sexta-feira, 27 de setembro de 2019

A esplanada do Central



A esplanada do Café Central de Almada, lugar de pouso do outono da minha infância e, posteriormente, de grande parte da minha juventude, à tarde, é lugar de suecada. Sexagenários e septuagenários, em alegre algazarra, competem por moedas, com assistência dos jogadores de bancada - que ora apupam uns, ora incitam outros. Quem diria que este celebérrimo café estaria destinado a transformar-se numa arena, onde idosos se batem fervorosamente pelos ases e pelos trunfos numa gritaria insana e ensurdecedora?!

Em meados dos anos 70, durante os anos 80 e até ao início dos anos 90, a esplanada do Central acolheu intelectuais, drogados, traficantes, estudantes, professores, ladrões, parasitas sociais, filósofos, políticos, músicos, poetas, pintores, ativistas e quejandos. Era difícil encontrar um lugar tão heterogéneo em toda a cidade. Célebres eram as noites em que se transformava na arquibancada onde se podia assistir aos ralis noturnos. Os competidores desciam, a velocidades alucinantes, a avenida D. Nuno Álvares Pereira e, chegados à rotunda da ex-Praça da Renovação (mesmo defronte da esplanada do Café Central), faziam piões e chiavam os pneus de tal forma que o cheiro a borracha queimada fazia-se sentir nas narinas. Só quando aparecia o "Nívea", o velho Volkswagen azul e branco da PSP, é que toda a gente debandava. Horas mais tarde, as corridas recomeçavam noite dentro. Não raro, havia despistes contra as montras de lojas.

Almada está cheia de reformados. Gente que trabalhou uma vida inteira e que contribuiu para agora merecidamente gozar o outono da vida. Mais difícil é conceber que a tolerância chegasse ao ponto de permitirem a transformação da esplanada de um café num casino de rua. Não faltam, na cidade, locais mais apropriados para a reunião e o convívio das cartas. Mas a centralidade do lugar apetece e, sobretudo, a complacência das autoridades e dos empregados do café, permite aos velhos algo que a outras idades seria reprimido. Os velhos já arrastam consigo a penosidade da idade e, muitas vezes, da solidão e da doença. Quem sabe não seria cruel afugentá-los da esplanada, como se fossem pombos portadores de maleitas. Não tarda, a sua vida some-se e os novos suspiram por poder chegar à idade da matiné das suecadas no Café Central.

Seeking Sole Mates



Li algures sobre um método infalível para encontrar o par da meia perdido. A ideia básica é separar em categorias - por exemplo, cores. Começa-se por dividir as meias assim: uma pilha de meias cinzas, outra com as pretas e uma terceira para as brancas. Depois, escolhe-se outro critério, como o comprimento.

Isto não é mais do que a aplicação do método dedutivo (do geral para o particular), ou a modalidade de raciocínio lógico que faz uso da dedução para obter uma conclusão a respeito de determinadas premissas - no caso em apreço aplicado a meias.

Mas, sem ofender as premissas da Lógica, que muito respeito, acabei de adotar um método amplamente mais eficaz. Caso demore muito tempo a encontrar o par da meia, coloco as meias perdidas num saco de plástico, a aguardar as que virão de novas lavagens. Se jamais aparecer o par correspondente, passam à categoria utilitária de panos para engraxar, ou coisa que o valha. Mas mais eficaz do que todos os métodos, a partir de hoje só compro meias rigorosamente iguais. É a chamada solução final.

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Duterte & Companhia


Lido por aí: "Duterte pede ao povo filipino que ‘atire’ em funcionários públicos corruptos".


Com esta simultaneidade, não me recordo de uma época recente em que o mundo tenha tido tantos governantes de topo com tamanhas irresponsabilidades.

María Corazón Aquino, também conhecida por Cory Aquino, foi presidente das Filipinas entre 1986 e 1992. Foi a líder do movimento que derrubou a ditadura no seu país, então liderado por Ferdinando Marcos - o tal cuja mulher se deslocava de avião todas as semanas a Paris para comprar roupa e sobretudo sapatos, artigo que colecionava aos milhares, enquanto o povo morria à fome e era torturado e morto nas prisões .

Aquino, falecida em 2009, recebeu diversos prémios e era uma figura respeitada a nível internacional. Foi provavelmente a melhor presidente que as Filipinas tiveram nos tempos modernos

Mas agora as Filipinas têm como presidente o advogado Duterte, eleito por sufrágio supostamente livre e democrático, que afirma publicamente já ter abatido a tiro muitos traficantes e delinquentes. Para além disso, o atual presidente, apela a que seja feita justiça popular, sem recurso aos tribunais, ou a quaisquer direitos de defesa para os eventuais acusados de crimes violentos ou de corrupção. Duterte, que incita a população a praticar a lei de talião e a vindicta privada, recorde-se, é advogado.

Neste estranho mundo atual, temos simultaneamente a decidir os destinos dos seus países, com influência direta ou indireta no planeta: o Trump nos Estados Unidos, o Boris Johnson no Reino Unido, O Erdogan na Turquia, o Kim na Coreia do Norte, o Duterte nas Filipinas e aqueles loucos fanáticos de turbante branco, o Hassan Rohani e o Ali Khamenei, no Irão, entre outros cujo nome não recordo.

A perigosidade de uns é seguramente superior à dos outros, sobretudo pelo poder militar que os respetivos países concentram, mas a particularidade de todos serem belicosos e manifestamente incompetentes para serem líderes mundiais, não nos deve deixar esperançosos de que enveredem por soluções pacificas e consensuais na resolução de eventuais conflitos.

As organizações internacionais correm sérios riscos de se tornarem tigres de papel no cenário das atuais relações internacionais, se é que não o são já, uma vez que o incumprimento das suas resoluções, é cada vez mais impossível de ser aplicado coercivamente, pelo menos no que respeita a certos estados. O direito do mais forte é e sempre será a maior fonte do Direito Internacional Público.

domingo, 8 de setembro de 2019

Eduardo Beauté



Leio as notícias do dia.

O cabeleireiro Eduardo Beauté, com 52 anos de idade, faleceu. Segundo os amigos e pessoas próximas, estaria doente, por demonstrar sintomas de depressão profunda. Não era a primeira vez que isto acontecia, como o próprio revelou em várias entrevistas.

Foi casado com o modelo Luís Borges, bastante mais novo do que ele, de quem se divorciou após discussões recorrentes e que foram alvo de alguns escândalos noticiados nas revistas cor-de-rosa. Entretanto, o casal tinha adotado três crianças, que ficam agora órfãs de um dos pais.

O famoso cabeleireiro, de seu verdadeiro nome Eduardo Ferreira, foi encontrado morto em casa no sábado passado. Aguardam-se notícias oficiais das causas da morte, mas tudo aponta para suicídio.

Aproximadamente uma em cada seis pessoas que cometem suicídio deixam um bilhete que, às vezes, dá pistas para as razões para essa atitude. Não se sabe, por ora, se isso aconteceu no caso do Eduardo.

Os comportamentos suicidas geralmente resultam da interação de vários fatores, sendo que o fator mais comum que contribui para o comportamento suicida é a depressão.

Pessoas que passaram por viuvez, separações ou divórcios, como é o caso de Eduardo, que confessa em algumas entrevistas estar a fazer um luto muito difícil da sua separação, têm maior probabilidade de consumar um suicídio.

Eduardo nasceu na Marinha Grande e foi em Leiria que abriu, nos anos 80, o primeiro salão em nome próprio. Chamou-lhe “Eduardo Haute-Beauté”. As pessoas, quando iam ao seu cabeleireiro, diziam que iam ao Eduardo Beauté e assim ficou sendo conhecido. Muitas pessoas de Leiria lembram-se bastante bem do salão de cabeleireiro e falam amiúde dele. Eu vi o Eduardo algumas vezes em Lisboa, mas nunca o conheci pessoalmente.

Infelizmente, a depressão, já considerada a doença do século e, segundo a OIT, responsável pela causa maior de abstinência ao trabalho, ainda é um estigma severo, para os atingidos pela doença; e vista com uma enorme incompreensão por todos aqueles que nunca sofreram desta maleita. Seja por grave ignorância ou insensibilidade pura - em geral as duas causas concorrem juntas -, as pessoas atingidas pela depressão são consideradas seres fracos, desistentes e criaturas a evitar. São muitas vezes estigmatizadas pelos ditos "seres não deprimidos" e rotuladas de inúteis.

Longe vão os tempos em que as pessoas atingidas por qualquer doença mental eram, juntamente com outros indesejáveis, a saber: alcoólicos, indigentes, criminosos reiterados, pedófilos, pederastas, sádicos, masoquistas e quejandos, encerradas em hospícios, que mais não eram do que casas dos horrores, como forma de os subtrair ao convívio social. O hospício era o pátio traseiro da sociedade.

Felizmente que, hoje em dia, nas sociedades com algum grau de evolução social, a inclusão de pessoas atingidas por alguma patologia mental é prática corrente. Mas ainda existem muitos jurássicos que - sorte a deles - nunca sofreram uma depressão e insistem menorizar as pessoas atingidas pela doença, classificando-os como párias sociais.

A mudança de mentalidades é um trabalho de décadas e por vezes séculos. Temos de esperar algumas mortes e nascimentos para ver renovado o tecido social com novas seivas de pensamento.

A confirmar-se o suicídio, Eduardo foi mais uma vítima desta secular doença e foi esta a única forma que encontrou de colocar um ponto final no atroz sofrimento que o consumia.

RIP, Eduardo