a nenhum desejo concreto e nomeável, ou seja, não se quer forçosamente ter ou ser o que alguém é ou tem. Apenas se sente raiva e zanga pela existência de outros designados - os escolhidos a dedo pela felicidade de ser ou ter: sucesso, beleza, inteligência, riqueza, cultura, capacidade de sedução, charme... e se considera em alta voz que essas mais-valias têm necessariamente subjacentes situações de demérito, ocasos da sorte, injustiças profundas, distrações de Deus...

E ainda que muitas vezes os possuídos por tais sentires reconheçam (para si mesmos – deep inside) o mérito e a justeza na obtenção das qualidades ou pertenças de alguém, não conseguem evitar deixar-se inundar pela estreiteza deste sentimento tão trivial e tornam-se cromos indisfarçáveis.

Este sentimento é tão infeliz - muito infeliz mesmo - que não tem qualquer gratificação: alimenta-se a si mesmo em circuito fechado e é feito de ressentimentos que moem e esmagam, que azedam a vida e as relações, o que torna tudo o que se tem sempre pouco, sempre menor, sempre desvalorizado. E é sobretudo um sentimento inútil, pois apesar de todos os argumentos de fundo que se possam mobilizar acerca da “sorte” de uns e do “azar” de outros, não se consegue mobilizar forças, formas expeditas de ação no sentido de eliminar ou fazer desaparecer os “seres” que causam tal desconforto, já que a sua liquidação física, no mínimo, seria um ato de loucura ou de vingança. Acho, entretanto, que mesmo que isso fosse possível, o invejoso precisaria sempre de um “ódio de estimação" e a perda do objeto contra o qual direciona a sua inveja seria rapidamente substituído por outro.

O mais ridículo da inveja é que ela é óbvia e transparente. Apanha-se mais depressa um invejoso do que um mentiroso (não caio no exagero de fazer a comparação com um coxo, pois acho que está ela por ela). A inveja é irreprimível e percebe-se à légua quando alguém destila este fel.
Infelizmente é com este sentimento, de uma vulgaridade quase absurda, com que lidamos no dia-a-dia nas nossas atribulações profissionais, nas relações do quotidiano, e temos de estar preparados para ser a tal “muralha de aço” que não se deixa abater ou azedar com esta água ácida com que muitas vezes nos querem batizar.

Julgo eu, porventura com certeza, que não serei o único que já provou o travo destas mentes acéfalas que serpenteiam sibilinas em redor das horas dos nossos dias. Já não faço nenhum esforço - e consigo ! - para não ser como eles. Há muito que me quedei - esta espécie de franqueza sem cueiros - na admiração pelos mais dotados que eu, em simultâneo com um quase sentimento de desprezo que nutro pela mediocridade subjacente à inveja e aos que a adotaram como praxis do quotidiano.
Parece, pois, que estamos todos condenados a viver com esta estirpe, árida e ignóbil, de gente que ainda não aprendeu a canalizar a imensa energia que despende invejando, ao invés de melhorar a sua auto-estima na realização de algo que lhe traga a gratificação capaz de fazer quebrar o ciclo infernal do ver a felicidade através dos olhos dos outros. Haverá, porventura, algo mais triste do que isso? Quase não consigo imaginar!



quarta-feira, 18 de maio de 2022

Um vício bom



Por definição, um vício é uma coisa má, um comportamento aditivo que nos arruina a saúde e nos causa imensos problemas no relacionamento social; um hábito repetitivo que degenera ou causa algum prejuízo ao viciado e aos que com ele convivem. Mas podemos apropriar-nos do vocábulo e torná-lo mais fofinho, transformando-o até numa contradição nos precisos termos: um "vício bom".

Caminhar na natureza, para além dos inegáveis benefícios para a saúde orgânica e psíquica, vicia. E eu que o diga. Quem já lhe provou o travo e superou obstáculos que dantes julgava insuperáveis, não abdica do imenso prazer que proporcionam os passeios pedestres na natureza.

Acredito que nos harmonizamos psiquicamente em contacto com o trinar dos pássaros, o som tranquilizante de um riacho que corre entre as pedras ou a lisura do vento que abana as folhagens. Que nos sentimos com mais paz quando atravessamos aldeias adormecidas e escutamos ao longe o balir das ovelhas. Que nos maravilhamos ao colher frutos de uma árvore que bordeja o nosso caminho.

A excessiva transformação que o Homem operou na natureza, o stress que congeminou para dar forma à afanosa competição social, afastou-o cada vez mais da harmonia natural das coisas. E são esses resquícios maravilhosos que ainda se encontram no oceano de pureza que é um bosque frondoso, onde as ilhas são aldeias quase desertas, que nós caminhantes demandamos.

Muitas pessoas, amigas e companheiras de tantas andanças, percebem ao que me refiro.


sexta-feira, 13 de maio de 2022

O apanágio do escrevente sobrevivo



Durante imenso tempo ficou incapaz de escrever uma linha que fosse. Começava a escrevinhar e logo parava. Tentou pensar em algo que lhe desse prazer contar, resolver-se por um tema que o aliciasse, agarrar uma trivialidade do quotidiano, um mexerico que fosse, e explorá-lo como se tratasse de um filão inesgotável, mas parecia não haver nada que lhe despertasse a vontade de acender um texto. Sentia, com uma intensidade nunca antes experimentada, o horror da lauda em branco e as ideias não lhe fluíam. Eram mais as frases que apagava do que aquelas que conseguia manter; e, mesmo essas, não duravam muito, pois começava a modificá-las a tal ponto que acabava também por as erradicar, sem que chegassem a ser luz duradoura com consistência suficiente para alumiar um escrito.Via-se como o pianista que se lhe entorpeceram os dedos e já não consegue fazer soar notas nas teclas, teimando deitar culpas ao piano que não presta, ao assento que é desconfortável, a um ruído exterior que lhe abala a concentração. Então, abandonava-se durante minutos, que lhe pareciam laivos de eternidade, vagueando o olhar no ecrã em branco, até que a luminosidade sem matizes lhe fazia perder as forças para continuar. Depois, apagava tudo o que luzisse em seu redor, despia-se, metia-se na cama, envolto num cordame de lençóis de sonhos, e tentava dormir embalado por músicas que escolhia por soltarem halos de inocência e serenidade.

A tristeza surgia-lhe logo pela manhã, pontual, incontornável. A princípio era uma coisa tímida, sorrateira, ensonada, mas de seguida, já mais afoita, entrava com à vontade e pujança triunfal nas caves da sua alma, agora exausta por excesso de vacuidades. Escrever publicamente sobre o sofrimento que o assolava afigurava-se-lhe um pecado de exibicionismo moral e hesitava entre fazê-lo ou quedar-se para sempre no silêncio.

Pensou mudar de vida, dedicar-se à especulação imobiliária, ao comércio de antiguidades, ao negócio livreiro; enfim, a qualquer coisa que servisse para o convencer de que o néctar da sua imaginação se tinha esgotado. Porém, não consegui e voltou a escrever. E desta vez escreveu sobre a lua, personificação de muitos dos seus caprichos, astro que amiúde o olhava através da janela, depois de descer sem ruído da escadaria de nuvens e sussurrava-lhe: «Gosto de ti, criança!»


segunda-feira, 9 de maio de 2022

Espelho meu



A partir de uma certa idade, parece que o processo que dita o nosso envelhecimento multiplica-se de forma geométrica; e, em cada dia que passa, quando nos olhamos no espelho, achamo-nos mais envelhecidos. Dando por adquirida a verdade de que a fonte da eterna juventude nunca passou de uma enfabulação literária, temos de aceitar que o encarquilhar da face, o branquear dos cabelos, a proeminência do ventre e a perda gradual da energia, são realidades com as quais temos de lidar; e, sobretudo, encará-las como fazendo parte de um processo gradual ao qual nenhum de nós consegue escapar.

Dizem, talvez para amortecer o desânimo que nos toca, que envelhecer tem os seus encantos e que os ganhos de maturidade e experiência de vida, de certo modo, contrabalançam o que se perde em vivacidade. O ideal seria, sim, conservarmos a juventude e a experiência, entretanto adquirida. É por isso que existem os ginásios, que se têm multiplicado como cogumelos, muito frequentados por cinquentões e cinquentonas, obstinados em não aceitar as sequelas naturais causadas pelo processo de envelhecimento.

Nada tenho contra os ginastas cinquentenários e saúdo todas as práticas em prol da saúde. Que isso fique bem claro. Acho, sim, patética, a atitude de certos figurões e figuronas, alguns bem conhecidos na nossa praça, que se pintalgam de loiro platinado, colocam perucas e capachinhos, fazem enxertos capilares, usam jeans rasgados e, acima de tudo, adoram serem retocados pela magia do photoshop. São pessoas que renegam infantilmente a idade que têm e nem se apercebem o quão ridículas ficam ao fazê-lo. Há várias formas de encararmos a chegada da “idade da razão”, umas mais positivas do que outras, mas ficamos com uma tremenda necessidade de nos sentirmos seguros, que de resto é constitutiva dos seres humanos.

A perda da beleza é, sem dúvida, mais do que nos homens, o maior pavor das mulheres. E o que é belo, como todos os conceitos difíceis, está muitas vezes para lá do que se vê. Há quem ache que o belo tem um carácter essencial que se presume, tão indefectivelmente como tudo o que é importante, e que, por isso mesmo, diz muito mais sobre aquele que contempla do que sobre o objecto de admiração. Daí a afirmação de que a beleza está nos olhos daquele que ama. Se for assim, quer dizer, se a beleza for o sintoma de uma rendição afectiva, então entramos num outro registo valorativo em que o sensorial manda.

Mas para lá da subjectivação do que seja ou não belo, existe certamente um conceito objectivo do que seja a beleza e a fealdade; ou seja: ninguém pode, sem usar de má fé, dizer que determinada actriz, eleita popularmente como uma sex simbol, é objectivamente feia. E é no retorno da (nossa) imagem, que o espelho nos dá todos os dias pela manhã, que reside o grosso de todos os nossos pavores: “espelho meu, há alguém mais feio do que eu?”



Liberdade de escrita

Por vezes, quando compramos uma revista, ou lemos determinados blogues mais intimistas, é por vontade de saber da vida de pessoas que julgamos interessantes, dos seus pormenores, sejam eles brejeiros ou sórdidos, não porque nos achemos necessariamente pessoas desinteressantes e indignas de qualquer registo, mas porque faz parte da nossa essência termos uma certa curiosidade. Há blogues com inegável valor literário, outros com representações fotográficas, cinematográficas e de arte espantosos, ou com belíssimas seleções musicais. Outros há que afloram as clivagens, o consenso e o conflito social, com nítida vocação política, sem esquecer os blogues onde o bom humor impera. Enfim, há blogues com temáticas para todos os gostos. Mas são inegavelmente os blogues com vocação intimista que atraem mais a atenção do leitor comum. Felizmente, ainda há quem aprecie uma "boa conversa", ainda que em forma de monólogo, que seja uma partilha de ideias, ou uma exposição mais ou menos reservada de universos pessoais que, num dado momento, se partilham com gosto.

Nestes tempos vorazes, tomados pelo pragmatismo, em que falar se vai espartilhando à necessidade de dar e receber informações, parece quase um exercício de infantilidade perdermos tempo lendo, ou escrevendo, coisas que fujam à lógica feroz desse ditame. E esta é a atitude de muita gente perante a leitura e a escrita: não perder tempo com "textos minimalistas" onde a subjetividade impere, pois somente interessa o texto formativo. Com a democratização da possibilidade de publicar textos, proporcionada pelas novas tecnologias, a blogosfera tornou-se um espaço onde todos os que escrevem, ou querem ter algum tipo de intervenção diferente, tal como publicitar vídeos ou textos alheios, encontram o seu lugar. E ainda bem que assim é, em prol de todas as idiossincrasias.




sexta-feira, 6 de maio de 2022

Edelweiss



Ontem, em Leiria, passou por mim uma mulher. Tinha os olhos perfeitamente azuis, como dois lagos profundos, os ossos da cara largos, os lábios desenhados e vivos, com um andar desengonçado e um indisfarçável ar germânico. Presumo que fosse alemã ou austríaca.

Recordei uma das minhas primeiras viagens feita há bastantes anos à Áustria. Em Salzburg, armado em saloio, fui visitar, entre outras maravilhas, o Palácio da família Von Trappen – um percurso lindíssimo pela montanha – e, tal como os camaradas turistas, engoli todas as historietas que a guia local, que falava um péssimo castelhano, entendeu contar – o meu alemão é deplorável e datado.

Edelweiss, sim é esse nome que tinha em mente, é uma flor que se pode encontrar no alto das montanhas e Alpes da Suíça, da França, da Áustria e da Itália. Desenvolve-se de modo espantoso nos cumes mais elevados da montanha e o seu nome significa "branco precioso", pois trata-se de uma linda flor em formato de estrela.

Dizem que quando se quer presentear alguém com algo que signifique amor ou amizade eterna, oferece-se uma flor de Edelweiss a essa pessoa, a flor eterna. Diz-se, também, que a sua duração, depois de seca, é superior a cem anos.

Tenho uma Edelweiss, dentro de uma caixa de vidro, adquirida há cerca de 18 anos numa loja de lembranças, em Salzburg, na Áustria, e, realmente, não noto que tenha ocorrido qualquer mudança na sua morfologia desde então. Hoje, mesmo, li – facto que desconhecia em absoluto – que a dita flor já é considerada Património da Humanidade, pela sua raridade e carga simbólica que encerra. Sei que a Edelweiss inspirou poetas um pouco por todo o mundo e uma das composições mais lindas e intemporais é essa que leva o nome da flor: "Edelweiss" - tão bela e emocionante quanto a flor. A música é da autoria de Richard Rodgers e Oscar Hammestein, e é realmente maravilhosa. Pertence ao musical The Sound of Music, de 1959, interpretada por Christopher Plummer, que todos quantos pertencem à minha geração recordam - " Música no Coração" e em "brasileiro", o nome mais foleiro com se podia batizar um dos filmes mais premiados de sempre: "A Noviça Rebelde".