domingo, 27 de dezembro de 2020

Aulas de condução



Tirei a carta numa Escola de Condução em Almada, em 1979, num Volkswagen 1300 igualzinho a este. 
Como eu já sabia conduzir, o instrutor, logo pela manhã, despreocupado com as lições que achava desnecessárias, parava sempre o carro junto a uma tasca, longe dos circuitos habituais de aprendizagem, e tratava de se atestar. 

Dizia-me para eu ficar caladinho e que aquilo ficava só entre os dois. E fumava e cantarolava alegremente, ao mesmo tempo que lançava piropos às donzelas que seguiam pelo passeio.
Era um homem bonito, com patilhas e bigode, ar de engatatão, camisa florida, tudo tão na moda no final dos anos 70. 

Na época, abrir o vidro do carro e lançar palavras de charme, mesmo de teor picante, às mulheres que passavam, não só era consentido como tido por um comportamento masculino normal, viril até. 
Mas ele deixava-me conduzir até à Costa da Caparica, para ver o mar, e eu, naturalmente, ficava muito feliz. No fundo, dávamo-nos bem e éramos cúmplices.

Era a minha aula extra, que ele não consentia a mais ninguém.

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Chacina animal



Numa montaria, eufemismo cujo significado real significa extermínio organizado de animais, pouco mais de uma dezena de caçadores, aqui para os lados da Azambuja, em terras ribatejanas, divertiram-se a assassinar, pelo mero psicopático prazer de matar, 540 animais (veados e javalis, entre outros).

Não há palavras, adjetivação, para classificar com a força desejada tamanha selvajaria. O que rareará na mente insana desta gente? Qual o prazer que extraem do ato de matar, sem que a legitima defesa, ou a satisfação da necessidade básica de alimento estejam presentes? 

Não duvido que, caso não existisse punição, ainda maior gozo lhes proporcionaria matar seres humanos - just for the pleasure - atividade amplamente praticada pelos nazis, estalinistas, entre outros, há poucos anos atrás.

Virá o tempo em que a caça, a tourada e toda a sorte de atividades de desrespeito, humilhação, tortura e morte dos animais, será encarada pelas gerações vindouras com desdém e tida como selvática a gente que tais atos praticava.
  
Virá o tempo em que o prazer de matar e/ou torturar animais fará parte do catálogo das doenças mentais, para os especialistas, o "Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders", conhecido familiarmente pela sigla DSM.


domingo, 22 de novembro de 2020

Jerónimo, o Casmurro



A obstinação do Partido Comunista Português em realizar o seu congresso em Loures, um dos concelhos classificados de risco extremamente elevado pelo recente documento governamental, revela uma rara falta de empatia e sensibilidade para com a atual situação que se vive. 

O XXI congresso do PCP vai realizar-se nos dias 27, 28 e 29 de novembro no Pavilhão Paz e Amizade em Loures, distrito de Lisboa e são esperados 600 participantes.

O PCP, pela voz do seu vetusto líder, Jerónimo de Sousa, fala em preconceito e recusa adiar o congresso para "o dia de São Nunca à tarde". O partido defende-se com a velha "teoria da conspiração" - as forças reacionárias, amigas do grande capital e da extrema direita, que se unem para lixar a magna reunião comunista.

Vivemos num sistema político dominado pelos partidos e nem mesmo numa situação de Estado de Emergência, à luz de uma lei dos anos 80, podem as reuniões partidárias serem impedidas. A Lei 44/86 estabelece efetivamente que "as reuniões dos órgãos estatutários dos partidos políticos, sindicatos e associações profissionais não serão em caso algum proibidas, dissolvidas ou submetidas a autorização prévia". 

Mas, para além das leis, que existem sem sombra de dúvida para serem cumpridas, existe algo sem forma escrita ou expressão consuetudinária, que deriva diretamente do bom senso e da adequação às razões e circunstâncias, que se chama razoabilidade, que o PCP, pelos vistos, de todo desconhece.

Os partidos políticos, através das suas representações parlamentares, espelham o sufrágio e a vontade popular que em determinado momento os elegeu. Não é preciso ser-se dotado de visão estratégica ou ser um expertise em Ciência Politica, para concluir que a decisão irrevogável dos comunistas vai ter custos negativos aquando das próximas eleições. 

O futuro terá poucas contemplações para com partidos que continuam a ter relações fofinhas e de amizade fraterna com ditadores que comandam países onde o delito de opinião é punido com a prisão, a tortura e a morte. E líderes como o Jerónimo de Sousa, eivados pelo ódio, constantemente maledicentes, monocórdicos à exaustão e isolacionistas, não vão ter lugar num Portugal futuro. As novíssimas gerações dificilmente entenderão os bafientos discursos deste anoso líder, ainda que em nome de um dos primogénitos partidos do nosso sistema político, a quem o país muito deve no que respeita à conquista e salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias.

Solução: remodele-se a estrutura paleolítica do PCP e convença-se o Jerónimo a dedicar-se a contar histórias sobre as aventuras dos velhos revolucionários aos netos. Já era tarde ou o PCP vai alinhar com o CDS numa fraca expressão parlamentar.

domingo, 15 de novembro de 2020

Leituras de vómito



Escolher entre ler qualquer um destes livros, involuntariamente confinado no meu escritório, como habitualmente faço nestes dias de cárcere, junto a uma janela que coa uma débil luz bruxuleante, neste domingo silencioso e néscio, o céu cinzelado a anunciar chuva, poderia significar ter sido tomado por um caso inusitado de uma qualquer parafilia ou perversão. O masoquismo não se sabe se é um fenómeno primário ou se não resultará de uma transformação do sadismo, mas é seguramente um sadismo orientado para o próprio.
 
Ler Cristina Ferreira, Carolina Salgado ou uma brochura acerca dos desnudados segredos da adaptação do pimba para Ukulele, seria algo parecido a ter um abcesso num dente, uma dor horrível e paralisante, e, com o dedo indicador, pressionar fortemente o inchaço, por forma a aumentar os níveis do meu tormento.

Não me cativa a dor, muito menos a auto-infligida. Infelizmente sei que qualquer um destes dejetos dados à estampa, já tiveram e vão continuar a ter multidões de ávidos leitores, pois a mediocridade, no gosto e no apuro, continua a representar a maioria dos nossos consumidores de livros. A qualidade e o bom gosto praticam-se!



terça-feira, 13 de outubro de 2020

Uma praga de moscas

Tenho a casa cheia de moscas. A principio pensei que podia ter alguma comida em putrefação, algures escondida num canto da cozinha, talvez roubada por um dos meus felinos. Mas não. Nada encontrei.

Mudei as pedras das caixinhas dos animais, higienizei tudo. mas as moscas adentravam-se cada vez mais. Cheguei a pensar que era vítima de alguma praga que alguém me lançara, parecida com uma das dez famosas pragas do Egito, que o Deus de Israel infligiu, para convencer o Faraó a libertar os hebreus maltratados pela escravidão.

Na quarta praga lançada sobre o Egito, o cenário foi muito semelhante ao que se passa pelas minhas bandas: as moscas escureceram o ar e atacaram homens e animais e a terra foi infestada desses insetos. O Faraó, segundo me recordo, concordou em libertar o povo e o Senhor retirou a praga, mas assim que percebeu que a praga havia cessado, voltou atrás na sua decisão, aprisionando o povo hebreu. Era um grandessíssimo filho da mãe.


Apesar desta coincidente parecença com o relato bíblico, achei que estava a efabular e deixei de arquitetar mais patetices. Afinal quem me poderia querer tanto mal a ponto de me lançar uma praga de moscas para dentro de casa? Eu não sou nenhum Faraó e nunca fiz mal a hebreus ou a quem quer que fosse.

Foi então, por mero acaso, que li no "Região de Leiria" que nas últimas semanas os moradores dos Andrinos, não muito longe da minha zona, vivem atolados em moscas. Diz-se que andaram a estrumar terras para as bandas da Ribeira do Sirol, daí a presença horrível desta mosqueira toda. Felizmente, a explicação tinha uma origem racional.

Em tempos idos, tive uma gata cuja especialidade era comer moscas junto às janelas. Tinha desenvolvido uma técnica infalível: apanhavas-as com uma pata que de imediato levava à boca e comia. Mas estes meus três felídeos são uns inúteis e só pensam em ron rons, comer e dormir. As suas capacidades de caça evaporaram-se por completo.

Conclusão. ou começam de imediato a fumigar as terras infestadas, ou fecho as janelas todas de casa e vou estudar um processo de extermínio para esta moscaria, tipo Solução Final. Fica prometido.


domingo, 4 de outubro de 2020

 




Ontem estive a ver na SIC, com alguma atenção, um pouco do programa do César Mourão, que tem feito um grande sucesso televisivo.

Realmente, a vetusta fórmula encontrada pelo apresentador - com a qual o Herman José, seu mestre e comparsa, granjeou bastante sucesso - parece ser o facto de ele ridicularizar, com enorme alarde, mas sem galhardia, pessoas com fraquissimas competências educacionais, algumas repletas de ingenuidade. A tarefa consiste em procurar os melhores cromos da tribo, onde o programa vai ter lugar, os mais risíveis e que possam trazer o gáudio do público, ávido por espernear-se de riso perante o ridículo alheio. Mas o mais cruel, aquilo que verdadeiramente me indignou, foi o facto de estas pessoas, com uma satisfação quase sinistra, se voluntariarem alegremente para servirem de repasto ao sucesso do presuntivo comediante.

O Mourão arrecada os louros da vitória televisiva, mensurado pelas audiências, fingindo que acha muita piada aos dislates de gente com parcos recursos de instrução escolar, expondo-os ao ridículo, tarefa que eles próprios aplaudem, sentido-se pateticamente estrelas em noite de ribalta.

Goste-se ou não do programa, a verdade é que esta forma de fazer humor resulta sempre eficaz: expor as miudezas das criaturas mais caricatas entre a massa popular é sucesso garantido.

Para não ferir suscetibilidades, nada como fingir doçuras, carinhos e cumplicidades identitárias com a arraia miúda. E nisso o Mourão é mestre. Tudo isto é televisão, audiências, dinheiro e o César faz parte da maquinação.

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Trabis



Em 2009 estive em Desden, situada nas margens do Elba, junto à fronteira com a República Checa, cidade massacrada pelos bombardeamentos aliados durante a II Guerra Mundial, que, em três noites, tiraram a vida a mais de 25.000 pessoas, na sua maioria idosos, mulheres e crianças.

Para além da enorme beleza paisagística - após o intenso bombardeamento, restaram incólumes poucas das suas pérolas arquitetónicas - a cidade distingue-se pelos seus célebres museus de arte e pela arquitetura clássica da cidade velha, entretanto reconstruída.

Há 11 anos atrás, ainda pude ver as crateras deixadas pelas bombas de fragmentação e fósforo largadas pela RAF e a azáfama da reconstrução em curso de vários edifícios. Falei com pessoas idosas - eram crianças quando a tragédia aconteceu - e pude escutar na primeira pessoa relatos assombrosos de milhares de pessoas queimadas vivas.

Foi em Dresden que, pela primeira vez, vi vários "Trabis". Outrora a cidade pertencia à DDR e o Trabant, pelo seu preço, era o automóvel mais popular entre os habitantes da Alemanha Oriental.

Os Trabant foram produzidos em Zwickau, na antiga DDR, entre 1957 e 1991. Após a queda do Muro de Berlim, em 1989, os "Trabi", como carinhosamente foram apelidados, tornaram-se, mais do que um ícone, um símbolo automobilístico da antiga Alemanha Oriental, representando a clivagem entre a tecnologia ocidental e o obsoletismo dos países satélites da antiga URSS.

Hoje, para meu grande espanto, aqui na cidade do Lis, deparei-me com dois Trabant 600, com matrículas búlgaras, resplandecendo ao sol. E recordei a visita à lindíssima cidade de Dresden, nas margens do Elba, onde um dia conto voltar.


terça-feira, 7 de julho de 2020

Morte às touradas!



Assisti recentemente ao debate entre o Miguel Sousa Tavares e a deputada do PAN Inês Sousa Real, sobre a questão do financiamento público das touradas. É hoje que a Assembleia da República vai votar cinco projetos-lei, que pretendem terminar com o financiamento público aos espetáculos tauromáquicos. Virá o tempo em que se sufragará a abolição deste inominável espetáculo; e espero estar vivo para assistir a esse momento glorioso, onde a paixão pelos animais e a plenitude dos valores humanistas pugnará finalmente na nossa sociedade.

Admiro o MST como escritor, aliás, li praticamente todos os livros que escreveu e que muito me inspiram no que à arte da prosa respeita. No entanto, e porque "não há bela sem senão", o homem não deixa de ser uma besta. Uma besta insensível, passo a redundância (haverá bestas sensíveis como na "Bela e o Monstro"?), que se pauta por valores marialvas, aplaude tradições sádicas, como a tourada e pratica a caça como atividade desportiva. E para sustentar os seus inconfessáveis gostos, usa argumentos incríveis e tece comentários patéticos, tais como: " para quando proibir os passarinhos nas gaiolas?".

Sou absolutamente contra as touradas e entendo que nem todos os aspetos culturais sejam recomendáveis. A tourada não é cultura, quanto muito uma cruel tradição. A prática de espetáculos ou desportos que envolvem atos de crueldade assumidos sobre pessoas ou animais são, na verdade, reprováveis.

Crueldade tamanha é retirar o touro do seu habitat, enfia-lo numa camioneta durante horas (onde perde 10% do seu peso), ficar fechado outras tantas horas numa praça de touros, ver as pontas dos seus chifres serem serradas a frio, ser picado, torturado e depois ser lançado numa praça, para gáudio de uma minoria aos berros que se entusiasma de cada vez que um ferro, ao som de música da morte, lhe perfura a carne. Isto sim é barbárie! E doentes são tanto os tauricidas como as pessoas que rejubilam com o sofrimento atroz do animal.

No caso da tourada, o que está em causa é o reconhecer que se trata de um espetáculo em que os animais são forçados a entrar e torturados sem qualquer motivo lógico e racional. Por isso, espero ver esta prática desaparecer a breve trecho e que, ainda por cima, vive à conta dos dinheiros públicos, dos cofres dos municípios e da RTP que transmite e promove estes espetáculos em horário nobre.

Se os contribuintes não pagassem através dos seus impostos a tauromaquia, possivelmente ela já teria desaparecido. Aliás, o Estado não pode nem deve patrocinar qualquer tipo de violência, seja ela de que índole for.

Quanto aos que vivem da tortura dos animais, que se dediquem a práticas mais saudáveis e, já agora, mas úteis à nossa sociedade.

Acabámos com a prática de os cristãos serem mortos nas arenas, banimos os sacrifícios de pessoas, as caças às bruxas, as mortes na fogueira, a tortura, a pena de morte, a caça aos elefantes, aos leões, às baleias, aos golfinhos, protegemos espécies em vias de extinção, lutamos por um ambiente sustentável e um mundo melhor, onde a tourada e quejandos não tem lugar civilizacional. Virá o dia!

Esteve muito bem a Inês Sousa Real, mulher inteligente, escudada em argumentos sólidos e racionais, que aguentou estoicamente os useiros e despatriados argumentos do marialva Sousa Tavares, que deve a brutalidade da sua personalidade ao falecido progenitor e a mestria na arte de escrever à doce Sofia de Mello Breyner que, se fosse viva, sentiria certamente vergonha de ver o seu filho defender tão bárbaro espetáculo.

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Um dia como outro qualquer

A caminho do ginásio, de mota, como eu gosto sempre de andar, seja verão ou inverno, paro para beber café no estabelecimento do costume. Lá dentro, as máscaras vão-se aligeirando, e, mais do que os cuidados reais para manter distâncias físicas profiláticas, cumprem-se a custo rituais, com pouco desvelo que a situação sanitária ainda requer.

Lembro-me quando cumpria o serviço militar em Mafra, um oficial instrutor, veterano das matas da Guiné, nos ter dito: "Passávamos por aquela picada todos os dias, com as armas atestadas e em posição de tiro, como mandam as regras militares em tempos de guerra, mas nunca acontecia nada. Aos poucos, fomos afrouxando a guarda. E foi num dia em que passámos por lá todos em alegre risada, como se fossemos num mero passeio pelo campo, que fomos emboscados. Morreram 9 camaradas em poucos minutos."

Depois de saborear o gostinho saboroso do café, retomo a marcha na direção do ginásio. Opto sempre por caminhos secundários para melhor apreciar e sentir a relação dos diferentes planos sensoriais. Está um dia lindo e solarengo. Sob os muros das vivendas, pendem lilases, açafrão, tulipas e outras flores primaveris cujo nome não reconheço. As borboletas revolteando por aqui e por ali e o pólen que paira na atmosfera, compõem o resto do cenário. Sopra uma ligeira brisa que não sei de onde vem, mas que ergue algumas folhas cor purpura caídas no chão. 

No ginásio, os procedimentos logo à entrada são rigorosos. Temos de nos borrifar, no sentido mais literal da palavra, desde os sapatos até às mãos. Não há contato físico com o rececionista. O diálogo tem lugar sempre com a máscara colocada e através de uma placa de acrílico, objeto que se tornou usual em quase todos os estabelecimentos. Lá dentro, procedimentos semelhantes: borrifar as máquinas e os halteres, antes e depois de cada utilização, e manter uma distância de 2 metros dos outros utentes. Os balneários não funcionam. Dizem que o vapor quente favorece a propagação do vírus e por isso vamos todos terrivelmente suados para casa. No final, sem poder tomar banho de imediato, regresso pelo mesmo caminho, não sem antes parar no supermercado para comprar almoço.

A entrada do ano 2020 foi para todos inesperada. Dir-se-ia que a realidade que atualmente se vive ultrapassa o melhor argumento de qualquer filme de ficção cientifica. Mas a primavera corre imparável os seus ritos e, já de regresso, imerso em pensamentos, na vastidão azul do céu, vi passar um avião que deixou um lastro branco como fora um desenho feito por uma criança. Por momentos, inebriado, desviei os olhos da estrada, mas ainda a tempo de me desviar de uma árvore enorme que verdejava o caminho. Não estava para acontecer e não aconteceu.







segunda-feira, 20 de abril de 2020

Iliteracias



As redes sociais foram um fenómeno que nos permitiu ter acesso a conteúdos que, de outra forma, seriam muito difíceis de ter conhecimento. Mas a verdade é que muitas pessoas não estão ‘educadas’ para saberem estar na Internet no geral e nas redes sociais em particular.

Em declarações feitas no decorrer de um evento no qual Umberto Eco recebeu o título de doutor honoris causa em comunicação e cultura, na Universidade de Turim, o escritor italiano de renome, também conhecido por criticar o papel das novas tecnologias no processo de disseminação de informação, é da opinião que as redes sociais dão o direito à palavra a uma “legião de imbecis” que, antes destas plataformas, apenas falavam nos bares, depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade.

Segundo Umberto Eco: “Normalmente, eles (os imbecis) eram imediatamente calados, mas agora têm o mesmo direito à palavra que um Prémio Nobel”.

Acho profundamente antidemocrático o pensamento do reputado escritor, uma vez que deixa no ar a insinuação de que o acesso ao espaço cibernético deveria ser restrito a elites. Tal é de todo intolerável. O acesso universal à comunicação é um beneficio do qual ninguém pode ser excluído, ainda que daí possam advir efeitos perversos, tais como as fake news e outras formas de contra informação, nas quais a disseminação da ignorância se insere.

Mas, em contrapartida, vivendo nós na era da comunicação, acessível a qualquer um, já não servem as desculpas de que a educação é privilégio dos afortunados e que o analfabetismo é a má sorte de uns tantos. Se no passado tal desculpa servia nos ajustes, face às paupérrimas condições de vida de uma parte substancial da população, hoje só é iletrado e ignorante quem, por escolha própria, valora outras realidades que não o enriquecimento educacional.

Das escolhas que fazemos na vida, somos inteiramente responsáveis e temos de aceitar a consequência disso mesmo.

É triste constar que imensos adultos jovens, com idades próximas dos 30 anos, vivem numa realidade onde a completa iliteracia e o desconhecimento de quaisquer factos que não estejam conectados com o universo futebolístico, as novelas, as músicas rap, os telemóveis, as novíssimas unhas de gel, e quejandos, é o único integrante do seu quotidiano.

sábado, 28 de março de 2020

Em nome da minha higiene mental




Desço até às garagens, depois de ter colocado luvas descartáveis e ter vestido o meu kispo quentinho forrado a penas. Abro o portão da minha box e retiro a mota para o lado de fora. São 18h30 e o sol quase desapareceu no horizonte, para dar lugar ao crepúsculo que anuncia a chegada da noite. Um frio insidioso faz-se sentir quando abro o portão principal.

Puxo o fecho eclair até à linha do pescoço e uno o velcro que me torna imune à baixa temperatura provocada pela deslocação do ar. Sigo devagar rumo ao centro da cidade que dista a 1700 metros.

As ruas estão praticamente desertas e, à parte um pedestre, carregado com sacos de compras, ou um desportista solitário, não se avista ninguém. Todos os estabelecimentos, com exceção de uma ou outra papelaria, farmácias, lojas da Vodafone, supermercados e um único café, estão encerrados. O percurso Polis, por excelência o passeio para lazer e desporto dos leirienses, encontra-se vedado com fitas que dizem "Policia de Segurança Pública".

Estaciono mesmo defronte do único café aberto no centro da cidade. À porta, o proprietário mandou colocar mesas alinhadas que impedem as pessoas de entrar no estabelecimento. Só é atendido um cliente de cada vez e tem de consumir no exterior. Uma funcionária de nacionalidade brasileira pergunta-me: " O que você quer moço?". Digo-lhe que quero um café. Pergunta-me se tenho dinheiro trocado ou qual a quantia que tem de dar de troco. Respondo-lhe que pago com um euro. Deixa-me o café em cima de uma mesa e o respetivo troco.

Nestes tempos de peste negra, com um epíteto diferente, o outro é o nosso potencial inimigo. Voltámos aos receios medievais. Apercebo-me do cuidado que a funcionária manifesta para não se aproximar demasiado de mim, como se eu fosse repugnante, mas encaro o gesto com a naturalidade que a situação merece. Tornámo-nos repulsivos para os nossos semelhantes, essa é a verdade.

Vou beber o café sentado na mota. Levanto a viseira, nunca tirei o capacete da cabeça, e bebo aos sorvos o café amargoso, servido num ordinário copo de plástico - que até há bem pouco tempo atrás seria pouco recomendável em termos ecológicos. Entretanto, um ciclista pára e também se dirige ao estabelecimento. Não há mais ninguém. Só o silêncio e a noite que engole a cidade.

Sentado na mota, olho por momentos o meu rosto no espelho retrovisor e cogito acerca da relatividade das coisas, e em como as circunstâncias podem mudar a nossa forma de pensar. Sempre achei ridículos os casais de meia idade que estacionam o automóvel na marginal da Nazaré, nas tardes invernais de domingo, voltados para o mar; e ali ficam uma boa parte do tempo sem dizer nada um ao outro, muitas vezes dormitando. Depois, acordam, sobressaltados com as horas que passaram, e, cumprido o sedentário passeio, nos assentos do automóvel, voltam para casa. Este meu passeio é muito mais vácuo do que os cochichos dos velhotes na marginal da Nazaré, no entanto é para mim uma higiene mental de quase sobrevivência.

Regresso à consciência. Meto-me na mota e vagarosamente rumo a casa, tomando o caminho mais distante, como se quisesse retardar o regresso ao confinamento que me espera, do qual os meus gatos não se queixam, pois estão no seu mundo querido, naquele que os conforta e que bem conhecem. Na minha zona de conforto, têm de fazer parte as quebras, ainda que ligeiras, desta rotina pastosa e doentia que parece não ter fim.

Estou de volta à garagem. O ponto de partida e chegada desta curta viagem de menos de uma hora. Arrumo a mota, fecho o portão e meto-me no elevador. Em casa, descalço as luvas descartáveis e lavo as mãos vigorosamente enquanto canto mentalmente duas vezes a canção "Yankee Doodle".

Em casa, basta ligar o computador ou a televisão, para ser inundado com más notícias que não cessam, números aterradores de mortes um pouco por todo o mundo. O universo dos filmes catástrofe, com vírus à solta e a potencial dizimação da população mundial, ganha vida. A até então ficção é afinal a antecipação de uma negra realidade. Espero que este filme (irr)real tenha um final melhor.

Dizem que é bom manter o máximo possível as rotinas quotidianas, para transmitirmos a nós mesmos sinais de alguma tranquilidade, mas em nome de uma quebra salutar, amanhã provavelmente repetirei, por outros caminhos, esta minha curta saga motociclista.

Agora posso voltar ao "meu" Gabriel Garcia Márquez, pois já dormitei um pouco sentado na minha mota junto ao mar da Nazaré.

terça-feira, 10 de março de 2020

Memórias da avó Joaquina



A minha avó Joaquina nasceu no ano de 1900 e contava-me muitas memórias da sua infância, tais como: o assassinato do Rei. D. Carlos e do príncipe real D. Luís Filipe de Bragança, ocorrido no Terreiro do Paço em 1908, acontecimento que muito a comoveu, pois era uma admiradora incondicional da beleza do príncipe, que via nos muitos postais ilustrados da época.

Também me falava dos gaseados que retornaram a Portugal, após a campanha na Batalha de La Lys, durante a I Guerra Mundial; e muitas vezes, para repreender os netos, usava a expressão: " Está quieto! Parece que estás gaseado!".

Ao que parece os gases afetavam gravemente todo o sistema neurológico dos atingidos, provocando comportamentos muitas vezes anormais, daí a vulgarização da expressão.

Recordo-me particularmente dela falar das vítimas do Tifo e da Gripe Espanhola, também apelidada de pneumónica, que a partir de 1918 tomou forma de pandemia, disseminando o vírus influenza, que se espalhou por quase toda a parte do mundo, vitimando entre 50 a 100 milhões de pessoas.

Lembro-me de ela relatar histórias de pessoas que eram enterradas à pressa, com medo da disseminação do vírus, e acordavam nos caixões, com carradas de terra em cima. Acabavam por morrer por asfixia, claro está. Quando se escutavam barulhos estranhos durante a noite, relatados pelos coveiros que pernoitavam nos cemitérios, aos quais se atribui alguma credibilidade, desenterravam os corpo e, não raro, eram encontrados defuntos com as unhas cravadas na tampa do caixão ou voltados ao contrário.

A minha avó Quina era particularmente mórbida. Era adepta incondicional de funerais e não falhava um que acontecesse nas redondezas. Pedia a Deus muitas vezes que a levasse (durou até aos 93 anos!) e efabulava o cenário do seu próprio funeral e da roupa que gostaria de trajar. Foi certamente por sua influência que também eu ganhei um certo gosto pelo mórbido, levando-me inclusive a fotografar funerais.

Mais tarde, um pouco mais crescido, relembrei-me das histórias da minha avó e a curiosidade fez-me ler algo mais sobre estes factos. Sabendo da sua propensão para a morbidez, quis certificar-me da veracidade dos seus relatos e pude constatar que tudo aconteceu como ela contava.

A minha prima, Paula Arocha, companheira dos melhores momentos da minha infância, certamente se recorda de, no quintal da casa onde ela morava, fazermos funerais, com coroas de flores e cruzes de madeira, e nos postarmos a rezar pela morte de um presuntivo falecido primo. Isto até a avó Quina ir à varanda, deparar-se com o sinistro espectáculo no quintal e quase desfalecer.

A pneumónica, apelidada de Gripe Espanhola, curiosamente não surgiu em Espanha, mas este país, uma vez que não participou na I Guerra Mundial, não censurava as noticias e divulgou os milhões de infetados por todo o mundo. Alguém se lembrou, provavelmente um jornalista, de inventar o epíteto "Gripe Espanhola".


A história da humanidade está repleta de epidemias e pandemias, mas a nossa curta memória e especialmente o incremento sensacionalista dos media, faz-nos recear o Covid-19 mais do que outras virulências bem mais mortíferas que devastaram milhões de vidas. Malthus, sinistramente, defendia a necessidade das pandemias e das guerras, como um bem-vindo controlo populacional. Mas não cheguemos nós a tanto.

sábado, 29 de fevereiro de 2020

Karamba!


Raro é o dia em que estaciono o carro em alguma rua da cidade e não encontro no pára-brisas um papelucho qualquer. Umas vezes é um sucateiro, ajuizando ser o meu automóvel candidato a um dos artigos que vende, que se oferece como comprador do mesmo; outras vezes, na sua maioria, são panfletos de publicidade, sendo por mim mais odiados, os dos videntes que anunciam possuir a cura para todos os males.

Estou farto destes "professores" Karamba, Karajali, Mamadu, Banora, Fofana, Samba, Karrassa e Salimu, dos "doutores" Sídia e dos "mestres" Cardri, Kaba e Bangal, que se dizem astrólogos, médiuns e videntes africanos, dotados de sortilégios de feitiçaria, capazes de sanar todos os males com resultados garantidos.

Impotência sexual, doenças de todo o tipo, mau olhado, invejas, falta de dinheiro, amores não correspondidos, tudo cabe no seu cardápio.

Triste realidade é a que de facto existem pessoas, seja por ignorância extrema, imensa vulnerabilidade, ou desespero limite, que gastam fortunas, por vezes até a exaustão dos recursos próprios e/ou alheios, na esperança de ver os seus problemas resolvidos. 

Quando a racionalidade vacila e a pouca sorte toma conta da vida das pessoas, especialmente as menos instruídas, com um maior grau de exposição à manipulação, facilmente cedem à fantasia de que a solução dos seus problemas reside algures no irreal. E é aí que esta cáfila de feiticeiros parasita, para ganhar a vida à custa do sofrimento e da desesperança dos incautos.

Estes "videntes" africanos não diferem, na sua génese, das seitas que pulsam por todo o país, prometendo milagres a quem lhes fizer oferendas em dinheiro. Ao abrigo da liberdade de expressão e do culto religioso, a sociedade laica não pode reprimir a existência destes flibusteiros, reis do engano e da manipulação, sob pena de coartar direitos constitucionalmente garantidos e poder abrir graves precedentes. Mas a fronteira entre a publicidade enganosa, conducente a graves lesões no património e saúde das pessoas (que pode ser sancionada penalmente) e a liberdade de expressão religiosa e de adesão a tais grupos e/ou pessoas, é ténue. Por vezes só casuisticamente se pode aferir quais os direitos que carecem de proteção e justificam o sacrifício de direitos com menor tutela jurídica.

A simples constatação de que estes indivíduos, sejam particulares ou organizações, existem e prosperam, é por si só alarmante. Se estão atuantes e se publicitam este tipo de serviços é porque existe demanda. É confrangedor é a existência, no Portugal do século XXI, de pessoas que ainda recorrem a este tipo de expedientes, como solução para os seus problemas e, como carneiros a caminho do matadouro, placidamente lhes entregam tudo o que têm.

sábado, 18 de janeiro de 2020

Élio Isidoro Catalão Marofas


Élio Isidoro Catalão Marofas abominava o seu nome. Nunca se conformou com a bizarria que aflorara a mente da sua mãe, aquando do momento do seu batismo, que se lembrara de o presentear com tal graça. Há muito tempo que sentia bastante desconforto, associado a uma sensação de cansaço, falta de energia e vitalidade, para realizar as suas atividades habituais. Quando lhe perguntavam o que se passava, respondia que não era capaz de explicar. Mas não se sentia bem. Desde há um tempo, começara a colecionar objetos antigos e apenas se interessava por discussões e leituras sobre o tema. Comummente, em conversas entre amigos da sua geração, recordava a sua infância e juventude e os produtos culturais da época, os tempos em que fora realmente feliz. Entabulava este tipo de conversas como uma forma de escapismo e o presente pouco lhe interessava. Os outros escutavam-no, sabendo-o um bom orador e peroravam para que continuasse. 

A saudade é o que fica daquilo que partiu, dizia ele, daquilo que já não é mais. Saudade é ausência, é o sentimento de vazio que fica daquilo que se foi. Mas às vezes, a saudade é um vazio tão grande que ocupa muito espaço dentro do coração, e aperta tanto o peito que acaba transbordando e escorrendo pelos olhos. São as lágrimas, o líquido precioso que escorre em abundância. Dizem que a palavra saudade, bem portuguesa, não tem tradução noutras línguas. Eu concordo em absoluto. Há quem diga que é sinónimo de nostalgia, mas, no rigor dos termos, não é verdade. Nostalgia representa mais uma sensação de saudade idealizada, por vezes irreal, por momentos vividos no passado, associado a um desejo sentimental de regresso. A idade traz-nos a saudade dos momentos vividos na nossa juventude, quando ser feliz era fácil com tão pouco e tudo era uma descoberta. 

E o presente, a esperança, Marofas? – Perguntavam-lhe os amigos. 

O presente é para mim uma espera por nada, uma delonga desnecessária, acrescentava ele. Toda a minha vida boa se desenrolou no passado. O que se passa agora já não me diz respeito. Limito-me a sobreviver. Camus dizia que toda a infelicidade dos homens nasce da esperança. A esperança é o começo da morte. A minha infelicidade começou quando cresci, quando perdi a inocência das coisas. Se não esperançarmos não nos faremos infelizes. E é possível viver num mundo que existe apenas dentro da nossa mente, alheios ao que nos rodeia no exterior. Num certo momento da vida, não é a esperança a última a morrer, mas a morte é a última esperança. 

E porque não te matas, Marofas? Porque não colocas um ponto final nesse teu atroz sofrimento de viver? – Perguntavam-lhe os amigos. 

Porque não tenho a coragem de ser coerente a despeito de estar ciente desta forma de pensar, dizia ele. 

As conversas decorriam habitualmente à mesa de um café, cercados pelo ruído provocado pelas vozes dos clientes e do trânsito que corria incessante na avenida principal. As palavras de Marofas soavam a um longo solilóquio. Uma espécie de declamação subjetiva que não incitava à participação dos outros tertulianos. 

Já tinha passado mais de um mês desde a sua última preleção. Na mesa do costume, a mais perto da porta de saída, os convivas habituais estavam quase todos presentes. Comentava-se, ainda, a tragédia. A coragem, infelizmente, surgiu-lhe. A necessidade de buscar a morte como um refúgio para um sofrimento que se lhe tornara insuportável. Um mergulho para o nada. Ainda custava a acreditar. Élio Marofas ingerira mais de 100 comprimidos de Orfidal, uma benzodiazepina que proporciona relaxamento muscular, sedação e efeito tranquilizante. Encontraram-no, passadas duas semanas, morto, na cama, meio despido e em adiantado estado de putrefação. 

À mesa, nesse dia, todos os restantes tertulianos concordavam que a esperança corresponde à aspiração de felicidade existente no coração de cada pessoa e que quem perde a esperança mais profunda, perde o sentido da sua vida; e sem esperança viver não tem sentido. Faltava, no entanto, alguém com poder oratório capaz de verbalizar esse ensejo por todos partilhado e de sustentar com firmeza essa tese. Todos concordavam que ao Élio tinha faltado a esperança e uma eventual vacina contra o desânimo, capaz de lhe fazer desejar viver e esperar a felicidade. A necessidade da esperança era um dogma por todos aceite, bem como a validade do ato de viver. A pergunta surgia então como inevitável: haveria algum deles, em algum momento, capaz de verbalizar tão bem quanto o Élio este sentimento por todos partilhado? Ou seria fatalmente necessário ser-se como ele: deprimido, desesperançado e nostálgico, para possuir a verve necessária à boa prosa das palavras certas e incertas?





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