quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Efeméride - Como é que o teu pai se chama? Importas-te de repetir?

Carlos Fernando Luís Maria Victor Miguel Rafael Gabriel Gonzaga Xavier Francisco de Assis José Simão de Bragança Sabóia Bourbon e Saxe-Coburgo-Gota, foi o penúltimo Rei de Portugal. Nasceu em Lisboa, no Palácio da Ajuda, a 28 de Setembro de 1863, e morreu na mesma cidade, no Terreiro do Paço, a 1 de Fevereiro de 1908.

O nosso penúltimo rei, não morreu de morte natural, foi chumbado pelo Manuel Buíça e outro comparsa, quando seguia numa caleche aberta no Terreiro do Paço, no regresso de Vila Viçosa. O regicídio encontra-se assinalado numa placa discreta no local onde aconteceu o atentado.

O monarca D. Carlos tinha um nome do tamanho do comboio de Chelas, pelo mesmo motivo contrário que eu somente tenho dois nomes próprios e dois apelidos. As pessoas de sangue azul, aparentadas com a nobreza, têm imensos nomes porque são o resultado dos muitos cruzamentos com gente de linhagem com vista a apurar o pedigree. O pior de tudo são os barrabotas, que não têm onde cair mortos, mas apresentam-se forrados de catrefadas de títulos, apelidos e nomes sonantes.

Tratar o nosso filho por menino ou por você é superlativar às últimas consequenciais a presunção de que se é nobre e diferenciado da arraia miúda. As nossas tias de Cascais e as socialites são eximias nisso. Mas aqui pela cidade do Lis também conheci uma fulana que, além de flibusteira, mentirosa e intriguista, arrogava-se ser Condessa da Marinha Grande e doutoranda, sem nunca ter metido os pés numa Universidade. O ridículo, infelizmente, nunca conheceu limites, nem tampouco a noção, pelo próprio, do mesmo.



terça-feira, 27 de setembro de 2022

Guerra e Paz



Em tempo de guerra - it's an old saying, como dizem os ingleses - enquanto uns choram os outros fabricam os lenços. Sãos os comentaristas de serviço e os de ocasião, que ganham fortunas por bolsarem opiniões e adivinhações nas várias estações televisivas; são as empresas de energia que têm lucros fabulosos por conta da subida dos preços; é o governo que obtém uma receita fiscal com resultados inesperados e sem precedentes; é a industria de armamento e, de um modo geral, todas as empresas ligadas à produção conectada com a guerra que arrecada lucros gigantescos; são as empresas fornecedoras de bens alimentares, com grandes stocks comprados a preços baixos, que têm lucros imensos ao venderem os seus produtos a preços inflacionados. Se demorasse mais tempo a refletir, certamente que me recordaria de outras pessoas que obtêm vantagens com o atual conflito. A guerra sempre foi uma grande oportunidade de negócio.

No final de tudo isto, quem sofre, quem se lixa, em português vernáculo e por todos entendível, é sempre o consumidor final, aquele que não pode fazer repercutir os aumentos do preços em ninguém; os que estão na base da pirâmide social, com especial enfoque para os mais desfavorecidos economicamente, tornados ainda mais vulneráveis face todos estes acontecimentos.

Não tarda, virá o incumprimento das prestações bancárias, as famílias que perdem as suas casas, a fome, o desespero, o rasgar de uma parte do tecido social. O mundo de 2022 ficará na História como um ano infame.

Inevitavelmente, muitas vezes é preciso fazer a guerra para conquistar a paz. E sempre assim foi ao longo dos séculos. O contrário disso, a submissão, a aceitação da chantagem, resultaria numa situação muito pior. O mundo democrático, livre, com todos os defeitos que tem, que ainda assim é o melhor modelo societário que conheço, deixaria de existir. O estranho é que a grande maioria das pessoas com quem falo, está mais interessada nos resultados desportivos, nas realidades comezinhas do dia-a-dia, porque acha que ver noticias sobre a guerra é depressivo e indispõe. Não é pelo facto de nos tentarmos alhear dos problemas que eles desaparecem e sendo um facto que nenhum de nós tem uma solução mágica para remediar o que está a acontecer, nada justifica a alienação da realidade. Fosse eu substancialmente mais novo, e que bem me conhece sabe que não faço afirmações vãs, estaria provavelmente na Ucrânia a defender a Democracia e os valores em que acredito e baseio a minha vida.


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quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Sapatos pontudos, joanetes & avó Quina

Um destes dias, navegando pelo Youtube, deparei-me com uma série deliciosa sobre curiosidades históricas. Gravei na box e acabei por ver, em dois dias consecutivos, todos os 10 episódios. Os aspetos mais recônditos da História, as bisbilhotices, bizarrias e escândalos, foram sempre objeto de muita curiosidade. De uma forma geral, o estudo histórico da economia e das transformações geográficas e políticas, nunca teve tantos adeptos como os seguidores das narrativas sobre as pilhérias e as singularidades existentes no tecido social ao longo da nossa existência.

Apesar de há imensos anos ter estudado História, nunca tive, em matéria de livros recomendados, acesso a narrativas consideradas “pouco sérias” pelos gurus do tempo, que decidiam o que eram factos científicos ou efabulações. O Professor Doutor José Hermano Saraiva, comunicador nato e um vulto maior da História e da cultura portuguesa, que muito admirei, sempre foi estigmatizado pelos professores da “escola do rigor científico” e apelidado de fantasista e pessoa pouco credível.

Basicamente, sempre achei que o saudoso Professor, com uma erudição notável, por vezes, para apimentar as histórias que tão bem sabia contar, estendia um pouco a toalha, preenchendo os buracos negros com invenções prodigiosas, mas isso são outros quinhentos.

Num dos episódios, achei muita piada à explicação que foi dada sobre o uso dos sapatos pontudos que vemos usualmente em pinturas representativas da época medieval. A alta classe europeia preocupava-se muito com a sua aparência, pois era por meio dela que iriam se distinguir dos demais, tanto das suas classes quanto, principalmente, das mais baixas. Usavam cores extravagantes, tecidos caros e sapatos pontudos. Ainda hoje, para algumas pessoas, regra geral para os espiritualmente mais pobres, a roupa, seja por ser de uma determinada marca considerada cara, ou pela sua estravagância, é um símbolo identitário e também um sinal de pertença a uma determinada classe ou grupo social.

Os sapatos usados pelas classes altas, na era medieval, eram sempre um investimento e, aos olhos atuais, podem parecer estranhos, muito por causa do seu formato semelhante a uma cenoura, com pontas chegando até aos 12 centímetros além dos dedos. Esse tipo de calçado era extremamente caro e quem os ostentava indicava que tinha muito poder aquisitivo, não participando em nenhuma atividade que exigisse o mínimo de movimentação (entenda-se trabalho físico).

As exumações de esqueletos de pessoas pertencentes à nobreza ou ao alto clero revelaram em cerca de 70% dos casos a existência de uma deformação óssea a que vulgarmente chamamos joanetes, pese embora a comunidade médica use certamente um vocábulo mais complexo para apelidar esta doença.

Os joanetes não são um apanágio da civilização moderna, como anteriormente se pensava, pois na Idade Média, as classes altas desenvolviam esta doença óssea, por causa dos sapatos pontudos que usavam. Sabemos também que o fator hereditário pode ser preponderante no aparecimento da maleita.

A minha avó Quina nasceu em 1900, na alvorada do século XX, e viveu a I Guerra Mundial, a Revolução de Outubro, também conhecida como Revolução Bolchevique, a Gripe Espanhola, a II Guerra Mundial, a chegada do homem à Lua – ela faleceu sem nunca ter acreditado que isso tivesse acontecido – e finalmente o 25 de Abril.

Eu tinha uma ligação especial à minha avó paterna, apesar de vivermos relativamente distantes e não nos vermos com uma grande frequência, mas gostava imenso das histórias que ela contava, os relatos de uma pessoa que viveu quase um século. Falava com tristeza e emoção quando recordava o assassinato do Rei D. Carlos e do seu filho, D. Luís Filipe, ocorrido no Terreiro do Paço em 1908. A minha avó tinha 8 anos de idade quando isso aconteceu, mas era portadora de uma memória prodigiosa. Em criança, chegou a colecionar alguns postais, feitos de cartão grosso, com a imagem do príncipe herdeiro assassinado. Também me recordo de ela contar episódios sobre os soldados gaseados, pertencentes ao Corpo Expedicionário Português, que regressavam a casa feridos, muitos deles com o sistema neurológico completamente comprometido. A propósito disso, ela tinha uma expressão que usava sem parcimónia, sempre que algum dos netos (eu, em particular) estava demasiado agitado: “ Ó rapaz, parece que estás gaseado! Acalma-te!”

A avó Joaquina faleceu, creio, com 93 anos de idade e desde a morte do seu marido, o meu avô paterno, falecido em 1964, que ela, nas suas palavras, pedia todos os dias a Deus que a levasse para perto dele. O destino, ou o Deus em que devotamente acreditava, não lhe fez a vontade e quis que ela permanecesse no mundo terreno por mais 30 anos. Tenho muitas saudades da tapioca que ela fazia, decorada com bastante canela, para o nosso lanche, das compras que me mandava fazer na mercearia da esquina, das idas à missa - uma risada enorme entre primos! - e das conversas sobre os mortos, que era o seu assunto dileto.

A crónica é sobre joanetes, sobre os sapatos pontudos usados pela fidalguia medieval e de repente aparece a minha avó Quina, como se tivesse uma licença permanente para entrar no sótão das minhas mais gratas memórias - onde ela, regra geral, está sempre presente. Os sapatos pontudos, desde que a moda foi introduzida na Idade Média, nunca desapareceram totalmente do vestuário ocidental e o seu uso era frequente na moda dos anos 70, 80 e 90 do século passado. Ainda hoje alguns malaicos e saloios, useiros cultores do mau gosto, gostam de calçar sapatos com bico, de preferência com fivela e envernizados, para remate do pitoresco.

A avó Quina tinha joanetes e sofria com dores crónicas atrozes, sempre que precisava calçar uns sapatos mais sofisticados para ir a um sítio mais solene, regra geral a missa. Lembro-me muito bem de ela me mostrar os pés e eu ficar aterrorizado com a dimensão da deformação dos ossos. Usava sempre algodão dentro dos sapatos, no lugar da deformação do osso, para tentar amortizar a dor, mas era em vão. A dor nunca a largava. Dizia ela que, quando ia à missa, a dor nos pés fazia parte de um ato sacrificial de contrição pelo perdão dos seus pecados.

A avó guardava a roupa mais chique no guarda-fatos e usava bolas de naftalina porque vivia atemorizada com as traças. Tinha fobias, como acho que todos nós temos um pouco. Recordo-a como se hoje fizesse uma viagem no tempo até ao quintal da casa de Setúbal: a avó, com o cabelo branco muito comprido, com nuances amareladas, apanhado atrás como um grande caracol, os óculos na ponta do nariz, sempre trajada de negro, em memória do falecido marido, que ela garantia nunca ter visto nu. E o odor que mais recordo dela é o cheiro a naftalina. Aos domingos, quando íamos à missa, a avó Quina destilava essa estranha fragrância. Os joanetes era coisa hereditária, pois na família também há quem os tenha,. Nunca a vi com sapatos pontudos, como os malaicos ou os fidalgos medievos. Por falar nisto,  tenho tantas saudades dela…




domingo, 18 de setembro de 2022

A epístola que encontrei escrita no rasto de uma estrela cadente

Peço à luz que me guarde e mantenha fora do alcance das sombras, pois sempre que me entrego às memórias das nossas imagens juntos a minha pulsação abranda. Já quase não escuto o bater do meu coração. Talvez que um dia tudo se desmorone, mas se eu for capaz de continuar a contemplar a beleza e a viver na esperança do amor, não sucumbirei, pois são elas as únicas justificações irrefutáveis do ser.

Gostaria de acelerar o decorrer do tempo mas consigo apenas eternizar o presente. Evado-me de tudo o que este me mostra, desinteresso-me. E o presente, vazio de qualquer encanto, parece-me aborrecido. O verdadeiro amor exige intrinsecamente situar-se numa dimensão que ultrapassa os limites do tempo. E amar não é mais do que a expressão desse desejo de eternidade.

Ainda que o nosso espírito se desvaneça no dia da nossa morte como uma faúlha que se liberta do fogo, teremos, ainda assim, conhecido a eternidade durante o tempo em que sentimos o amor dentro de nós. E a eternidade de que falo consiste tão simplesmente em aproximar-me dessa luz de vida que é a inextinguível presença do meu amor...por ti.


Barreiro 2007



Planos de viagem

Planear uma viagem, concebê-la nos seus detalhes e munir-me de informação sobre o local que escolho visitar, já é um pouco saborear por antecipação o que imagino que me espera. É claro que a escolha do lugar é fundamental, pois tem de ser um sítio que me fascine e corporize o imaginário de um ensejo qualquer que há muito acalento. Viajo por necessidade de evasão mas também porque me quero sentir feliz; e a questão da felicidade é redonda como todas as questões pelejadas da subjetividade própria dos mortais: há pessoas que detestam viajar, quer porque se sentem inseguras fora dos seus territórios costumeiros, ou porque são demasiado comodistas; ou, ainda, por atavismo puro ou simples falta de curiosidade.

Quando escolho um local para visitar, há uma certa ideia de felicidade que alimenta essa opção e me dirige, porque sinto que ela me serve na perfeição de escudo protetor às contrariedades quotidianas e à carência de amortecimento do impacto das frustrações dos dias rotineiros: o excesso de trabalho, a permanência constante na mesma cidade, os problemas comezinhos, o simples fiar dos dias que se sucedem, por vezes mortalmente iguais. Por isso é para mim tão irresistível/importante a opção por um lugar que desempenhe essa função representativa de fuga ao trivial e seja a antípoda breve do que habitualmente me rodeia.

Ainda há pouco regressei a casa depois de ter dado um longo passeio pelos jardins da Fundação Gulbenkian, apreciando as árvores monumentais, os gansos a percorrerem o lago, velejando ao sabor da brisa que soprava suave na tarde que se esvaía e percorri todos os caminhos estreitos e labirínticos do jardim, acabando por desembocar sempre em clareiras esconsas onde dormitavam estátuas mudas.

Sentei-me um pouco para descansar e foi durante esses instantes de meditação que na minha mente se gizaram as futuras materializações deste premente desejo.

Lisboa, 2007


quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Tão longe quanto possível

Partir, ainda que provisoriamente, mudar de lugar, abandonar um casulo de feridas que não saram e nos doem em permanência, é quase sempre a solução de recurso mais expedita que nos ocorre quando queremos, de algum modo, nos compensar por uma perda ou um desgosto recente. Viajar afigura-se-nos então como a solução universal, com provas dadas em todos os momentos históricos: a tal mezinha, solução mágica, com propriedades profiláticas e curativas, capaz de florear a infelicidade, o luto incontornável, o premente arejamento de ideias, o ajustamento de que carecemos para nos restabelecermos e retomarmos o equilíbrio anterior – ainda que, também ele, fosse precário, mas era-nos familiar; enfim, tudo o que possamos fazer para retornar ao modelo que nos fazia viver mais consentâneos com a nossa forma estrutural de ser, e que por um período mais ou menos longo, em nome de uma busca de felicidade, nos criou a ilusão de conseguirmos trilhar caminhos para nós inóspitos e inconciliáveis, desconcertando-nos com o húmus da nossa menos abdicável forma de viver a nossa própria existência; mas chega o momento em tudo claudica perante as evidências.

O viajante sustenta uma poderosa ilusão: a de poder deixar em terra firme, bem aferrolhado dentro de um baú, os problemas que o atormentam para, em paz e sossego, em estado quase vestal partir já arejado para um qualquer destino paradisíaco, de preferência nas Caraíbas. Ilusionismo puro. A coisa persegue-nos. Ainda que estejamos debaixo de um coqueiro, a oito mil quilómetros de distância, numa praia de cartaz da República Dominicana; ainda que nos imaginemos marinheiros da tripulação de Colombo a banhos na praia, ou sonhemos que a vida é aquela perenidade, a mágoa da perda, que julgávamos ter deixado bem aferrolhada no baú, porque é volátil, porque atravessa corpos opacos, porque existe dentro de nós, viajou connosco.

Esse é, porventura, o drama maior do utilizador frequente das viagens para esquecimento.

Parecido com as viagens, é talvez, em desespero de causa, a tendência irreprimível e oportunista de procurarmos a companhia daqueles que julgámos, num passado remoto, ainda que por engano consciente, com competências adequadas para lustrarem a nossa autoestima, quer pelos dotes bajulatórios, quer pela conversa mansa e «cantiga de trovador», mas que nos servem no momento a poderosa ilusão de nos fazerem sentir alguém valoroso e desejado. Alguém que nos faça sentir que a nossa perda é compensada por um ganho, que não descompensámos totalmente; que afinal ainda somos desejados - pois é sempre de equilíbrio que se trata, sempre que se fala destas coisas. 

Barreiro, 2007









Apenas um pouco de magia e já está!


Se pensarmos um pouco e conseguirmos ser suficientemente abrangentes, depressa concluímos que todos os pensamentos são mágicos. E se por magia o nosso entendimento conceber que é mágico tudo o que for enigmático e incompreensível, então todos nós passamos por uma fase em que acreditamos piamente em tudo os que nos dizem, porque queremos acreditar, porque temos necessidade de fantasiar que a realidade não é o que surge diante dos nossos olhos, mas algo diferente. Distinguir a realidade da fantasia é um trabalho hercúleo que encetamos ainda na tenra infância e arrastamos pela vida fora, esforçadamente. É que esta coisa de fazer de conta que se controla um mundo que de facto não se controla precisa do apoio constante e secundário de pequenas fantasias, nem que seja por algum tempo, para manter aquela esperança vã de que tudo vai correr à medida dos nossos desejos, e nem sempre assim de facto acontece.



Onde a terra acaba e o mar começa


Encontro sempre na pitoresca São Pedro de Moel uma das praias mais fantásticas de Portugal, abrigada numa concha de casario cheio de bom gosto e de ar aristocrático. E num dos meus passeios, na réstia de um final de tarde, apeteceu-me absorver a maresia e perder o olhar na imensidão do mar azul profundo.

Junto ao recorte inconfundível do Farol da Saudade, rodeado pela infinidade das praias desertas, do vento que soprava forte, pensei no poeta e imaginei-o com o olhar pousado na gaze transparente das nuvens e nas fagulhas argênteas que saltitavam da crista das ondas.

Afonso Lopes Vieira, há muitos anos atrás, foi o homem que mais amou este Éden sagrado onde a saudade agora me fez voltar. É um lugar onde se pode morrer à vontade, com os olhos postos nas últimas glórias do sol-posto, acompanhado pelos clarões rosados que esmaecem no horizonte, não conseguindo resistir à opressão vitoriosa da noite que rapidamente chega...



São Pedro de Moel



São Pedro de Moel tornou-se para mim quase uma obsessão de beleza. Nos finais das tardes, sempre que o sol sorri, ainda que contristado com algumas nuvens passageiras, eis-me em peregrinação rumo a esse éden, como se um íman me puxasse. Mesmo que esteja triste, inconcebivelmente triste, a visão daquele mar tão monstruosamente sedutor, daquela terra tão infinitamente variada, as belezas únicas que encerra, fazem-me sonhar... e sonho que tal como há mulheres que me possam inspirar o desejo de as possuir, esta terra - «onde a terra acaba e o mar começa» -, provoca em mim o desejo nascente de morrer lentamente sob o seu olhar, pois que a amplidão do céu, a arquitetura móbil das nuvens, as colorações inconstantes do mar, formam um prisma maravilhoso e apropriado para entreter os meus olhos sem nunca os fatigar. Acho que este lugar, que nunca me canso de fotografar, é um sitio deleitoso para todas as almas como eu que as lutas da vida fatigaram e procuram incessantemente a paz e avidamente a certeza da beleza. Tão somente isso.

Leiria 2007


O amor verdadeiro

Se existe um fenómeno evidente, trivial, sempre idêntico e de tal natureza que a respeito dele é impossível estarmos enganados, é o amor maternal. É tão impossível imaginar uma mãe destituída de amor maternal como a luz sem calor, como um sol frio, que não seja no sentido da antítese poética. O amor relacional é um esboço desse amor verdadeiro e incondicional.

Ainda há pouco fui comprar um jornal - eu que faz tanto tempo não comprava jornais, apanhava-os ali, acolá, espalhados pelas mesas dos cafés e dessa forma me abeirava das notícias -, sentei-me num banco de jardim sentindo na face a brisa suave da manhã e deleitei os olhos a observar a doçura com que uma mãe brincava com os seus filhos: os beijos e as ternurazitas que lhes dava, o brilho que se escapulia dos seus olhos, a incondicionalidade daquele amor ali à minha frente. À nossa volta doidejavam pássaros e as corolas das flores pareciam cálices que exalavam explosões de odores e cores e tudo aquilo me pareceu fazer sentido como se fora um «ensemble» musical reunindo os ingredientes da beleza nas proporções certas.

Recordei que, em tempos, conheci alguém que, na minha licenciosa fantasia, enchia a atmosfera que me circundava de ideais, cujos olhos espalhavam o anseio da grandeza, da beleza, da pureza e da glória, e de tudo o que me fazia acreditar na imortalidade desse amor. Mas essa pessoa não era quem eu julgava ser. Era uma vez mais um fruto das partidas de elfos das minhas perenes ilusões, algo que eu fantasiara, ou desejara que fosse real.

Hoje dia primaveril lindíssimo, cobertos os pensamentos acerca dela com os mantos da certeza, da realidade, e da consciência aguda da verdade, sinto-me mais conforme comigo mesmo e guardo-me para o dia em que apareça vinda dos meus turvados sonhos, envolta em tules odoríferos, a princesa que se assemelhe em tudo um pouco à minha ilusão; e, por essas alturas, o que ainda sobrar de mim é seu.

O tempo e o amor marcaram-me com as suas garras e ensinaram-me cruelmente o que cada minuto e cada beijo nos roubam em juventude e em frescura. E estou tão certo, como esta manhã soalheira, em que o ar treme ao tocar na água do lago, de que algures, num cantinho escondido, por entre os áureos véus das nuvens, num país distante, numa terra sagrada, aqui perto de mim, ou nalgum lugar naufragado nas brumas do meu desejo, dormita a musa que se assemelha com verdade à felicidade engendrada pela minha ilusão.

Estas linhas escritas no Barreiro, no conforto da minha sala forrada de silêncios, são uma forma de me refugiar na tarde que ai vem; e procurar trazer à tona algumas palavras, sem outro fito que não seja o de manifestar a insurreição do meu olhar perante estas coisas que, por muito que se afastem, regressam sempre ao burel da minha escrita - que é um pouco o cinzel moldado à medida da mão com que vou paulatinamente esculpindo a minha vida.


Barreiro, 2007







Das ilusões.



As ilusões são talvez tão inumeráveis como as relações dos homens entre si, ou dos homens com as coisas. E quando a ilusão desaparece, quer dizer, quando nós vemos o ser ou o facto tal como ele existe fora de nós, experimentamos um sentimento bizarro, complicado em metade pelas saudades do «fantasma» desaparecido, em metade pela surpresa agradável ante o novo, ante os factos reais. E a reposição da clareza e da verdade, muitas vezes, só sucede depois de desnudado o véu bordado de irrealidades que nos impossibilitava de ver com clareza.



The Sound Of Music

 

« Música no Coração», no original, "The Sound of Music", bizarramente traduzido em terras de Vera Cruz como “ A Noviça Rebelde” - quem não viu este filme pelo menos umas dez vezes meta o braço no ar!

Fui ver a película aquando da sua estreia em Portugal, no antigo cinema «Condes», na Avenida da Liberdade, em Lisboa - atualmente transformado no Lisbon Rock Cafe - com os meus pais, andaria eu pelos meus seis anos de idade. Depois, sucessivamente, quer no cinema, quer na televisão, aconteciam amiúde retransmissões da película, a maioria das vezes por alturas do Natal. Dizia-se, na brincadeira, que uma forma de tortura imaginativa para obrigar alguém a fazer determinada coisa, seria amarrá-la numa cadeira, com uns palitos nos olhos, por forma a não os poder fechar e obrigá-la a assistir 20 vezes ao filme.

À parte o lúdico da questão, é certo que tanto «Música no Coração», como «Mary Poppins», foram musicais que marcaram uma época e que pela intensa felicidade que nos transmitiram, fazem hoje parte do relicário das nossas mais gratas memórias.


"Se bem me lembro"

 

Seguramente, apenas as pessoas da minha geração guardam disto memória, mas entre 1969 e 1975, a RTP apresentou um programa semanal com o título sugestivo "Se bem me lembro". Durante cerca de meia hora, em horário nobre, os portugueses deixavam o Professor Vitorino Nemésio abrir-lhes as fronteiras da cultura e do conhecimento.

Nemésio era um homem apaixonado pela palavra, singularmente culto e um comunicador nato. A sua forma genuína e intimista de comunicar, tornou-o muito popular junto dos telespetadores e o modo como difundia a sua vasta erudição era, no mínimo, peculiar.

Iniciava sempre o seu monólogo com o timbre de uma conversa informal, onde trazia à colação memórias sobre acontecimentos triviais, aparentemente, assuntos que em nada poderiam interessar a quem o escutava. Podia começar com o relato de um episódio ocorrido numa praia açoriana da Ilha de Santa Maria, uma brincadeira inocente com um dos seus netos, mas a história ia-se desenrolando até que o Professor, magistralmente, começava por explicar, a propósito, que tinha sido naquela mesma praia que Gonçalo Velho havia desembarcado, corria o ano de 1431. Nos anos seguintes, seguir-se-ia o reconhecimento das restantes ilhas do arquipélago dos Açores; e, continuando neste registo, durante 30 minutos, ofertava aos seus telespetadores uma riquíssima aula de História de Portugal.

Na época em que o distinto Professor exalava a sua vasta erudição, em horário nobre do único canal da televisão, a transmissão era a preto e branco, e vista lá em casa no velho Telefunken a válvulas, com caixa de madeira envernizada, que reagia positivamente a uma pancada certeira no tampo, sempre que a imagem começava a falhar. Tínhamos constantemente ajustar a antena, porque as falhas do sinal eram frequentes, mas ninguém se queixava, pois era a tecnologia disponível e dávamos graças à divina providência por podermos ter um televisor.

Quem queria que a sua televisão tivesse imagens com aparência colorida e para prejudicar menos a visão, muitas vezes colocava um filtro azulado frente ao ecrã. O efeito era no mínimo bizarro, já que tudo ficava coado por um filtro azul, criando um efeito demasiado deslavado e artificial.

Muito mais tarde, quer na RTP Memórias, quer no Youtube, revi excertos do programa "Se bem me lembro" e recordei a forma imatura, de perplexidade, gozação e incompreensão, com que os adolescentes reagiam ao entusiasmo dos mais velhos pelas preleções do distinto Professor. Nemésio, para nós mancebos na idade, era mais um velho que debitava conversas de seca na televisão a determinada hora da semana.

Em idade madura, conheci os ensaios, os livros, a poesia e assisti com atenção às conversas televisivas do insigne escritor, e tive então consciência da magnitude do personagem.

O Rui Nemésio, amigo de infância, criatura que não vejo há mais de 50 anos, neto do distinto professor, era conhecido como o “Banana”, porventura pela bonomia com que lidava com todos. Era muito calado, calmo, judoca militante, míope e bastante inteligente. E nestas duas últimas facetas era a imagem viva do seu avô. O Rui sentia-se desconfortável com o “estigma” de ser descendente de tão popular figura televisiva e esquivava-se a conversas sobre o tema, mas todos lhe conhecíamos o orgulho indisfarçável que o inundava. Quase podia jurar que teve uma carreira tão fulgurante como a do seu avô.




sábado, 10 de setembro de 2022

O nosso tempo

As pessoas "como deve ser" querem-se ocupadas, sempre ocupadas, com coisas gloriosas. Devem fazer coisas, de preferência, úteis. Devem ser diligentes, atentas e interessadas, acordar cedo e ter um toquezinho histérico ou hiperativo logo pela manhã, para demonstrar, para exibir o tempo todo, atitudes de voluntarismo, vitalidade e energia. Pessoas lentas e desmotivadas como eu, pouco expeditas no que às tarefas que lhe desagradam respeita, ou só contemplativas, arriscam-se a passar por mandrionas, que é a alcunha familiar dessa preguiça nefasta. Confesso-me um daqueles "profissionais" que trabuca para a manduca. Prefiro, de longe, ler, escrever, viajar, conduzir motas, e fotografar o entardecer. Onde mora a gloriosa opção de ver a relva a crescer? Ou a doce volúpia de não fazer nada, ou só fazer o que se gosta? Quanto vale sermos donos do nosso tempo?


Ser assertivo é...



Talvez o sentido atualíssimo da questão - a eterna questiúncula entre optar por ter uma reação maior do que a provocação ou, pelo contrário, mostrar superioridade através da imperturbabilidade - tenha atiçado muitas vezes as nossas mentes. Mas de facto é algo que não deixa de ser verdadeiro e que nos acompanha na maioria das interações que estabelecemos no quotidiano, seja no local de trabalho, na escola, no hospital, na universidade ou, inclusive, num mero espaço de lazer entre amigos. São demasiadas as mulheres que se queixam amiúde do avanço da idade, porque que lhes rouba a beleza, porque lhes trás rugas, peles moles, porque faz com que se sintam menos atraentes aos olhos do sexo oposto. Os divãs dos psicanalistas enchem-se de musas e de homens, incapazes de lidar com a voragem do tempo, frustres, sem conseguir tirar partido daquilo que a meia-idade tem de melhor: o ganho em capital de experiência, a possibilidade, única, de conseguirem, finalmente, fazer sínteses e súmulas da vida; a previsibilidade das coisas; e, sobretudo, o domínio do saber-mor da ciência: o conhecimento da causa-efeito, para prevenir, para não descuidar, para não sofrer.

Desperdiçamos grande parte da nossa energia com coisas que pertencem ao passado ou investindo tudo no futuro. Entretanto, o único tempo real que existe é o presente, apesar de fugaz, imparável, incapaz de ser sustido, como uma lufada de vento numa destas manhãs enevoadas. Mas aquilo que se está a passar no preciso instante em que aqui estamos - o agora - é o que mais importa; e é apreciando-o bem que vamos podendo estar contentes com o que somos e temos. Ou seja, felizes na medida do possível. Bem-estar interior é um passo em frente no caminho da mudança para melhor, então porquê levar uma vida carregada de azedumes, exponenciando cóleras, reagindo a atitudes primatas de comparsas que o que esperam de nós é a desorientação para, com mais sucesso, nos atingirem, logo que exponhamos o flanco?

Muito mais do que um mero gesto de cortesia que, desde pequenos, nos é apresentado como fazendo parte da "boa educação", agradecer aquilo que a vida nos dá torna mais fluída a energia que existe no interior de nós mesmos. E esse sentimento de apreciação grata, relativamente aos benefícios recebidos, é uma expressão da alma. Por mim falo. A cólera aumenta os níveis de colesterol, dilata a possibilidade de se vir a padecer de um acidente vascular cerebral, ou de um enfarte do miocárdio. O inevitável, mais do que tudo, é uma verdade semântica; então para quê consumirmos as nossas preciosas energias com seres medíocres que outra coisa não pretendem senão despoletar-nos uma reação: o estímulo (provocação) - resposta (cólera). Porque não contrariar o efeito (por eles) desejado e deixar que um sorriso daviniano anoiteça no nosso semblante?

Eu não quero a guerra, muito menos se estiver instalada dentro de mim. E há sempre muito a fazer para evitar ou amortizar um conflito. Afinal o que mais importa é a forma como nós nos vemos, não as considerações que os outros tecem sobre nós. Se a nossa autoestima estiver bem cuidada, tudo é mais suportável. E no dia em que as coisas não forem assim, é sinal que está na hora de mudar, nem que para isso seja preciso pedir ajuda. Agora vamos todos ver uns landscapes. Vá, fechem os olhos, façam uma forçazinha!


quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Sopa mumificados & bacalhau


Hoje de manhã, por algum pressentimento que desde há uns dias me vinha assaltando a mente, abri a porta do congelador e deparei-me com uma gruta de gelo, parecida com aquela que vi nos arredores de Chamonix há alguns anos atrás, no meio de um glaciar nos alpes franceses. Havia formações de estalactites e estalagmites e o gelo, nalguns lugares, apresentava tonalidades verdes, porque, entretanto, a salsa e os coentros congelados começaram a derramar líquido. Parei para pensar. Como irei eu resolver este problema já que o frigorífico tem tanto gelo acumulado que a porta já nem fecha corretamente? Não posso retirar as coisas e deixá-las durante horas sem refrigeração, porque estamos no verão e arrisco deixar a comida estragar-se. Não tenho outro frigorífico nem me passa pela cabeça pedir a alguém que guarde os meus alimentos durante cerca de duas horas, que é o tempo que geralmente dura uma descongelação. Ponderadas as hipóteses, decidi desligar o aparelho e cozinhar tudo o que fosse alimentos rapidamente perecíveis. No congelador encontrei: bacalhau desfiado; ervilhas, coentros; esparregado; salsa; caldo verde e amêijoas vietnamitas.

Depois de desligado o aparelho, comecei a tarefa inglória de retirar as camadas de gelo com a ajuda de uma espátula. Sem exagero, penso que terei retirado cerca de 2 kgs do congelador, tudo para conseguir descortinar o que se encontrava afundado nas neves eternas do meu frigorífico. Após a descoberta dos híper congelados produtos, rapidamente cogeminei uma solução prática. Decidi fazer uma sopa suis generis a que dei o nome de ““sopa mumificados & bacalhau”.

A receita é simples e a sua conceção e produção surgiu espontaneamente. Coloca-se num tacho grande cebola picada, alho, azeite e deixa-se refogar. De seguida, juntam-se os legumes com água, sendo que foram estes os que eu utilizei: ervilhas; coentros; esparregado; salsa; caldo verde; alho francês; coentros e aipo. O tempero com sal e azeite é em quantidades qb. Depois dos legumes cozidos, utiliza-se a varinha mágica para desfazer muito bem os legumes até ficarem em puré. Finalmente coloca-se o bacalhau desfiado e deixa-se cozer também.

Para acompanhamento da sopa, decidi cozer as amêijoas vietnamitas. De seguida retirei a água da cozedura e, no mesmo tacho, coloquei alho, cebola picada, sal e pimenta, limão, muitos coentros e deixei alourar. Vou acompanhar com pão para o molho e uma bebida ao meu gosto.
Em resultado da minha tarefa matinal, fiquei com dois pratos cozinhados e um congelador limpinho e praticamente vazio.

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Nada. Foi apenas uma brisa que passou por aqui...

Tempos houve em que a verdade era mais que o antónimo da mentira. Já se acreditou, inclusive, que a verdade era uma espécie de quinta essência, um âmago de sentido, que justificava uma busca grandiosa, que tornava o caminho da vida num percurso de aperfeiçoamento e crescimento em direção a uma qualquer transcendência que faria de todos nós seres maiores e melhores. Acontece que, nesta época feérica em que vivemos, o desgaste do conceito atinge tais proporções que uma mentira, se dita vezes sem conta, acaba por se tornar verdade. Nos nossos dias, deixou de ser preciso dizer a verdade e as elites que nos governam, aqueles que têm nas suas mãos o poder de escolher os desígnios e as políticas que nos vão reger, são os que em primeiro lugar nunca dizem a verdade. Passámos a encarar as mentiras de um alto governante, de um deputado, de alguém com responsabilidades sociais intensas, como algo natural, normalíssimo até. Já não acreditamos em intenções vitalícias e é (quase) lícito prometer uma coisa agora e no dia seguinte quebrar o compromisso assumido. E esta falência da verdade é correlativa à emergência da disfuncionalidade aflitiva dos órgãos de cúpula que nos regem, que toleramos e com os quais nos habituámos a viver, não desperdiçando mais do que um simples encolher de ombros quando alguém nos pergunta se, ao menos, nos questionamos: "O que hei-de eu fazer?". Lírico eu? Talvez, mas a História prova-nos que só as revoluções conseguem operar as ruturas necessárias para extirpar os cancros do tecido social. Se assim é, venham elas!

novembro de 2009

Solidão - um sentimento pré-fabricado

Uma das perturbantes circunstâncias das metrópoles e do nosso quotidiano é a solidão que parece descer sobre as vidas de muitos de nós: os sem família, ou apartados dela, ou que viram as sua uniões afetivas um dia desfeitas; nuns casos, ambas as coisas. A voracidade dos dias, o trânsito caótico o trabalho desgastante, que nos consome recursos em demasia; o corre-corre de um lado para o outro; as discotecas com filas à porta e as noites a acabarem ao meio-dia; os relacionamentos fugazes; as seduções que, terminadas, encontram o eterno vazio de que se forraram, parece que tudo isto amplia o sentido de isolamento, ao invés de conceder a esperança de companhia e agradabilidade. São demasiados os que se queixam de um enorme sentimento de estarem sozinhos no meio da multidão e afirmam que é difícil encontrar alguém disponível para uma conversa amena; do quão complicado é chegar à fala com pessoas interessantes e da quase impossibilidade de desenvolver relações fortes com conhecimentos recentes. Mas, a maior parte das vezes, por mais que façamos de conta que os motivos são outros, e são dos outros, basta olhar à nossa volta para ver com atenção o muro de isolamento e ostracismo que construímos no que às relações sociais respeita. E às vezes são anos e anos de deliberados distanciamentos ou então de focagens excessivas, quando não obsessivas, numa única relação, não permitindo que alguém partilhe o bunker do relacionamento bilateral em que nos metemos. É verdade, sim, que há pessoas mais propensas a socializarem do que outras; é verdade, sim, que muitos de nós não gostam dos conhecimentos em multidão e da possibilidade de se poderem gabar: "tenho uma montanha de amigos"; é verdade, sim, que as necessidades de isolamento e de interação divergem consoante a personalidade de cada um, mas não podemos eternamente ficar instalados nos nossos maniqueísmos do costume, querendo respostas simples e fáceis que expliquem tudo isto de uma forma linear. A personalidade de cada um de nós é o resultado estrutural de uma construção que durou quase metade da nossa vida, daí ser quase impossível operar mudanças radicais; e a medida do que está correcto, aplicada a tudo, é a dose qb, a harmonia e temperança nas decisões e na consequente ação, salvaguardado o consenso e conflito da nossa identificação, que se quer ímpar.

O vaso: de Lídia Almeida (pintora)

Sempre que o sono teima em não chegar



Sempre que o sono teima em chegar, há uma de duas coisas que costumo fazer: ou leio, ou escrevo. Se opto por escrever e não tenho nenhum assunto especial em mente que queira relatar, mas tão somente a vontade de escrever, geralmente fico a matutar durante algum tempo e acabo por ser condescendente comigo mesmo: deixo que as palavras surjam naturalmente, motivadas por algum pensamento peculiar que se tenha apropriado da minha mente durante o dia, sem cuidar de grandes elaborações. O que fiz eu este sábado? Para não variar, fiz muitos quilómetros de mota. Fui até à Figueirinha e ao Portinho da Arrábida, com paragem para almoço nos arredores de Setúbal, e cheguei a Leiria já perto das oito horas da noite. O dia esteve sempre com uma tonalidade monocromática, sem que estivesse muito frio, e pouco convidativo a tirar fotografias. Foi uma viagem longa e também ela com pouca cor.

Como conduzo veículos de duas rodas desde muito novo, consegui criar uma espécie de piloto automático, que se encarrega dos reflexos e das abordagens das curvas, e uma parte da minha mente encontra-se sempre liberta para pensamentos que nada têm a ver com a condução. A nossa cabeça é um imenso sótão, capaz de albergar toda uma panóplia de recordações, e o mundo um caleidoscópio, eternamente fazendo formas e contrastes. O avivamento das memórias é muitas vezes despoletado por coisas triviais. Hoje, em Setúbal, passei em frente à casa onde nasci, há praticamente meio século atrás, e vieram-me à memória imensas recordações de infância. As brincadeiras, com o meu irmão mais velho e a minha prima, no quintal traseiro. O enorme caramachão feito de canas entrançadas ao fundo do quintal; o aroma forte das roseiras; as ameixas maduras e suculentas que surripiávamos às escondidas da avó; as parreiras carregadas de uvas doces com as abelhas a zumbir à volta; a cadela perdigueira do meu tio, a Jóia, sempre a ladrar sem parar; a minha avó, na janela do primeiro andar, a chamar-nos para irmos comer a tapioca que já estava a esfriar na mesa. Ao longe, às horas certas, o inconfundível apito lúgubre da automotora que saía da Estação do Quebedo com destino às Praias Sado.

Não se pode, nem deve, viver de recordações, mas são, sem dúvida, as memórias da minha infância que retratam os tempos mais felizes da minha vida. E a doce inocência, sem mais mistérios, é a responsável por esse desígnio. Sei que um dia, quando for oportuno, escreverei sobre esses tempos, mas não para publicar aqui. Os textos singelos como o de hoje, vêm do mesmo sítio das conversas dos conversadores ou das recordações dos anciãos: desse sótão no qual se empilham murmúrios, recortes, quinquilharia, roupas velhas, fotografias bolorentas, sorrisos, gritos de crianças. E este texto acabou por ficar inundado de frases, de afloramentos de lembranças, de palavras, tudo tocado ao de leve. Mas o mundo não se esgota, nem os textos se esgotam: há sempre esta girândola absurda. Há sempre mais, e mais, para dizer, ainda que fique para outras ocasiões. E haverá também quem leia esta crónica e pense que o cronista, desta vez, estava mesmo sem tema, o que não é de todo mentira.

dezembro de 2010