quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Das alimárias e afins



Hoje, à hora do almoço, no sítio do costume, em horário nobre, as notícias estavam a dar relevo às eventuais cuspidelas do presidente do Sporting sobre outro dirigente desportivo, cujo nome ignoro e nem me interessa saber. Um dos presentes, porventura o que zurra mais alto na sala, sem auscultar ninguém, como se no sofá da sua sala estivesse, foi aumentar o som do aparelho para um volume insustentável.

Depois ficaram todos a comentar, aos berros, as cuspidelas da alimária, como se se tratasse de uma notícia importante para a humanidade.

Entretanto, as notícias do futebol, que ocupam mais de 40% do telejornal das 13h00, deram lugar a um pequeno apontamento de reportagem sobre a cidade sitiada de Alepo, na Síria, onde se podiam ver vídeos, feitos por habitantes sitiados, colocados na Internet, a despedirem-se do mundo, à medida que o som da artilharia se fazia ouvir mais forte sobre o bairro habitacional onde se encontravam.

A mesma besta quadrada que havia aumentado o som do televisor, dirigiu-se, sem delongas, ao aparelho e baixou-lhe o volume.

Qualquer dia sou sexagenário e entristece-me ver este pobre país inundado num lamaçal de corrupção e incubador de gente desprezível, que só lê a Bola, o Rekord, e assiste às degradantes séries, os chamados "reality shows", que as televisões transmitem, desprezando a informação, a cultura, a elevação, a arte, a estética e a qualidade.

Estou-me nas tintas para o desporto rei, para os corruptos dos dirigentes desportivos e para os mexericos que giram à volta dos milhões que eles gerem. Acho que o futebol deveria ocupar um espaço simbólico no horário nobre do noticiário nacional e, para quem quisesse assistir, em detalhe, a tudo o que se passa no seio dessa atividade, bastariam os inúmeros programas desportivos das televisões.

As elites sempre foram perseguidas, apupadas, marginalizadas, até, mas são certamente o último reduto civilizacional e fomentador da elevação de um povo.

É trivial dizermos que temos o povo que merecemos mas, com franqueza, eu sei que muita gente não merece isto, pois, no que a esta "cultura de lixo" respeita, está isenta de culpa.


quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Ilusionismo



As ilusões são talvez tão inumeráveis como as relações dos homens entre si, ou dos homens com as coisas. E quando a ilusão desaparece, quer dizer, quando nós vemos o ser ou o facto tal como ele existe fora de nós, experimentamos um sentimento bizarro, complicado em metade pelas saudades do «fantasma» desaparecido, em metade pela surpresa agradável ante o novo, ante os factos reais. E a reposição da clareza e da verdade, muitas vezes, só sucede depois de desnudado o véu bordado de irrealidades que nos impossibilitava de ver com clareza. 

Se existe um fenómeno evidente, trivial, sempre idêntico e de tal natureza que a respeito dele é impossível estarmos enganados, é o amor maternal. É tão impossível imaginar uma mãe destituída de amor maternal como a luz sem calor, como um sol frio, que não seja no sentido da antítese poética.

Ainda há pouco fui comprar um jornal - eu que faz tanto tempo não comprava jornais, apanhava-os ali, acolá, espalhados pelas mesas dos cafés e dessa forma me abeirava das notícias -, sentei-me num banco de jardim sentindo na face a brisa suave da manhã e deleitei os olhos a observar a doçura com que uma mãe brincava com os seus filhos: os beijos e as ternuras que lhes dava, o brilho que se escapulia dos seus olhos e a incondicionalidade daquele amor ali à minha frente. À nossa volta doidivanavam pássaros e as corolas das flores pareciam cálices que exalavam explosões de odores e cores e tudo aquilo me pareceu fazer sentido como se fora um «ensemble» musical reunindo os ingredientes da beleza nas proporções certas.

Recordei que, em tempos, conheci alguém que, na minha licenciosa fantasia, enchia a atmosfera que me circundava de ideais, cujos olhos espalhavam o anseio da grandeza, da beleza, da pureza e da glória, e de tudo o que me fazia acreditar na imortalidade desse amor. Mas essa pessoa não era quem eu julgava ser. Era uma vez mais um fruto das partidas de elfos das minhas perenes ilusões, algo que eu fantasiara, ou desejara que fosse real. 

Hoje dia primaveril lindíssimo, cobertos os pensamentos acerca dela com os mantos da certeza, da realidade, e da consciência aguda da verdade, sinto-me mais conforme comigo mesmo e guardo-me para o dia em que apareça vinda dos meus turvados sonhos, envolta em tules odoríferos, a princesa que se assemelhe em tudo um pouco à minha ilusão; e, por essas alturas, o que ainda sobrar de mim é seu.

O tempo e o amor marcaram-me com as suas garras e ensinaram-me cruelmente o que cada minuto e cada beijo nos roubam em juventude e em frescura. E estou tão certo, como esta manhã soalheira, em que o ar treme ao tocar na água do lago, de que algures, num cantinho escondido, por entre os áureos véus das nuvens, num país distante, numa terra sagrada, aqui perto de mim, ou nalgum lugar naufragado nas brumas do meu desejo, dormita a musa que se assemelha com verdade à felicidade engendrada pela minha ilusão.

Estas linhas escritas no Barreiro, no conforto da minha sala forrada de silêncios, são uma forma de me refugiar na tarde que ai vem; e procurar trazer à tona algumas palavras, sem outro fito que não seja o de manifestar a insurreição do meu olhar perante estas coisas que, por muito que se afastem, regressam sempre ao entretecido da minha escrita, que é um pouco o cinzel moldado à medida da mão com que vou paulatinamente esculpindo a minha vida. *


*Texto escrito em 2007




segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Sobre uma escolha vital




Recentemente li um magnífico ensaio da Maria Filomena Mónica intitulado "A Morte", numa edição da Fundação Francisco Manuel dos Santos, em que a autora disserta brilhantemente sobre muitas das polémicas que envolvem esse fenómeno biológico inevitável.

Um tema que a muitos de nós causa alergia, sequer, pensar, quanto mais abordar o assunto. Mas a propósito da eutanásia e do suicídio assistido, que, como todos sabemos, são realidades distintas, relembrei um lindíssimo filme, magistralmente interpretado por Javier Bardem, "Mar Adentro", inspirado na história verídica de Ramón Sampedro, que ficou tetraplégico após um mergulho no mar, aos vinte e cinco anos de idade.

Ao longo de três décadas, Ramón lutou pelo que julgava um direito seu, o suicídio assistido, pois, apesar de totalmente paralisado da cabeça para baixo, estava lúcido e conseguia comunicar, pelo que, mesmo contra a vontade da família, decidiu prosseguir a luta, até que em 1998 apareceu morto na cama. Na verdade, engolira em pequenas doses, um líquido onde alguém dissolvera cianeto de potássio e a polícia desconfiou de uma amiga, Ramona Maneiro, que viria a ser presa. Mas, uma vez que nada foi conseguido provar contra ela, foi solta. Uma vez prescrito o crime, sete anos depois, Ramona confessou publicamente ter sido ela quem ajudou Ramón a morrer, acrescentando que o fizera por amor.

Uma vez por outra, os temas da eutanásia e do suicídio assistido enchem uma página de jornal, mas nunca nenhum partido político teve a ousadia de fazer propostas legislativas sobre o assunto. Num país habituado à hipocrisia e ferozmente dominado pela mentalidade católica, as únicas vozes sonantes são as dos que criticam ferozmente aquilo que já é admitido há muitos anos na Bélgica, na Dinamarca, na Holanda e na Suíça, onde, aliás, em Zurique a clínica "Dignitas" pratica o suicídio assistido - somente para doentes terminais ricos, claro.

A noção da santidade da vida é um ideal civilizado, todos o sabemos, mas, perante a vontade esclarecida de um doente terminal, em sofrimento atroz, com uma degradação física sem retrocesso possível, que direito tem a Igreja Católica de opinar e influenciar toda uma sociedade, no sentido de impedir a vontade de alguém abreviar a sua vida de uma forma digna? Se amanhã um médico me disser que sofro de uma doença incurável, que vou sofrer imenso, que não há cura possível, será que tenho de me sujeitar aos cuidados paliativos contra a minha vontade? Ser ligado a um ventilador e viver com morfina e soro, como se fosse um ratinho branco de laboratório, ou não deveria eu, se completamente esclarecido e mentalmente capaz de decidir sobre o meu destino, poder opinar sobre se queria continuar a viver dessa forma ou abreviar um sofrimento inevitável?


Será que alguma vez teremos coragem de encetar este debate?


Ao que parece, em países mentalmente muito além da nossa mesquinhez - continuamos a sofrer a atrofia da Igreja Católica que, mesmo perante a presença de doenças infetocontagiosas mortais, nega o uso do preservativo e opõe-se ao aborto, inclusive em caso de violação da mulher, quanto mais nestas questões! - Estes assuntos estão há muito debatidos pela sociedade e devidamente legislados.

Não defendo os "doutores da morte", nada disso. Apenas acho que, em situações limite, deveria poder caber ao doente, ou à família mais próxima, caso este já não possa decidir, a escolha entre antecipar o seu final ou padecer tormentos inevitáveis.

Devia existir um "testamento vital", um instrumento jurídico apto a podermos, desde já, fazer as nossas escolhas sobre tais assuntos, isto enquanto estamos lúcidos, sãos e com capacidade de decidir, sobre qual a atitude que desejaríamos que fosse tomada quanto a nós numa dessas situações. 





quinta-feira, 6 de outubro de 2016

O Síndrome de Estocolmo




(Stockholmssyndromet em sueco) é o nome comummente dado a um estado psicológico particular em que uma pessoa, submetida há um tempo prolongado de intimidação, passa a ter simpatia e até mesmo sentimento de amor ou amizade perante o seu agressor.
Apesar do termo ser vastamente utilizado por leigos, a Síndrome de Estocolmo não consta entre as patologias psiquiátricas listadas no DSM (catálogo das doenças psiquiátricas), havendo ainda poucas publicações científicas sobre o tema. Nesse cenário, alguns especialistas preferem tratar a pretendida síndrome como um "mito urbano", afirmando não haver base empírica suficiente e uniforme para classificá-la como um distúrbio da mente enquanto tal.
Acontece que, por mais do que evidente, conheço algumas pessoas sofrendo deste síndrome, parente bastante próximo do masoquismo...



sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Os novíssimos clones



Pela observação da minha árvore genealógica, pelo menos no que concerne aos ramos mais recentes, sou forçado a perfilhar o conhecido aforismo: «quem sai aos seus não degenera». Com o avançar da idade, imagino que as semelhanças genéticas que me ligam aos meus parentes mais próximos tenderão, cada vez mais, a enfatizar essas marcas indeléveis, a tal ponto que, desaparecidas certas pessoas, os meus traços fisionómicos perpetuarão, aos olhos de muitos, a memória de alguém que me foi próximo. A isto chamo recordar alguém através de mim; e, confesso, tal não me agrada.

Detesto, irrita-me solenemente, sempre que oiço dizer: «- Olha! Lá vai o fulano tal! É mesmo a cara chapada do…»

Sei que a importância deste meu «achar» se reveste de um interesse tão sublime quanto a declaração solene de que foram descobertas flores púrpuras nas Pampas argentinas; mas, ainda assim, trata-se de uma sensação dolorosa e que me causa constrangimento.

Talvez por existirem demasiados pensamentos à solta na minha cabeça, para meu grato alívio, careço de os exorcizar soltando-os nalgum lugar e, mais tarde, quando com eles me reencontro, vejo-os, o mais das vezes, depauperados e já sem qualquer razão de ser, não fora aquela que, à época, existiu e lhes conferiu um pretenso sentido.

Acho que não deveria haver ninguém parecido com quem quer que fosse, e todos deveríamos primar pela unicidade fisionómica e psicológica, de tal forma que fossemos sempre inconfundíveis.

Abomino a clonagem comportamental, o estereótipo exacerbado que me rodeia. Cada vez mais valorizo a luminosidade que se desprende dos ditos «seres diferentes», e que ofuscam a existência medíocre das larvas comuns, que adaptam o seu corpo extensível à medida da maior ou menor estreiteza das fendas que se lhes deparam no caminho.

A mediocridade aflige-me, pese embora ainda mais me preocupe a possibilidade de eu, em algum dia, ou momento, poder vir a fazer parte do clã dos medíocres que tanto critico.

Nem sei, de resto, porque me apeteceu, neste agora, fazer a apologia da individualidade, da excelência que representa o facto de «ser diferente», mas creio que é por tanto detestar os comportamentos estereotipados que observo no dia-a-dia, em absoluto destituídos de marcas de pertença, sempre em perene adaptação às circunstâncias que, no momento, mais favorecem, causam aceitação e ganhos pessoais; ainda que com a abdicação de sermos nós mesmos; ainda que com a abolição pura e simples dessa tão querida verdade.

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

O Milagre das Rosas



Encontrei a última fotografia conhecida de D. Dinis e de Dona Isabel de Aragão, aqui no registo já sua esposa legítima, que, em virtude de atributos milagrosos e de uma bondade extrema, ficou conhecida para a História como a Rainha Santa Isabel.

O que a infanta espanhola não sabia era que o seu futuro esposo, naturalmente porque não lhe disseram ou porque não teve oportunidade de conhecer melhor a besta, o nosso rex portuga, que ficou registado na História com o cognome de Lavrador - dizem as más línguas que mandou plantar o pinhal de Leiria, cuja madeira foi usada na construção de caravelas e embarcações afins com vista aos descobrimentos - gostava mesmo era de "lavrar em seara alheia" e as pinhas e o madeiro eram a menor das suas preocupações.


O epíteto Lavrador (do étimo: aquele que põe a semente) vem dessa sua faceta sui generis e não dos factos que a História malevolamente lhe imputa. Perguntem ao povo de Amor, aqui no concelho de Leiria, porque é que acentuam a silaba tónica na letra A - Ámor e vivem a irremediável e centenária vergonha de morar numa terra palco de inúmeros adultérios reais...

A espanhola era uma mãos largas, dava esmolas a pobres, indigentes, leprosos e a tudo o que era pessoal do RSI. O rei, além de sovina e adúltero, tinha muito mau feitio, bebia em excesso e metia-se na droga, daí lhe ter perguntado numa manhã de inverno o que é que ela levava no regaço - há muito que ele dava pela falta de pão em casa, sobretudo daquele que ele mais gostava, o com sementes variadas - facilmente se encontra no LIDL, que naquela altura ainda não existia.

Certo dia, vendo a rainha sair com um regaço cheio, desconfiado que podia ser o pão de mistura que faltava de manhã para as torradas, ficou desconfiado e perguntou-lhe:

- Que levais aí no regaço?
E ela respondeu-lhe:
- São rosas, meu senhor.

O rei ficou surpreendido e em tom irónico, com aquela entoação pífia que todos lhe conheciam, questionou:
- Rosas em Janeiro?

Ela abriu o regaço e saíram as mais lindas rosas albardeiras.

E foi este episódio que ficou conhecido como o Milagre das Rosas.

Esta é que é a verdadeira história, não aquela que vem nos manuais escolares. Acreditem se puderem.

Mata de São Pedro de Moel
setembro de 2016

sábado, 28 de maio de 2016

Consenso e Conflito

As lutas contínuas desgastam-nos, envelhecem-nos, separam-nos. Prefiro de longe o consenso ao conflito, a concórdia à guerra. E quando discordo em absoluto de alguém, inamovível e inconversável, regra geral, deixo-o falar sozinho. Evito pessoas inconciliáveis, que nunca dão o braço a torcer. Sempre que possível, evito o conflito, a escalada originada por uma discussão, que, não raro, descamba na irracionalidade e no débito de descargas emocionais absurdas, desajustadas e ocas, proferidas apenas com o fito de magoar.

Nessa fase, aquilo que parecia ser à partida uma saudável troca de argumentos, um desajuste que se queria ver ajustado, transforma-se numa espiral de agressividade. Naturalmente por defeito meu, que suspeito tenha a ver com a verbosidade enfática com que defendo certas teses, acontece que muitas pessoas sentem um prazer quase mórbido em me contrariar. Não que a atitude de contra argumentar, a clivagem, seja pouco salutar, ou construtivamente incorreta. Antes pelo contrário. E não foram raras as vezes em que, à conversa com pessoas muito mais sensatas e lúcidas do que eu, depois de alguma introspeção, me tenha forçado a mudar de pensamentos e atitudes. O cerne da questão é outro.

Refiro-me naturalmente à guerrilha em que rapidamente se pode transformar uma troca de argumentos contrários e inconciliáveis. E as tensões são sempre superiores quando as principais linhas de clivagem se situam no plano da moral, ou no âmago das formas primárias de subjetivar que respeitam a cada um de nós.

Quando a discussão tem por temáticas realidades mundanas, as tensões são indubitavelmente mais baixas, pois a capacidade negocial e conciliatória é maior. O que eu rejeito liminarmente é a querela fácil e brejeira e o transbordar agressivo de quem, por recusar ficar na 'mó de baixo', independentemente da justeza das ideias que contradita e apenas porque sente a sua estima maculada por um argumento que julga lhe está a ser imposto, reage com desproporcionalidade.

Todos queremos ser inovadores, donos da razão, seres únicos, dotados de uma armadura moral e de uma estrutura de pensamento assertiva. A natureza humana assim nos fez, dessa maneira formatada e irrevogável.

Eu sou, sobretudo, um homem de paz, de mimos e de amor, assumidamente lamechas, embora tenha um feitio assaz complicado. Sou temperamental e agridoce: tanto fervo em pouca água e descampo, como caio na lisura. Acho que vou envelhecer irremediavelmente assim.
Gosto do bom humor e da doçura. Detesto a contenda e a crispação; e muitas vezes as minhas atitudes de 'fuga', e uma certa não sociabilidade, são confundidas com cobardia.

Há justamente quem pense que para mantermos íntegra a nossa personalidade, para nos sentirmos valorizados como pessoas, devemos ter sempre pronta na ponta da língua, uma resposta implacável e demolidora, como fora uma espada apta a ser desembainhada, perante um argumento ou uma crítica que nos desagrade.

Deixo essa gloriosa tarefa para os fazedores de opinião que ganham a vida participando em debates e contendas. Tenho uma estrutura de pensamento, arquétipos morais, vícios, preconceitos, contradições, tiques, e não sei quantos mais defeitos, com mais de meio século de sedimentação. Admito e agradeço que me mostrem o outro lado do espelho, me façam mudar de opinião, me coloquem num lugar onde a forma como perspetivo as coisas suporte um olhar diferente e me conduza a conclusões opostas. Não tenho é pachorra para corridinhas para ver quem chega em primeiro lugar, digladiações frustres, contendas onde a regra é ganhar o que berrar mais alto os seus argumentos e for capaz de colocar a voz duas oitavas acima.

Em troca desta consciente abdicação, aceito para a minha vida um acrescento de solidão, uma sociabilidade mitigada e uma seletividade cada vez maior na forma como escolho aqueles com quem interajo no tempo e no espaço - aquele que resta depois do trabalho, das minhas leituras, da minha escrita, da minha música, dos meus pensamentos. Depois dos meus tão queridos desertos de solidão, viro-me naturalmente para aqueles com quem tenho empatias, os que admiro e os que amo.

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Em tua memória, Paula C.


Hoje, dez anos volvidos após a sua morte, recordo-me da Paula C., uma amiga de infância que escolheu abreviar a vida, porque ela há muito lhe parecia um fardo insuportável. Se fechar os olhos, consigo vê-la no pátio do Liceu de Almada, nos finais anos 70, princípio dos anos 80: o cabelo cortado à Malvina, aquela da novela «O Casarão», as mãos sempre enfiadas nos bolsos estreitos de umas Levis ruças, uma camisa justa com folhos nos punhos e o eterno cigarro aperrado no canto dos lábios.

Uma situação tremenda: um ser que, muitos anos antes de morrer – de facto suicidou-se – há muito decidira alhear-se da própria vida e começara a agir como se nada mais tivesse realmente importância. Vivia numa passividade extrema perante tudo e tendia para os excessos, sem cuidar de refletir nas consequências. Essas, pareciam-lhe indiferentes, risíveis até. Chegou a um estado em que cessou de se projetar no futuro e apenas o presente contava. A sua ligação à existência parecia-lhe tempo inútil, tempo a mais. A vida era para ser vivida à velocidade de um foguete. E as frustrações da vida, com as quais ela nunca conseguiu lidar, sublimava-as sempre com excessos, compensações desnorteadas, inconsequentes, eternas fontes de sofrimento posterior.
Ainda hoje tenho uma certa dificuldade em incutir no pensamento, a certeza de que a Paula se precipitou para a morte, atirando-se de um oitavo andar e nunca mais a vou ver. Nós, os amigos, nem tivemos tempo para nos despedirmos dela, tal a pressa que ela teve em se despedir da vida.
Que tão fortes motivos pode ter um ser que renuncia propositadamente à vida, numa idade ainda relativamente jovem, antes de chegada a inevitável hora? É um mistério total que encerra razões que a minha razão desconhece.
Não lhe conhecia doenças crónicas, mortais, ou enfermidades que justificassem tal atitude. Apenas uma angústia profunda e uma inadaptação constante aos ritos sociais ditos "normais", faziam-na viver num drama interior que constantemente a sobressaltava. Foi doença mental, disseram os entendidos nestes assuntos. Eu digo que ela morreu de tristeza.
Muitas vezes encontrei-a, quer durante os tempos do Liceu, quer mais tarde na Universidade, afundada em desesperos (fomos colegas desde o liceu até à licenciatura). Nem o seu casamento recente, a atual estabilidade laboral (era chefe de divisão num Ministério - quadro superior da função pública - e gozava de alguma folga económica), pelos vistos, lhe trouxeram paz ao seu conturbado espírito.
A braços com os meus próprios dramas e problemas pessoais, hoje assumo que a ameaça do ódio à vida, bem como a ancilose da capacidade de nos amarmos, são conjuras que se podem urdir em qualquer momento e virar-se contra nós. E para além da obscuridade de histórias fragmentadas que me alcançaram, sobre os motivos que a levaram a tomar essa irrevogável atitude, ainda me custa aceitá-las como razões suficientes.
Que lhe diria eu se tivesse podido? Eu que também conheço os silêncios do vazio e a eterna espera da luz? Que poderia eu dizer-lhe, caso fosse a tempo de lhe segurar um braço? Que poderia eu dizer-lhe sem a magoar, sem lhe dar a impressão que não a queria compreender? Sem os ares de quem quer pregar a moral da verdade e é o arauto da felicidade? Dir-lhe-ia, talvez, para tentar manter a esperança e descortinar novos rumos para a felicidade, pois eles efetivamente existem. Mas a obstinação doentia dos suicidas, cedo, ou tarde, acaba por prevalecer. O mal é a fixação apoderar-se deles. A ideação toldar-lhes a mente. Depois só há uma questão: o tempo e o modo.
O desaparecimento da Paula, sempre que o recordo, transformou por completo a minha consciência acerca da morte. Revelou-me tudo o que havia de falso na relação com a minha própria existência e com a minha própria morte. Mudei definitivamente de ideias no que diz respeito a considerar que a morte não tem nada a ver com a vida, que não nos diz nada, que não existe ligação possível entre uma e outra, a menos que nos iludamos. Conseguiu libertar-me dessa absurda convicção de que a morte não tinha nada a ver com a vida, que não representava nada para mim. Pela primeira vez, senti com extrema agudeza, quão ténue, frágil e efémero é o sopro de vida, que toca cada um de nós em cada dia que passa.
RIP, Paula C., hoje que passaram dez anos sobre o dia da tua morte, relembro o fim que tu própria escolheste para ti: um salto em forma de anjo, às primeiras luzências da manhã, da varanda do oitavo andar onde moravas, na direção da calçada. És, desde há algum tempo, mais uma estrela no céu.




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segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

A deceção



Dececionar é um verbo transitivo e pronominal e significa, grosso modo, a acção de causar, ou sentir, frustração ou tristeza quando algo esperado não acontece, ou quando alguém não corresponde ao que (dele/a) se idealizava. Por isso dizemos amiúde que certa pessoa nos dececionou, ou nos desapontou.

Eu sou uma vítima perene das deceções, seja por esperar demasiado dos outros, ou por ser naturalmente exigente com a solidez do caráter. Aceito, nos outros, mas muito menos em mim, os erros e as fraquezas, pois as considero irremediavelmente humanas. Mas a cobardia, a falta de frontalidade, o desvaloro do compromisso e da palavra dada, bem como a mentira viscosa, causam-me repulsas quase impossíveis de digerir.

Não acredito em santidades e julgo, inclusive, que quem almeja tais virtudes vindas dos outros, padece de uma vasta ingenuidade. Muito menos me vejo como um ser integralmente moral, isento de comportamentos censuráveis ou com doses de tolerância próximas de um beato. Mas, por muitas que sejam as imperfeições que me forram, em cada dia que passa, sei que tenho feito um esforço genuíno para melhorar como pessoa. E tenho a feliz certeza de que sou uma pessoa com mais qualidades intrínsecas, mormente, verticalidade e bondade, do que há uns anos atrás.

No entanto, a intolerância próxima do absoluto com falhas graves de caráter, continuam fora do alcance da minha ascese no caminho do melhoramento possível. O motivo para que eu não consiga mudar esta intransigência quase absurda, é o de simplesmente continuar a achar que estou correto.

E quando esse estado de não subsistência de dúvidas, no que ao comportamento dos outros respeita, perdura em mim, torno-me um "donno imobile", muito próximo da tolerância zero.



quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Flash noturno




Nós tornamo-nos naquilo que pensamos, por isso, pensamentos negativos devem ser completamente banidos do nosso vocabulário mental, uma vez que funcionam com uma barreira e prejudicam a prossecução e alcance dos nossos objetivos...
Vou dormir, já agora, com pensamentos positivos.

Mata-se e esfola-se, assunto resolvido.


A propósito da noticia da mãe que, presumivelmente, terá cometido o crime de homicídio das suas duas filhas e que acusa o marido de violência doméstica e violação das meninas - uma já foi encontrada sem vida, a outra encontra-se desaparecida mas, provavelmente, terá sofrido o mesmo destino - já se levantam as vozes dos fazedores de opinião, arautos da vindicta privada e do julgamento e condenação antecipadas, "just because".
É incrível como o senso ético do nosso dia-a-dia se deixa condicionar fortemente pela presunção, ainda que forte, ignorando por completo a prova que, só depois de produzida, conduz ao julgamento por um tribunal e à aplicação da sanção adequada.
Ainda a verdade dos factos não foi apurada - até prova em contrário, a mulher goza da presunção de inocência "in dubio pro reu" (pode perfeitamente estar a mentir sobre muitos dos factos que alega e, face ao seu estado de saúde mental, não é de colocar de lado essa hipótese; ou ser declarada inimputável), já se acusa alguém como se tivesse havido um julgamento formal e feita a prova de factos, quando o que existem são apenas presunções fortes, indícios que carecem de prova a ser produzida em tribunal.
A decisão técnica aplicada, inteiramente correta, foi a da constituição da mãe como arguida, tendo-lhe sido aplicada a medida de coação de privação da liberdade ( a mais grave entre as previstas na lei penal), a mais adequada, aliás, para prevenir o perigo de fuga ou destruição de elementos de prova.
Não quero com isto dizer que, face aos fortes indícios, não venha a dar-se como provado o homicídio voluntário das meninas, bem como eventuais crimes cometidos pelo progenitor, mas tudo isso não basta para formular juízos sancionatórios.
A presunção de inocência é das garantias constitucionais mais fortes, e haverá poucas coisas menos censuráveis do que condenar um inocente ou manchar irremediavelmente a sua vida.
É da natureza dos "juristas de café" julgarem toda a gente na praça pública, com base em leituras de jornais, fazedores de opinião e manipuladores de mentes, e isso é algo que jamais irá mudar.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Geração do não desenrasca

Jamais empregaria a expressão "geração rasca", usada pelo jornalista Vicente Jorge Silva em 1994, num editorial do jornal Público, aquando das manifestações estudantis, para caracterizar a passividade de alguns jovens dos nossos dias, em relação às dificuldades da vida, pois acho-a ofensiva, manifestamente exagerada e, sobretudo, redutora. Eu próprio lido frequentemente, com jovens bastante empreendedores e responsáveis, gente que tem projetos e luta por eles.

No entanto, não há dúvidas de que, na sociedade portuguesa, uma fatia considerável dos adolescentes e recém adultos, cultivam a dependência em relação aos pais, o gosto pela futilidade e pelo facilitismo, os ténis e a roupa de marca, os smart phones, Ipads e restante parafrenália. Escolhem sem hesitações os "consumíveis, que não precisam ser mastigados pelo cérebro e pelo senso crítico, com que a selvajaria do marketing, sabendo antemão das suas vulnerabilidades, os bombardeia.

É comum os jovens de hoje em dia dizerem: "não tenho nenhum trabalho, pois não consigo encontrar um que me satisfaça".

Nos meus tempos de juventude, o sonho de qualquer jovem adulto era o de ter uma ocupação profissional, fosse ela qual fosse, tornar-se independente dos pais, viajar, comprar um automóvel usado, frequentar o ensino superior, se necessário fosse, na qualidade de estudante-trabalhador, encontrar rapidamente o seu espaço, fosse arrendando uma casa a meias com amigos/as, ou, nalguns casos, comprando.

Hoje, há uma franja, felizmente marginal, de jovens que se escudam na "crise", nas "dificuldades da vida", na preguiça eterna, esquecendo que a vida é uma luta constante que começa na base da pirâmide social e jamais termina. E, com a crueldade que lhe está associada, os que ficam parados na corrente ascendente, os que nada fazem, são rapidamente ultrapassados e cilindrados pelos que vêm atrás.

É aos pais super protetores, eles mesmos maus exemplos, ou negligentes com o comodismo galopante dos filhos, que deve ser assacada a maior responsabilidade por esta faixa marginal de jovens inertes, sem hábitos de luta ou sacrifício, que julgam que o mero facto de terem tirado um curso superior lhes garante o acesso imediato a um patamar profissional superior.

Todo o trabalho é honrado e em bastantes países por esse mundo fora, é comum os "doutores" trabalharem em ocupações menos qualificadas, isto até conseguirem, sempre com a sua luta e engenho, uma ocupação adequada às suas qualificações.

Nunca mais me esqueço da frase premonitória proferida por um professor que tive no ensino secundário, em relação às graçolas dos "engraçadinhos de serviço" da sala de aula: " Não gozes com os «caixas de óculos»" a quem chamas «marrões» e ocupam sempre os lugares na fila da frente, pois muito provavelmente vais encontrá-los como teus chefes na vida profissional futura".

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

O que é ser amado?



Ser amado pode ser considerado um desejo universal, pois é algo que praticamente ninguém rejeita; e, antes pelo contrário, muitas das atitudes e comportamentos que adotamos nos nossos quotidianos, têm em vista a satisfação da necessidade de sermos amados.

Todos nós temos interiorizada a certeza de que é preciso dar para receber e, muitas vezes, oferecemos amor, atenção e carinho, com a expetativa legítima de sermos correspondidos em igual proporção.

A demonstração do amor requer mais do que beijos, sexo, palavras, riso e companheirismo. Sentir-se amado é saber que existe uma pessoa que tem interesse real na nossa vida, que zela pela nossa felicidade e se preocupa genuinamente connosco. É, no fundo, sentirmos que somos aceites tal qual somos, sem termos de inventar uma personagem para apimentar a relação, e vivermos seguros de que as nossas qualidades são admiradas e os nossos defeitos tolerados, tudo graças à força maior que representa o amor.

Ser amado, seja por via de um relacionamento amoroso, por alguém que nos é muito próximo em termos de parentesco, ou por pessoas amigas, é condição absoluta para a felicidade de qualquer pessoa. Ninguém, com exceção de pessoas com graves distorções de personalidade ou afasias emocionais sérias, consegue sentir-se estável, equilibrado e feliz, se viver em estado de carência absoluta de amor.

Grande parte dos comportamentos violentos, da intolerância e, de um modo geral, das perturbações de caráter a que assistimos, com exceção de doenças psíquicas graves, é fruto de uma grande falta de amor. Trata-se de pessoas que são, ou sempre foram, seres mal-amados.

Com maior ou menor consciência desta necessidade, que não é exclusivamente humana, já que também existem animais capazes de expressar emoções e sofrer com a carência de afeto, de um modo geral, orientamos o nosso comportamento com vista a receber afeto - ainda que existam pessoas que, erroneamente, insistem em pensar o amor como algo transacionável, capaz de ser conquistado através da oferta de bens materiais.

Mas, mais fundamental do que ser amado, é o amor que conseguimos ter por nós mesmos. Quando gostamos de nós, sempre que conseguimos ter uma dose de amor-próprio razoável, fruto de termos atingido a paz interior e a aceitação necessária das nossas qualidades e defeitos, somos mais capazes de dar amor; e, sobretudo, não depender emocionalmente de outrem, ou nos dispormos a qualquer preço por uma réstia de afeto.

A carência é, no entanto, uma fonte pródiga de enganos e, não raro, entregamos o nosso maior afeto a quem não está de boa-fé connosco, nem sente por nós qualquer tipo de amor.

E, na eterna cruzada da busca do amor, para se ser amado é necessário vontade de entrega, sentimentos genuínos, bem como capacidade de análise do outro, e também uma boa dose de realismo.

Nem tudo o que reluz é oiro, pois, nas partidas da vida, há muitas pessoas que coletam lucros à custa da carência que os outros têm de amor. Regra geral, essas criaturas integram a fasquia marginal daqueles para quem o afeto não existe como necessidade. São seres doentios, parasitas da dor alheia, espectros a evitar.