sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

A rua é a nossa casa


Leiria. Uma manhã friorenta, apesar do céu azul e do sol faiscante. O mercado está repleto de gente. Os pregões das ciganas estiolam o ar: " Uma nota de dez euro, uma nota de dez euro! É pr'á cabar! Vamos embora, freguesas! É pr'á cabar o ano!"

É sábado. O facto de ser o último dia do ano é um acaso. Os ritos da cidade continuam iguais aos de todas as vésperas de domingo. A cidade regurgita com pessoas que se movem em todas as direções. Os vendedores ambulantes e as lojas esperam fazer bons negócios.

À beira do Lis, cruzo-me com os habituais corredores, marchantes e passeantes de cães e, junto à margem, observo alguns pescadores, useiros e vezeiros naquelas andanças, que aguardam pacientes que o isco seja mordido.

Mais adiante, depois da Ponte Europa, construída aquando do Euro 2004, sob o viaduto por onde passa o IC2, deparo-me com os vestígios do acampamento de uma grande família de ciganos romenos. Os nossos concidadãos da União Europeia, com o beneplácito das autoridades competentes - em Portugal, e muito bem, não há leis que punam a mendicidade ou o direito a dormir na rua - fizeram do local sua moradia temporária. Diz-se que são nómadas e, como tal, é impossível colocá-los em albergues temporários ou casas de acolhimento, pois contraria a sua opção sublime de vida.

As pessoas passam indiferentes e eu sou a única ave rara que se presta a fotografar e indignar.
Avisto um carro de bebé, roupas de criança estendidas ao sol, muitas mantas e agasalhos diversos, carroças de animais, tudo rodeado por uma imensidão inestética de lixo e dejetos. Vou fotografando e pensando.

Será que os direitos destas crianças a ter uma infância condigna e cuidados de saúde primários, não serão mais fortes do que a opção tomada pelos seus progenitores e que as atinge? Creio que sim.
Será que durante a noite, com temperaturas quase negativas, condições de salubridade nulas e alimentação deficiente, não há um favorecimento doloso do perigar da saúde e da vida destas crianças, a quem não é permitido tomar outras opções? Creio que sim. O que faz o Estado? Nada. O que dizem as leis sobre isto? Dizem muita coisa.

Um pouco por toda a Europa, as leis que visam punir os sem-abrigo por estes viverem na rua estão a multiplicar-se. Ou são passeios que ganham “obstáculos” que os impedem de ali permanecer ou são multas e penas de prisão, bem ao jeito americano, país com tradição neste tipo de abordagem. De forma gradual, alguns países europeus começam a seguir esta tendência. Todavia, também existem novas e honrosas excepções, nas quais Portugal está incluído.

Proliferam as notícias sobre nações que tomaram medidas chocantes de criminalização dos sem-abrigo, penalizando aqueles que fazem da rua a sua casa (como se viver desta forma não fosse uma sanção suficientemente forte). Estas estratégias estão a ser adotadas por governantes de alguns países, que pretendem “mascarar” as cidades, tornando-as aparentemente mais “limpas”, mas que não resolvem o problema da mendicidade.

Questionar estas medidas é pertinente, tendo em conta que uma das principais consequências da crise é precisamente o aumento da pobreza, e que a rua é um destino comum a um número crescente de pessoas que deixaram de poder pagar as suas contas. Esperava-se, desta forma, que os governos estivessem mais sensibilizados e disponíveis para dar apoio aos mais carenciados, e não o oposto.
Pergunto: como e por que motivo é que estas normas são aprovadas, numa Europa aparentemente civilizada e que respeita os direitos humanos, fazendo deles tantas vezes uma bandeira?

No que concerne aos ciganos romenos, que por livre e espontânea vontade, decidiram que a rua é o seu teto eterno e renegam acolhimento, desde que: não sujem o espaço público; não invadam propriedade privada; não obriguem crianças a partilhar os seus ritos; não poluam o meio ambiente, mormente os fluxos de água e os solos; e, por último, não infrinjam normas legais, tudo o mais lhes deve ser permitido. O que restar, obviamente.

Penso eu de que...

Leiria, 31 de dezembro de 2016

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Solex



Quando hoje penso nas Solex, umas bicicletas com motor auxiliar na roda dianteira, quase sempre de cor preta, originalmente produzidas em Courbevoie, França, por uma empresa com o mesmo nome, o meu imaginário invariavelmente navega até os episódios burlescos dos filmes de Jacques Tati. Em especial, detenho-me na cena inicial de “Mon Oncle”, de 1958, onde Mr. Hulot surge, risível, montado num desses ciclomotores.

Conheci as Solex em Almada, nos anos 60, ainda eu era uma criança. Importadas de França, eram possuídas apenas pelos filhos dos paizinhos endinheirados e faziam as delícias e, naturalmente, a inveja dos restantes jovens, que sabiam de antemão jamais poder usufruir de luxos iguais. Ser proprietário de uma Solex e ir para a escola montado num desses ciclomotores, gerava ondas de admiração e suspiros nas camadas femininas que ansiavam por “dar uma voltinha”.

Mais tarde, já nos anos 70, haveriam de surgir os ciclomotores “Honda Amigo” e “Maxi Puch”, bastante mais evoluídos e prenunciadores das motorizadas, já sem pedais e com bastante mais potência e perigosidade.
 
Em 1977, fui um sortudo possuidor de uma Casal de 5 velocidades, a minha primeira motorizada, na qual percorri milhares de quilómetros e que deu inicio à minha paixão pelos veículos de duas rodas, gosto que mantenho até aos dias de hoje.
 
Já nessa época, somente quem tinha Honda, Yamaha ou Suzuky, geralmente motorizadas com motor a 4 tempos e de qualidade de construção inegavelmente superior, granjeava algum estatuto e popularidade. Os restantes, os proprietários das Casais, Sachs e Zundapps, com motorização a 2 tempos, barulhentas, a babar óleo e aparentadas com as motorizadas dos aldeões (que ainda hoje circulam no Portugal profundo), eram muitas vezes motivo de achincalhamento.

O Ter foi sempre uma marca de diferenciação e de estatuto – o Ser pouco importava – e creio que a minha primeira consciência de classe deu-se precisamente por estas alturas: havia os que tinham Hondas e Yamahas, os que tinham Casais e Sachs ou Zundapps e, finalmente, os que nada tinham. Os do meio invejavam os meninos- bem das Hondas e os da base da pirâmide invejavam todos. Desde então o mundo não mudou nadinha.


quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Sobre a felicidade



Atrevo-me a dizer que toda a gente, alguma vez na vida, já foi amada. Na infância, na adolescência, na idade adulta, no liceu, na Universidade, ou até mesmo no envelhecimento, uma mãe, um pai, uma avó, um filho, uma filha, um homem, uma mulher, alguém se cruzou ou se manteve por perto, provavelmente, e amou-nos bem. É, no mínimo, uma atitude de presunção agastada querer receitar a felicidade como quem desfolha as páginas do Pantagruel, e nele encontrar mil e uma formas de fazer bolinhos de felicidade e alegria esfuziante.

O segredo da felicidade é um segredo de Polichinelo – aquela personagem clássica da Comédia Dell’arte, das farsas napolitanas e dos teatros de marionetas. Corcunda, barulhento e quezilento, é a figura do bobo da corte, sempre desbocado, dizendo o que deve e o que não deve num tom jovial e folgazão. Os segredos de Polichinelo são por isso a fingir. São farsas dos verdadeiros segredos, que, para que o sejam, devem permanecer ocultos, escondidos, indecifráveis. Qualquer segredo partilhado, ainda que não transborde uma geografia restrita e nunca chegue à praça pública, perde o essencial da sua razão de ser. Quando se partilha um segredo, alivia-se a carga, descarrega-se o peso de se ser, ou de se julgar ser, o único que sabe ou conhece aquela coisa, que é sempre terrível e oprimente, que delata alguém ou repõe uma verdade escamoteada. Entre o peso dos que contêm e se contêm de mais e a leveza dos que deixam escorrer palavras que despem a alma, deve haver uma justa medida para o que se mostra e para o que se esconde.

A felicidade depende, em parte, de condições interiores e, em parte, de condições exteriores. Todas as pessoas que gozam de boa saúde e podem satisfazer plenamente as suas necessidades julgadas elementares, à partida, deveriam ser felizes. Acontece que as coisas não se passam bem assim. A felicidade, nos humanos, é uma coisa muito rara, ao menos como estado permanente. Os animais são felizes desde que tenham boa saúde e bastante comida. Tem-se a impressão que os seres humanos deveriam sê-lo em iguais circunstâncias, mas tal não sucede. Creio que a maior fonte da infelicidade reside no desamor, nas ideias erradas que se tem sobre o mundo, erradas éticas, errados hábitos de vida que provocam a destruição desse gosto natural e desse apetite pelas coisas realizáveis de que depende afinal toda a felicidade.

Uma das principais causas da falta de gosto pela vida é o sentimento de não ser amado, ao passo que, inversamente, o sentimento de ser amado encoraja mais do que qualquer outra coisa. Por variadas razões, um homem pode, por exemplo, considerar-se uma criatura tão horrível que julgue inadmissível alguém amá-lo; pode também ter-se acostumado na infância a receber menos afeto do que as outras crianças; e pode na realidade ser uma pessoa de que ninguém goste. Mas neste último caso a origem do mal reside provavelmente numa falta de confiança em si próprio motivada por precoces infortúnios. O homem que não se sente amado pode tomar, em consequência disso, várias atitudes. Nalguns casos, faz esforços desesperados para conquistar a afeição dos outros, às vezes até por meio de atos excecionais de bondade. Procedendo assim, no entanto, tem poucas probabilidades de êxito, pois a razão da sua bondade facilmente será compreendida pelos que dela beneficiam e a natureza humana é de tal maneira constituída que testemunha afeição com maior felicidade àqueles que parecem pedi-la menos. Portanto, o homem que se esforça por conquistar afeição por meio de ações generosas torna-se um desiludido com a experiência da ingratidão humana. Nunca lhe ocorre que a afeição que procura comprar tem muito mais valor do que os benefícios materiais que oferece em troca e, no entanto, é a consciência dessa verdade que inspira todas as suas ações. Outros homens, ao verem que não são amados, tentam vingar-se do mundo, instigando guerras e revoluções ou escrevendo com a pena molhada em fel. A grande maioria, homens como mulheres, quando sentem que não são estimados, afundam-se num tímido desespero, aliviado somente por fulgores momentâneos.

O mundo é esta amalgama, lugar confuso, onde eu vivo, contendo coisas agradáveis e desagradáveis, em desordenada sequência. É-me, contudo, irreprimível esta conta-corrente de pensamento e reflexão, sobre os fluxos que julgo serem os mais importantes nesta curta experiência de viver; este percurso aleatório – viagem de ida – onde ditados tais como: «A palavra é de prata, o silêncio é de oiro», não colhem em mim o santuário devido. Já se sabe que muito mais difícil do que abrir a boca e soltar o verbo para largar frases feitas, impressões ambivalentes, palavras entre o muito e o nenhum conteúdo é guardar silêncio. Eu encaro o silêncio como uma mera pausa comunicacional, uma forma de pontuar o discurso, de terminar um assunto e partir para outro. Perdoem-me, pois, aqueles que me lêem por ainda não ter terminado este fiar de tomadas de consciência sobre os méritos e deméritos da felicidade mas, mais do que qualquer descoberta alquímica, um dos enigmas mais felizes da vida, reside no facto de encontrarmos todos os dias pessoas a quem tudo o que há de mal parece ter acontecido e, ainda assim, mais do que sobreviventes, são alegres viventes, sôfregos de vida, de bem com ela, e, de caminho, com os outros com quem se cruzam, criaturas de histórias muito banais e acontecimentos quase casuais. São pessoas para quem o caminho do Bem é uma opção consciente. Para quem não entendeu, falo-vos dos meus heróis.

(texto de 2011)


quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Lido por aí: “70% dos internados nos cuidados intensivos em Lisboa não estão vacinados.”



Lido por aí: “70% dos internados nos cuidados intensivos em Lisboa não estão vacinados.”
Os negacionistas, seja a maltinha (sempre) do contra, os que acreditam que nos injectam chips no corpo para nos controlarem, ou que predizem que todos os vacinados têm apenas dois anos de vida, têm direito a existir. A nossa complacência e cultura democrática, que endeusam a liberdade de expressão como um Direito Fundamental, permitem o livre arbítrio no exercício da estupidez (ainda não foi proibida) e da ignorância superlativada.

Invoca esta gente que o direito de não ser vacinado é um Direito Fundamental. Na verdade, a recusa de tratamento médico fundamenta-se na liberdade de consciência, de religião e de culto, bem como na salvaguarda da integridade física e moral, todos considerados Direitos Fundamentais pela Constituição da República Portuguesa. Também o Código Deontológico da Ordem dos Médicos impõe respeito pelas opções religiosas, filosóficas ou ideológicas dos doentes, garantindo que recebem o tratamento e conforto moral adequados à sua convicção.

Esta disposição foi expressamente pensada para todos aqueles que, por qualquer motivo, não desejam que lhes seja ministrado um determinado tratamento face a uma dada circunstância limite. Todos certamente se lembram dos Jeovás e da sua recusa em receber transfusões de sangue, mesmo em situações que possam implicar a perda da vida.

Na minha ótica, cada um é dono da sua vida, do seu corpo e, em situações extremas, que impliquem doença grave, irreversível e letal, com grande sofrimento, deve poder decidir sobre o seu destino: aceitar tratamento paliativo ou abreviar a vida e morrer com dignidade e mínimo sofrimento.

Uma coisa totalmente diferente é alguém escudar-se nas normas constitucionais que defendem o livre arbítrio, sobre a recusa de tratamento médico ou administração de vacinas, quando essa posição coloca em risco a vida da restante população. O meu Direito cessa quando atinge o Direito do outro: o Direito de não ser contaminado, de não adoecer e de não morrer face à obstinação do outro não se querer vacinar. Não é preciso ser jurista para saber/entender que é desta forma que se deve perspetivar a situação.

Como se não bastasse, a regra elementar de que qualquer Direito cede perante outro Direito mais forte – as situações na lei são imensas e ilustrativas – que raio de justiça é esta que obriga o cidadão vacinado e pagador de impostos a patrocinar os tratamentos médicos dos negacionistas que, entretanto, se infetaram e eventualmente infetaram outros?

Que justiça é esta que permite que os profissionais de saúde deixem de acudir utentes com outras patologias, para tratarem 70% de infetados com Covid 19 na cidade de Lisboa, que se recusaram a ser vacinados?

Quem responderá pelas vidas que se vão perder, pelos tratamentos e cuidados de saúde que deixam de ser prestados, porque os técnicos de saúde estão quase todos mobilizados a tratar os negacionistas?

Em Singapura, quem não se vacinar, caso adoeça com Covid, terá de custear os seus próprios tratamentos, já que o Estado não o fará.

Sou obrigado a usar o cinto de segurança quando conduzo o meu automóvel e, quando ando na minha mota, tenho de usar um desconfortável capacete na cabeça - que me tem levado parte do cabelo. Caso não o faça, as coimas são pesadíssimas. Por que raio não posso partir o (meu) externo ou esmagar a (minha) cabeça, ambos partes do meu corpo e que só a mim dizem respeito, exercendo o livre arbítrio de não me proteger?

A propagação de doenças infeto-contagiosas é um crime punido pelo nosso Código Penal e por isso ainda menos entendo a argumentação dos negacionistas. E o que mais me preocupa é que vejo bastantes pessoas inteligentes, seres pensantes, que continuam a negar a ciência, burilando teses absurdas para justificar o seu Não à vacinação.

A vacinação contra o Covid deveria ser obrigatória e a falta dessa medida já peca por tardia.

Se a nossa espécie ainda não se extinguiu, face à enormidade de vírus e bactérias que nos têm acompanhado ao longo da História da Humanidade, foi precisamente devido aos avanços da ciência e as vacinas têm ocupado um papel crucial em todo esse processo.

Infelizmente, o fanatismo e as crenças absurdas, uma vez instaladas na nossa mente, desafiam quaisquer esquemas lógicos de pensamento e são um convite aos caminhos da irracionalidade. Sempre assim foi e sempre assim será.




segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Ómicron? Chamem o Jack Estirpador!



O Instituto Ricardo Jorge revelou esta segunda-feira que já foram confirmados 13 casos da variante Ómicron em Portugal, em jogadores do Belenenses SAD. Mas o virologista Pedro Simas considera que, dada a elevada taxa de vacinação contra a covid-19 em território nacional, o país está numa situação endémica e não pandémica, pelo que a nova variante não será um problema para o país. O especialista acrescenta que, com o passar do tempo, vão sempre surgir novas estirpes do SARS-CoV-2.

Monsieur de La Palice não teria dito melhor.

A propósito da virulência nos tempos que correm, há especialistas demasiado optimistas, como é o caso do Doutor Simas, outros demasiado pessimistas e ainda os moderados ou prudentes nas afirmações. Para compor o ramalhete, ainda temos comentadores televisivos, sem qualquer preparação sobre o assunto, que todos os dias, em horário nobre, bolsam opiniões e ditam sentenças sobre o estado da coisa.

A Direção Geral de Saúde, agora mais prudente e ajustada, não fora pelo menos isso ter aprendido, já não afirma algo e passados momentos o seu contrário.

Assertivo, ou ajustado, como se prefira o epíteto, seria, outrossim, investigar, constatar e somente depois informar com certeza cientifica a população.
 
Mas acontece que a sede de informar, a necessidade de noticiar, com toda a tramóia de interesses económicos que lhes subjazem, é mais forte do que a verdade e o rigor, que nestes tempos sombrios seriam desejáveis para maior conforto das populações.

Sobre a variante Ómicron, segundo li, a única coisa que realmente se sabe é que é mais virulenta que as demais, mas não necessariamente mais letal, nem tão pouco se sabe se as atuais vacinas são ineficazes perante a nova estirpe. Sejamos prudentes, sim, mas sem perder o tino e entrar em irrealidades.

Todos os anos as vacinas gripais são ajustadas por causa das cambiantes do vírus. Provavelmente vamos conviver com o Covid – recordam o nome de algum vírus ou bactéria que se tenha extinguido totalmente no planeta? – para sempre, torná-lo menos letal, como parte do leque de doenças potencialmente mortais que abreviam a nossa existência.

Quase dá vontade de chamar o Jack Estirpador para nos livrar destas estirpes infinitas, mas afinal vamos todos morrer de alguma coisa. 



quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres



Hoje assinala-se o Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres. Na verdade, todos os dias são comemorativos de alguma coisa e, na falta de um calendário maior, celebram-se vários factos relevantes no mesmo dia; alguns certamente mais importantes e justificáveis do que outros.
 
Não deixa de ser triste constatar que, infelizmente, a violência contra as mulheres, seja no seio conjugal, ou numa relação de namoro, apesar de uma assinalável evolução das mentalidades, proporcionada pela educação e por uma sociedade mais informada, continua a existir.

É, no entanto, sinistro constatar que a violência cometida contra as mulheres acontece quer entre jovens e/ou seniores, sejam pouco ou muito escolarizados, não poupando, na sua transversalidade, qualquer camada sociocultural.
 
Recordo a rocambolesca história de um médico, digno de um remake da novela gótica Jekyll e Mr. Hyde, escrita por Robert Louis Stevenson, figura de proa nos meandros sociais de uma pequena cidade, onde se emproava em cargos políticos ao mesmo tempo que praticava medicina, que sovava a mulher a ponto de um dia lhe ter partido ambos os braços. Esse sociopata, querido e endeusado pela população, figurão mestre em manipulação e embuste, chegava a dar consultas grátis como forma de se promover, com vista a atingir os seus propósitos de ambição pessoal.

O mito da “família idealizada” levou-nos a pensá-la como um lugar de afetos e de expressividade íntima, onde ninguém tinha o direito de interferir: “Entre o marido e a mulher ninguém mete a colher”. Esta idealização associada a outros mitos foi, em parte, responsável pela negligência da gravidade do fenómeno da violência exercida contra as mulheres, considerando-a, muitas vezes, como uma componente normal num relacionamento conjugal.

As nossas sociedades estão repletas de inarráveis crueldades cometidas contra as mulheres e outros membros da família. No nosso país, apesar de se supor que é um fenómeno que afeta inúmeras famílias, só recentemente é que foi colocada de forma evidente na agenda política nacional.
 
Há coisas que, apesar de já contar com seis décadas de existência, ainda me deixam perplexo. Como é possível um homem agredir fisicamente, ou psicologicamente, uma mulher, ainda que um facto grave, que justifique colocar um ponto final num relacionamento, tenha acontecido?
 
As relações amorosas devem subsistir enquanto são motivo de felicidade para ambos os intervenientes e a coragem de as terminar, quando a sua manutenção já não é desejável, não é desonra para ninguém. Assertivamente é mesmo o que se deve fazer, pois o tempo tudo sara.

Ao findarmos um relacionamento tóxico estamos dar, a nós mesmos e ao outro, a oportunidade de um reencontro com a tão desejável paz perdida. Ainda que a encontremos apenas dentro de nós mesmos.



terça-feira, 23 de novembro de 2021

Aniki Bobone

Paula Bobone, em 2017, voltou a lançar um novo livro, "Domesticália". Desta vez, o objetivo é ensinar os empregados a receber, servir e tratar os patrões com bons modos. Bobone defende a importância dos empregados, dizendo que através destes “conhecem-se os patrões”. Se não fosse verdade, eu próprio poderia ter inventado algo do género como piada, mas o humor perde-se na tristeza de uma certeza: existem efetivamente pessoas assim tão grotescas; e, pior do que isso, têm uma corte fiel de admiradores, espaço de antena e gentios que almejam ser como elas - estes proto-seres.




domingo, 21 de novembro de 2021

Maus tratos aos animais



Não é preciso ser psicólogo forense para saber, com fonte em leituras comuns, que existe uma forte conexão entre a psicopatia e a crueldade contra os animais. As pessoas que os maltratam, com uma insensibilidade imensa e desejos de diversão, entre outras perversões, são psicopatas, pese embora (ainda) não diagnosticados e sem rótulo formal.

O perfil psicológico de um agressor de animais está, regra geral, ligado a alguma doença psicológica, já que, como todos sabemos, as patologias afetam gravemente a capacidade de sentir e racionalizar, podendo surgir alguns transtornos de personalidade que induzam o maltrato aos animais.

O psicopata é uma pessoa que tem muitas dificuldades para entender o sofrimento dos demais e, se um ato violento contra outro lhe proporcionar algum tipo de benefício (por exemplo: aliviar o stress de um dia frustrante batendo num animal), ele não pensará duas vezes antes de fazê-lo. É por isso que muitos psicopatas maltratam animais.

É importante estar atento às crianças que maltratam os animais ou os seus pets, pois esta atitude pode induzir a outros tipos de comportamento agressivo. Uma criança que maltrata animais deve visitar um psicólogo, pois podem existir outros fatores que estão certamente provocando este comportamento. É fundamental identificá-los para evitar condutas de agressão que possam colocar a vida dos animais em risco.

Estas crianças, infelizmente, não interiorizaram conceitos de condutividade elementar como o respeito ao semelhante e aos animais. Regra geral, o tratamento com sucesso da psicopatia, com perturbação da personalidade é, na maioria das vezes, infrutífero. 

Estes jovens vão engrossar a mancha dos futuros adultos que se alistam em forças especiais para terem oportunidade de “legalmente” espancar alguém; vão adotar cães perigosos e treiná-los para combater e matar; vão procurar empregos como seguranças de discotecas, cobranças difíceis, organizações extremistas e congéneres, para cultivarem a violência como opção de vida e expandir as suas tendências; vão ser amantes de trash metal e idolatrar artistas ou músicos que apelem a qualquer forma de violência.

São pessoas agressivas com uma tendência natural a responder com violência aos estímulos que os rodeiam, impulsivos, desprovidos de inteligência emocional, com necessidade de sentir poder como forma de compensação para o limbo de frustração em que vivem mergulhados, profundamente egoístas e desafiadores, que procuram desesperadamente uma identificação ou modelo de ser escolhendo as piores opções de vida.

Este “lixo comunitário” convive paredes meias connosco e está bem identificado no tecido social. E certamente qualquer um de nós conhece um ou mais cromos que se aparentam com esta subespécie humana. Temos de estar mais atentos.



segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Dentro de nós



Por vezes temos uma ideia na cabeça que queremos desenvolver através da escrita. Pode ser um pensamento que surgiu à hora do almoço, depois da jornada de trabalho, ou algo que anda a ruminar há algum tempo na nossa mente; mas chegada a hora de escrever, outra coisa diferente, ambígua, até, jorra-nos dos dedos.

Começamos a escrever e a nossa mente divaga, já que a nossa existência é feita de um contínuo de pequenos acontecimentos, a maioria sem grande importância nem impacto. De vez em quando, muito de vez em quando, o fluir dos dias agiganta-se, abrilhanta-se e, então, dizemos que aconteceu algo de especial e guardamos datas na memória, sentimentos quentes e ternos ou assustados e infelizes algures dentro de nós.

Alguns encaram com leveza os dias que correm. Lembram-se dos tempos da infância e sorriem condescendentes com o que foram. Partilham com os amigos histórias improváveis, exageradas, cheias de feitos e de graças e divertem-se com isso. Olham para sonhos que não se cumpriram e objectivos que não se alcançaram e o coração não se aperta nem descem véus de angústia ou derrota.

Para outros, o passado, o futuro e, sobretudo, o presente desgastam. Há uma queixa fina e virulenta, uma espécie de lamuria, que se torna numa inquietação permanente e sem objeto que corrói, que transforma todos os momentos em tempo perdido, como se a felicidade e a vida estivessem sempre noutro lugar.

Viver pachorrento ou inquieto, tranquilo ou perturbado, não é bem uma opção. Em cima de um temperamento que nos calha em sina, acumulam-se experiências e formas de lidar com o que nos acontece, que nos transforma exactamente no que somos: nós mesmos, únicos, diferentes, extraordinários por isso. Somos quem somos, por acaso e sem escolha, já que não nos soubemos fazer de outra maneira. O que nos afirma como únicos é, no entanto, a nossa forma particular de dizer não e, a partir daí, reconstruir-mos o (nosso) mundo - se é que ainda vamos a tempo. Temos de fazer um esforço, sermos pro-ativos, e não estarmos sempre à espera de uma melhoria das contingências exteriores para fazermos algo por nós. Mas tudo isto, depois de escrito, soa a receita fácil, já que é impossível fazer a nossa vida retornar à pureza dúctil de uma página em branco. E, uma vez mais, como se vê, para o escritor é mais fácil prescrever soluções generalistas (para os outros) do que as considerar para si mesmo.


sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Das injustiças


Passo a publicidade, pois não tenho qualquer intuito comercial na divulgação do cardápio de determinado restaurante, uma vez que frequento vários e sem distinção, mas, a título de exemplo, veja-se: Em 2016, em Pisa, Itália, à conversa com um casal nativo da cidade, disse-lhes que em Portugal era possível comer uma refeição completa de prato do dia (prato, café e bebida) por 7 euros e 50 cêntimos. Eles ficaram incrédulos e pediram-me para repetir o que afirmara, não fosse eu estar equivocado ou a expressar-me mal no meu italiano enviesado. Ficaram incrédulos com a minha reafirmação, pois esse era, à data, o preço de um pannini em Itália. Finda a conversa, disseram-me que ainda nesse mesmo ano viriam de férias a Portugal, para aproveitar as maravilhas dos baixos preços e a beleza do nosso país. Nunca mais soube deles, nem tão pouco imagino se efetivamente vieram à nossa terra.

Repare-se que estamos em 2021 e o nosso prato do dia, segundo creio, não mudou de preço desde então, ou, se tal aconteceu, foi um ajuste mínimo. Quando falamos dos baixos salários - efetivamente são injustificadamente baixos - temos de nos ater ao custo de vida em cada país, pois caso contrário estaremos a fazer um juízo erróneo sobre a relação rendimento/preços.

De uma coisa tenho absoluta certeza. Vive-se amplamente melhor com um salário médio em Portugal do que na maioria dos países europeus que conheço. A exceção acontece na Bulgária, Roménia, Polónia e pouco mais. Na maioria dos países da União Europeia, os custos dos serviços, transportes e habitação, são exorbitantes comparados com os praticados por cá. E as substancialidades, o que verdadeiramente conta, são amplamente mais caras.

Isto não é contraditório com a prática reiterada e indesculpável de uma politica de baixos salários em Portugal, mormente do salário mínimo nacional, para não falar das pensões, subsídios e apoios sociais (há muitas pessoas para quem essa é a única fonte de rendimento), todos eles completamente insuficientes para alguém ter uma vida condigna: casa, habitação, comida e cuidados de saúde primários, alguns dos mais elementares direitos previstos na nossa Constituição.

Será que os empregadores não entendem que, ao pagarem melhores salários, têm funcionários mais motivados, logo mais produtivos e que gastam mais dinheiro, cujos consumos vão fazer crescer todos os sectores da economia? Não, a ganância e a sofreguidão do lucro não os deixa ver/pensar desse modo.

Infelizmente, a fila de desempregados é enorme, os imigrantes estão dispostos a trabalhar por qualquer salário (o que querem é um contrato para conseguirem ter um título de residência) e aceitam condições laborais por vezes inumanas. Os empregadores, desprovidos de escrupulosidades, vêm para a comunicação social fazer queixinhas de que não conseguem encontrar massa laboral e vão ter de recorrer aos imigrantes. Leia-se: Não estão dispostos a pagar salários justos, pois não querem reduzir os seus lucros e, como tal, com lágrimas de crocodilo nos olhos, dizem ter de recorrer aos imigrantes porque a maltinha portuga não quer vergar a mola.

É por estas e por outras que muitas vezes dou razão a algumas lutas dos comunistas. Só é possível combater a desigualdade, a injustiça, mudando o paradigma social, mas tudo feito com equilíbrio e sensatez. Efetivamente todos, sem exceção, devem pagar o seu contributo à sociedade pelos bens que recebem dela. Não acho admissível que alguém parasite à custa dos impostos do trabalho alheio, mas também não é de todo aceitável que um cidadão não tenha um rendimento mensal que lhe possibilite viver com dignidade. Como em tudo, é na justa proporção e no equilíbrio, que reside a razão das coisas.

Pode ser uma imagem de texto que diz "café restaurante estádio EMENTA TAKE-AWAY SOPA €2.50 €2 1.Prato do dia ofth day) 2.Bife Casa (.s +chips +fried egg rice) .Bitoque (Grilled chips fried eeg) 4.Febras €7.50 €7.50 €7.50 chips rice) 5.0melete Simples €7.50 6.0melete com Queijo ou com Fiambre €7.50 cheese Queijo ham) €7.50 Fiambre €7.50 Brás potatoes egga) eg 9.Alheira €7.50 Mirandela €7.50 ACOMPANHAMENTOS CAIXA PEQUENA Arrozbranco 2.60"
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terça-feira, 2 de novembro de 2021

Os serviçais

 

Vivemos num mundo em que a afirmação individual dos sujeitos se faz pelo que têm. Não basta ser inteligente, bonito, elegante, simpático, charmoso, espirituoso, culto, desembaraçado, pleno de sentido de humor, divertido, ou tudo isso em doses massivas. Espera-se que essas habilidades, esses "skills", ou características, rendam, dêem frutos e sejam significados pelo meio envolvente como adquiridos de mais-valia.

A velha discussão sobre a dicotomia entre o ser e o ter parece, pelo menos por agora, resolvida de uma forma expedita: o ter está ao serviço do ser e o ser é uma abstração monumental a que muitos poucos têm acesso. Valorizam-se os sinais exteriores e o que serve de moeda de troca numa rede complicada de significações: dinheiro, um título nobiliárquico, académico, um cargo importante, um nome sonante.

Não ter é o mesmo que não ser. Logo não ter qualquer coisa com jeito, qualquer coisa que os outros reconheçam e avaliem como boa ou desejável, é a desclassificação suprema. É assim que casar com uma determinada mulher ou homem com características selecionadas é uma aquisição de estatuto. E o problema desta expansão possidente não está na aquisição mas na perda.

Ninguém gosta de perder o que quer que seja. E perder pessoas que, para lá do seu valor intrínseco, sejam um leit motiv para a razão da existência, é, para alguns imbecis, igual a perder os sinais exteriores de uma qualquer riqueza que julgavam possuir.

Como é difícil admitir que o sentimento de posse em relação a pessoas seja dominante e mais difícil ainda assumir que se quer alguém mais pelo que ela significa do que pelo que ela é, confundem-se a amizade e o amor com outras valências quaisquer que nada têm a ver com a nobreza desses sentimentos.

E foi por este motivo, e por outros, que neste final de tarde, dominado por uma persistente má disposição, saí da farmácia próxima à minha casa sem aviar o medicamento que carecia, só porque o funcionário - um tinhoso serviçal de Doutores, Engenheiros, gente importante e afins - descuidou o atendimento de uma velhinha que, coitada, mal se conseguia expressar, só porque entrou no estabelecimento, imagine-se?! Um Doutor! Uma pessoa de título, um médico, a quem ele de imediato fez uma vénia, gesto que lhe acentuou ainda mais a sua pronunciada escoliose - uma doença crónica e progressiva tão comum em todos os serviçais que atingem o Nirvana cada vez que beijam o chão que os aludidos finórios pisam. P. que o pariu! - pensei, mas, claro, nada disse. Limitei-me a sair sem o medicamento que precisava e ainda mais nauseado do que quando entrei.


sábado, 30 de outubro de 2021

Dias cinzentos

 



Hoje, pela primeira vez este ano, sinto-me finalmente nos preâmbulos do inverno. A noite de ontem foi de temporal intenso e de manhã, bem cedinho, descobri a varanda com vasos derrubados, o chão encharcado e cheio de folhas arrancadas pela intempérie. É daqueles dias em que apetece ficar em casa, preguiçando com um livro entre as mãos, vendo um filme interessante ou praticando canções novas na guitarra. Às cinco e meia da tarde já é quase noite cerrada e sob a consistente camada de nuvens, a perder de vista, que vislumbro da janela do meu escritório, tremelicam, ao longe, as luzinhas amarelas que alumiam a estrada e as aldeias em redor. À parte alguns cães que de vez em quando ladram, o silêncio é sepulcral e só é interrompido pelo ruído irritante das minhas falanges a atacarem as teclas de plástico do teclado. Os meus gatos já dormitam com indolência, enrolados um no outro, na almofada da cadeira junto a mim e só me vem à memória uma frase de Fernando Pessoa, daquelas que reputo bastante irritantes, por conter uma ideia forçada de otimismo: “Um dia de chuva é tão belo como um dia de sol. Ambos existem; cada um como é.” Não podia estar mais discordante, eu que sou um ser solar e adoro a luz, a primavera, o verão, os dias azuis e a florescência da natureza. A aproximação do inverno é para mim a chegada das trevas medievais do longo inverno, que auspicia uma estação de negritude, frio e chuva, plena de monocromatismos e sobretudo demasiado longa. 

Os amantes dos dias chuvosos com certeza adoram quando as primeiras nuvens apontam no céu. Alguns até sentem o cheirinho da chuva chegando! Eu, definitivamente, não, mas a água que hoje cai relembra de que tudo na vida faz parte de um grande ciclo e de que somos parte de um plano maior que nós mesmos. Assim como a água que evapora, forma nuvens e depois cai como chuva, nós também estamos em constante transformação e renovação, partindo de um estado para o outro e de uma fase da vida para outra.

Esboçadas estas linhas, em claro desafio ao “horror da folha em branco” que tanto assola escritores como escreventes, concluo que pouco ou nada tinha para dizer para além destas trivialidades. Mas, seguindo a mesma linha de desplante e pleno desrespeito por conteúdos sérios e merecedores de abordagem, regozijo-me pela minha sopa de repolho, tomate e abóbora, entre outras leguminosas que para lá deitei, que está finalmente pronta e saborosa em modo repouso no meu fogão. E se há coisas que estes dias de negrume convidam, para além de outras coisas inconfessáveis que dispenso relatar, é degustar comida quentinha e calórica. Para a lareira ainda é cedo. Lá mais para meados do mês que vem não há noite que não apeteça. Mas agora, se me dão licença, vou ver o telejornal e aterrar na realidade do orçamento que não existe e da pandemia que não acaba, pois por estas bandas já bolsei demasiadas palavras redondas.



quinta-feira, 21 de outubro de 2021

A novíssima complicómetra



Há mais de 20 anos que me governava com a minha velhota máquina de lavar roupa Philips Whirlpool, completamente manual, com o botãozinho dos programas que se rodava e fazia aquele trec trec trec reconfortante. Até à ferrugem, que já a estava a consumir como um tumor, eu me afeiçoara. Não lavava a quente desde o princípio de incêndio no termostato, ocorrido faz algum tempo, e durante as centrifugações (mais pareciam erupções vulcânicas), não raro, quase vinha ter comigo ao escritório aos saltos pelo corredor. Com o rodar dos anos, a Philips ganhou uma cor pérola, como os dentes de um fumador inveterado, longe dos anos áureos em que resplandecia brancura. Mas, como acontece na vida biológica, também as máquinas têm um fim.

Ontem, relutante, comprei uma máquina de lavar moderna, daquelas que têm música catita a anunciar o início e o fim dos ciclos de lavagem, com 40 programas (só vou utilizar um, talvez dois, o resto são futilidades), ecrã azul luminoso, abertura para colocar peças de roupa esquecidas sem desfazer o programa, que promete poupar muita energia e água e me obrigou a decifrar um livro de instruções pleno de generalidades e muito pouco facilitador. As legendas que vão desfilando no ecrã estão todas em inglês (a outra opção, pasme-se!, é o dinamarquês) e tudo é automatizado, o que deve desencorajar pessoas com iliteracia nas novas tecnologias ou desconhecimento da língua de Shakespeare a comprar uma lavadora dos tempos modernos.

Detesto ter de ler livros de instruções e não sou particularmente fã das novas tecnologias. Lido com elas porque tem de ser, porque já não se vendem eletrodomésticos sem os complicómetros do costume, que, de resto, fazem as delícias dos taradinhos por este género de coisas. Gosto de utensílios simples, robustos e fiáveis, com as essencialidades para um desempenho sem rococós. Já me disseram que quando avaria a centralina de um bicho deste calibre, mais vale comprar uma complicómetra lavadora a estrear, porque o preço da peça não compensa a reparação.

Longe vão os tempos em que via a empregada lá de casa a lavar as roupas no tanque de cimento com sabão macaco ou azul e branco. Só mais tarde, no final dos anos 60, veio finalmente a almejada máquina de lavar roupa (durou mais de 30 anos na casa paterna), uma Miele made in Germany, que custou uma fortuna na época.

Não sei se alguma aversão que dispenso às máquinas de lavar roupa terá a ver com o facto de a minha gata angorá, a Fô, branquinha, com nariz rosa e patinhas da mesma cor, ter morrido asfixiada dentro do tambor dessa máquina. Como todos os felídeos, a bichana era metediça e, em má hora, lembrou-se de ir dormir a sesta para dentro da Míele. A empregada não reparou e fechou a porta. De manhã acordei com os gritos lancinantes da minha mãe.

Com 13 anos de idade, lembro-me que foi o meu primeiro grande desgosto. Novas ou velhas, malditas sejam as máquinas de lavar roupa!

domingo, 25 de julho de 2021

Adeus Otelo


Em 1984/85, ainda durante o Serviço Militar Obrigatório, fui colocado no Forte Militar de Caxias. Na época, o celebérrimo e sinistro estabelecimento era uma prisão militar e o preso mais famoso, ainda mais que o cabo Vidrago, perigoso cadastrado que arrancara uma orelha à dentada a outro recluso, era o Tenente Coronel Otelo Saraiva de Carvalho.

Para além das muitas peripécias que presenciei em Caxias, nesses conturbados tempos, que dariam manancial para uma longa história, recordo particularmente o Otelo, pois o destino fez com que nos cruzássemos pessoalmente. Fui incumbido, como graduado, da tarefa diária de assistir ao fornecimento das refeições ao ilustre prisioneiro. Desde que a comida era retirada do panelão gigante, onde se cozinhava para centenas de reclusos, guardas prisionais, militares e funcionários civis, até ser entregue à mãos do ilustre presidiário, era eu quem acompanhava o trajeto da mesma através dos corredores da prisão e dentro do elevador até ao 2º piso onde se situava a sua cela. Só depois de entregue o tabuleiro às mãos de Sua Excelência a minha missão estava terminada.

O comandante do Forte, um major na reserva, amante de cães de caça e uma espécie de governador plenipotenciário daquele lugar - destacava soldados para todos os dias irem correr com os seus animais - tinha uma patente inferior ao mais ilustre prisioneiro. Esse facto, além de mal entendido na esfera castrense, não era bem aceite por Otelo e as discussões entre eles, ao que constava, eram frequentes.

O meio prisional é um lugar de alta conspiração e mexerico e tudo o que por lá acontecia, muitas vezes de forma deturpada, corria em modo sibilante os ouvidos de reclusos e carcereiros. Assisti a muitas situações deploráveis que me dispenso agora de relatar, pois, quase quarenta anos volvidos, a poeira do tempo assentou sobre os factos e muitos dos protagonistas provavelmente já não fazem parte do mundo dos vivos.

O Otelo que eu recordo era uma pessoa serena, impecavelmente fardado e aprumado, com aspeto visivelmente intelectual, acantonado numa cela individual recheada de livros e jornais, servida por um corredor anexo onde ele todos os dias praticava corrida. Nunca vi a porta da cela fechada. Além do mais, tinha uma hora de recreio só para si, num pátio interior, e nunca o vi misturado com outros reclusos. Tomava as refeições na cela e convivia com o seu advogado e com as constantes visitas. Escrevia incessantemente.

Frequentemente visitado por jornalistas estrangeiros, diplomatas, políticos e gente ilustre, era sem dúvida a coqueluche de Caxias e retirava todo o protagonismo ao comandante do estabelecimento prisional - que desejava para ele, Otelo, o tratamento idêntico conferido à restante população prisional. Diziam que essa era a maior fonte de conflitualidade entre eles.

A minha relação com o militar de Abril, à época eu tinha 23 anos, a principio bastante formal, com o fiar dos dias foi-se tornando amistosa e não tardou a que um sorriso aflorasse o rosto do experiente combatente. Quis saber o meu nome, o que estudava, onde morava e o que ia fazer depois da passagem pelo Exército. Ficou radiante quando lhe disse que gostava muito de ler e de viajar.

Jogámos xadrez juntos e não lhe ganhei uma única vez. Falámos sobre literatura, cinema e mundanidades. Nunca aflorámos temas políticos e jamais eu lhe perguntei se era culpado das acusações que o faziam estar preso. Não digo que tenha ficado uma amizade entre nós, pois apenas convivemos durante alguns meses e depois disso nunca mais o vi. Ainda guardo um livro do Woody Allen "Side Effects" que ele me deu com uma simples dedicatória: "Abraço. FMCaxias, 1985". Fiquei com a impressão de que era um homem de emoções contidas, mas muito afável e com uma inteligência superior.

Antes de ser transferido para outra unidade militar fiz questão de me ir despedir dele. Deu-me um aperto de mão tão forte que julguei que me ia quebrar os ossos. Hoje, volvidos 37 anos, dia da sua morte, fui à estante buscar o livro do Woody Allen e tenho-o aqui ao meu lado. Devolvo-lhe, também por escrito, o abraço que na altura me deu.

Culpado ou inocente, certo é que ele foi amnistiado e mais tarde inocentado de todos os crimes de que foi acusado. A nossa História jamais o esquecerá pois foi um homem que se notabilizou e merece ser recordado como o protagonista de um tempo que ajudou a fazer.

RIP


sábado, 17 de julho de 2021

Da (des)esperança


Por vezes lamentamos os silêncios que impregnam as nossas vidas, mas com a certeza firme de não desejarmos uma orgia de ruídos sempre à nossa volta, impedindo-nos de nos sentirmos nós mesmos. O pior é sempre possível mas não é fatal que tal aconteça. Se nos lançamos na ação, se nos empenhamos, se a motivação existe e há um rumo, se sabemos o lugar para onde queremos ir, poderemos esperançar alcançá-lo.

Na medida em que o pior não é uma fatalidade é permitido termos esperança. E como o pior pode ser evitado, é urgente avançarmos com empenho naquilo que julgamos evitar a nossa infelicidade.

Para além do otimismo e do pessimismo, há sempre lugar para a esperança. Esta apoia-se sobre a confiança no possível ou no que poderá sê-lo. O tempo, de certa maneira, é uma criação do possível e é fácil entendermos que um dos grandes erros das utopias foi sempre o de tentar fixar, através da imaginação, o futuro ideal, o termo perfeito de qualquer história e até os meios para lá chegar. E tal forma de pensar, por vezes, impede-nos de apreciar com rigor o inesperado, o acontecimento que transforma o (nosso) horizonte previsível.

Mais grave que tudo é a tomada de consciência de não sabermos o que nos pode fazer felizes, nem quais os melhores caminhos para trilharmos. Resta-nos, então, a exuberante satisfação de podermos afirmar com veemência: «Eu não sei bem aquilo que quero, mas estou certo daquilo que definitivamente não quero.»

Para muitos, onde eu me incluo, só isto já é um começo, seja do que for.



terça-feira, 6 de julho de 2021

Subsídios para o plano vacinal

 



O Plano Nacional de Vacinação, iniciado nos anos 60, numa altura em que a Poliomielite matava, foi determinante para a diminuição das taxas da mortalidade infantil em Portugal, que são atualmente das mais baixas da Europa. Mas o que muitos não sabem, porque não são desse tempo e não passaram por isso, é como se processava a vacinação na tropa, ainda no início dos anos 80.

Eu comecei a cumprir o Serviço Militar Obrigatório em 1981, na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, e depois por lá fiquei, contratado pelo Exército durante cerca de 10 anos, que era a forma expedita que os estudantes universitários masculinos da época encontravam para prosseguir os seus estudos e ter uma fonte de rendimento possível. Ainda não existiam mulheres a cumprir o Serviço Militar Obrigatório, ou contratadas, no Exército, o que veio a acontecer muito pouco tempo depois de eu ter terminado o meu vínculo. Mas isso são outros quinhentos.

Recordo-me perfeitamente do dia da vacinação na EPI de Mafra. Estava uma manhã invernal e o frio cortante era acompanhado pelo sibilar do vento glaciar que corria os claustros do convento. Numa vasta capela interior, transformada em enfermaria improvisada, sentados num banco de madeira corrido, em grupos de vinte, de tronco nu, o cabelo quase rapado e os olhos esbugalhados com os exemplos das anteriores vítimas, preparámo-nos para a carnificina.

O cortejo abria com um socorrista transportando debaixo do braço uma terrina cheia de agulhas. Atrás vinha um auxiliar que, com um maço de algodão a imitar uma esfregona, besuntava-nos as omoplatas com tintura de iodo. Depois, a figura sinistra do espetador de agulhas - verdadeiras bandarilhas, a ajuizar pelo tamanho e algumas seguramente rombas. Finalmente aparecia um último elemento com as seringas que ia desajeitadamente enroscando às agulhas há muito espetadas nas omoplatas dos instruendos.

O que sempre me fez suportar alguns calvários que passei na Escola Prática de Infantaria de Mafra, conhecida pela sigla EPI – vulgarmente apelidada entre os magalas como Entrada Para o Inferno ( nas Operações Especiais em Lamego ainda passei maiores tormentos), foi o facto de ver que os meus colegas estavam a passar pelo mesmo e aguentavam estoicamente tudo - pelo menos a maioria, já que alguns, a meio da recruta, baixaram à Psiquiatria e foram internados no Hospital Militar da Estrela.

No final, posso afirmar categoricamente que o tempo que passei no Exército, quase uma década, pelas amizades que por lá fiz e experiências inolvidáveis, foram dos tempos mais felizes da minha vida. Nunca posteriormente na sociedade civil, pela competição e mesquinhez que se vive dentro das empresas, consegui encontrar a camaradagem salutar e o bom humor que vivi nos tempos da tropa.

A dose cavalar que me inocularam na EPI, uma espécie de coquetel vacinal contra uma série de maleitas, foi seguramente a responsável por durante toda a recruta nunca me ter constipado ou adoecido, apesar de andar constantemente debaixo de chuva e enlameado até aos ossos. Sem essa inoculação não acredito que fosse possível ter suportado as agruras diárias porque passei durante esses penosos dezasseis meses.

Agora a que assistimos à maior campanha vacinal mundial de todos os tempos e que temos um Vice- Almirante à frente de uma Task Force, não me surpreenderia que não tivesse já passado pela cabecinha do nosso Vice a adoção de estratégias militares mais expeditas para imunizar o povinho que se queixa de ficar longas horas na fila: uma série de banquinhos de madeira corridos (há muitos nas igrejas e era só pedir emprestado) podiam muito bem iniciar um esquema vacinal em série. E porque não adaptar também algumas ideias do Taylorismo para a racionalização do processo produtivo, neste caso o ato de imunizar, evitando a lentidão na produção e um esforço desnecessário?

A ideia de um processo de imunização, todos sentados num banquinho de madeira, que começa com um besuntador de tintura de iodo e acaba com o enroscador de seringas, previamente espetadas nas omoplatas dos recrutas, se servisse para vacinar o dobro da população, era mais uma prática castrense de outros tempos a ter em linha de conta.

E depois não me digam que eu não contribuo com subsídios para o processo vacinal.

Siga a Marinha, nosso Vice- Almirante!






quarta-feira, 30 de junho de 2021

Amigos



É um lugar comum dizer constantemente que todas as pessoas nos dececionam, mas assim como há pessoas que nos causam esse estado de amargura, outras há que nos surpreendem pela positiva; e outras, ainda, que confirmam tudo quanto já pensávamos delas.

Dizem que os amigos são para as ocasiões - e eu diria que cada vez menos sei quais são as ocasiões em que se deve apelar para os amigos e quais os amigos que se prestam e têm disponibilidade para nos acudir em dadas situações.

As amizades, com exceção daquelas mais antigas, que nos vêm da infância e nos acompanham ao longo da vida, acontecem-nos por zonas de interesse e ocupação, por empatias, por circunstancialismos, muitas vezes fruto do acaso, que nos surgem no trilho da vida. Tendemos a sentir empatia por pessoas que, julgamos, sentem o nosso pulsar, compreendem o nosso estilo de vida, as nossas perceções, possuem gostos semelhantes e objetivos que nos merecem sentido. E, por vezes, até os amigos vão sendo mais conjunturais, mais fruto das circunstâncias e das necessidades práticas de alianças, consequência de tumultos comuns que fazem com que duas vidas se cruzem no amparo da amizade recíproca.

Quando a nossa vida dá para o torto, quando os empregos falham, quando a solidão nos bate à porta, quando os divórcios ou o fim das relações amorosas acontecem e tudo se baralha dentro de nós, temos saudades dos amigos de outros tempos. É aí que escolhemos criteriosamente com quem podemos contar, de que modo e com que limites precisos, e descobrimos que nem todos os amigos são para todas as ocasiões.

É bom fazer amigos. Nos últimos tempos, em virtude da minha cada vez maior presença na música e também na poesia, tenho feito novos amigos. Nuns casos, trata-se de pessoas bastante mais novas do que eu, mas com uma forma de pensar lúcida e avisada, capaz de entender coisas que, julgava eu, só pessoas com a minha experiência de vida e maturidade conseguiriam alcançar. Noutros casos, são pessoas com idades próximas da minha, mas com vidas e saberes que me completam.

A vida tem destas coisas e nem imaginamos quão enriquecedor é permutar experiências, vivências, com personalidades diferentes.

Os mais velhos, contrariamente ao que diz a «sabedoria popular», também aprendem muito com os mais novos, especialmente quando se trata de pessoas que possuem uma mentalidade muito para além da sua idade biológica.

Gostei muito de ter feito novos amigos, pessoas que valeu a pena ter conhecido, para manter o contato e aprofundar a amizade, já que a vida tem uma duração aleatória e é demasiado preciosa para ser desperdiçada com seres sem luz e medíocres.

Cada vez mais me convenço que o dia-a-dia é feito de um contínuo destes pequenos acontecimentos: coisas que por vezes parecem não ter importância ou impacto, mas que vão dando cor e sentido ao fluir da vida e me fazem adivinhar que ainda há afetos a precisar de partilha, pessoas que gostam de gostar de pessoas e que esse é o maior desiderato da vida.

terça-feira, 22 de junho de 2021

Eu sei que hoje é terça-feira

 


Eu sei que hoje é terça-feira porque passo de mota na rotunda junto ao mercado do levante - que é um mercado que se monta e desmonta todos os dias. Sim, um mercado onde os comerciantes, todos os dias, montam as suas bancas de manhã para à tarde as desmontarem – e ainda vejo os últimos feirantes a desfazerem o estaminé e a encherem até ao teto as carrinhas brancas com vidros foscos.

Disse-me um dia alguém, com conhecimentos nestes assuntos, que muitos feirantes, em especial os de etnia cigana, fazem das suas carrinhas brancas uma espécie de casas amovíveis, onde comem, dormem, fazem filhos e transportam o material que vendem, que é a principal fonte do seu sustento.

Não creio que este espírito nómada integral ainda esteja presente na maioria dos elementos desta etnia, apesar dos ancestrais costumes, pois felizmente a maioria já tomou consciência de que o sedentarismo, assentar arraiais, é necessário para que os filhos tenham educação escolar, tão essencial à integração social.

Dantes, e durante muitos anos, pelo menos até que um vereador mais iluminado, ou um funcionário subalterno com lampejos de inteligência, se lembrasse de mandar vedar o espaço do mercado com uma cerca, era costume, nos dias de feira, a cidade se encontrar envolta por sacos de plástico, que faziam evoluções e piruetas em rota livre, ao sabor do vento, até caírem no rio Lis ou espalharem-se pelas ruas circundantes.

Até dias recentes, operárias da Câmara Municipal, na sua grande maioria, senhoras com trajes verdes, fazendo vagamente lembrar as companheiras do Robin dos Bosques na charneca de Sherwood, com cabelos loiros e dentes d’oiro, diligentemente e com paciência de Jó - aquele fulano com uma paciência bovina que aparece citado num dos livros do Antigo Testamento – esfalfavam-se, duas vezes por semana, em correrias atrás dos malfadados sacos de plástico, que pareciam fazer-lhes fintas para não se deixarem apanhar.

Se lhes fosse perguntado, provavelmente nenhuma delas imaginaria que, deixando a Ucrânia, o seu futuro, entre outras coisas, passaria por bissemanalmente mover perseguições a sacos de plástico, durante longas horas, numa acolhedora cidade do midwest português.

A captura destas perigosas espécies poluidoras, proscritas por todos os manuais de ecologia, fazia-se quase sempre com sucesso, pese embora alguns saquinhos se escapulissem para longe do seu atento olhar. Os indómitos plásticos, não raro, passeavam-se nos dias seguintes pelo casco histórico da cidade, enrolando-se nas plantas e floreiras, terminado quase sempre a sua errática viagem na correnteza do Lis.

A maledicência é frequentemente o lugar-comum da crónica, pois a escrita é muitas vezes um exercício individual de catarse - o imperioso desabafo. Mas sabe bem mudar este estado de coisas, dizer diferente, fazer outra coisa.

Eu gosto dos imigrantes, daqueles que vêm para o nosso país para trabalhar, que se integram e passam a amar o nosso mundo como se fosse deles também. Gosto da diversidade cultural. Ela enriquece-nos, muda de forma indelével a nossa maneira de perspetivar o universo e a nossa forma comezinha de pensar. O mosaico cultural e étnico é sempre enriquecedor.

Eu sei que hoje é terça-feira porque abro a porta de casa e encontro nas escadas do meu prédio as funcionárias que semanalmente se encarregam das limpezas do condomínio. São, também elas, na sua maioria, imigrantes, oriundas de África ou do Brasil, que trocaram a sua terra natal por um futuro melhor em terras lusas para si e para os seus. Ocupam os elevadores com baldes e esfregonas, regam as plantas sequiosas, sempre em alegre cavaqueira, com boa disposição contagiante e um sorriso plasmado no rosto. E deixam atrás de si um rasto de cheiro a lavado e perfume.

Se eu pudesse, voava, elevava-me, só para não pisar o chão limpo e molhado das escadas, tal o enorme respeito que sinto pelo seu trabalho.





sábado, 19 de junho de 2021

O efeito Dunning-Kruger

Você já ouviram falar do efeito Dunning-Kruger? É um viés cognitivo que leva as pessoas com menos habilidade e conhecimento a pensar que sabem mais do que as outras. Quanto menos elas sabem, mais pensam que sabem.

Muitas vezes, aqueles que têm esse problema tendem a impor as suas ideias, em vez de simplesmente dar uma opinião, considerando-as verdades absolutas. Os outros são vistos como totalmente ignorantes e incompetentes, mesmo que não o sejam.

No correr da vida, tenho-me deparado com muitas destas criaturas que, para além de manifestarem uma absoluta falta de humildade perante o conhecimento que outros demoraram vários anos, uma vida, a adquirir, são frequentemente arrogantes e irredutíveis.

O exemplo paradigmático é a crença popular, totalmente desajustada, de que no regime da separação de bens os cônjuges não são herdeiros um do outro.

Estudos recentes, por mim lidos, perceberam que, quanto mais incompetente era uma pessoa, menos consciente disso ela era. Enquanto as pessoas mais competentes, não raro, se subestimavam.

Daí o efeito Dunning-Kruger, segundo o qual pessoas com baixo nível de competência tendem a pensar constantemente que sabem mais do que sabem, considerando-se mais inteligentes.

Os casos típicos que têm acontecido ao longo da minha vida, são a frequência com que me deparo com os "juristas de café" - muito similares aos "médicos sabichões", que tudo sabem sobre doenças e prescrevem tratamentos para todo o tipo de maleitas - com perceções totalmente erradas de como funciona a Justiça, as leis, e afirmam que a uma determinada situação corresponde uma certa solução legal, seja porque "ouviram dizer" ou porque "a uma certa pessoa amiga aconteceu assim".

Longe vão os tempos em que me enfurecia com tamanha ignorância e, não sem uma certa ingenuidade, tentava explicar, em discussões desajustadas e infrutíferas, que a lei é muitas vezes diferente daquilo que dela se pensa.

Hoje já não perco tempo com criaturas que não estão abertas à dúvida, não evitando impor o seu próprio ponto de vista; e que, não aceitando a palavra de técnicos, que estudaram anos a fio para chegar a certo tipo de conhecimentos, continuam a insistir em crenças absurdas, com absoluto desdenho por quem realmente sabe.

Os ignorantes têm, como toda a gente, direito à vida, mas dentro da bolha de idiotice de que é formado o seu pequeno mundo, do qual não abdicam nem parece quererem sair.