sábado, 30 de abril de 2022

Vaya Con Dios!



Nem tudo são más notícias. Ontem, ao sair do elevador, deparei-me com montanhas de bugiganga, o recheio de casa dos vizinhos do lado que, segundo parece, estão de saída. Aleluia! Trata-se de um casal novo, na casa dos trinta e poucos anos, muito mal-educados, com quem mantenho um conflito relacionado com ruído (provocado por eles) a horas impróprias e que já dura há vários anos.

O último episódio, que não tem mais de um mês, por minha iniciativa, terminou com a vinda da polícia, muito perto da meia-noite, após mais uma noite de grande algazarra. Nessa noite, igual a muitas outras ocasiões, os vizinhos foliões decidiram uma vez mais encher a casa de gente (trata-se um apartamento T1 arrendado, o de menor tipologia existente no meu piso) e entre risos estridentes, cadeiras a arrastar e gritaria, preparavam-se para levar a festa noite dentro.

Ainda bati repetidamente com os nós do dedos na parede, para evitar uma vez mais tocar à campainha, não fosse acontecer uma situação de vias de facto, face às discussões que já tive com eles. Como resposta, em total gozo e desafio, seguindo o meu gesto, os desnaturados começaram todos mimeticamente a bater na parede enquanto soltavam grandes risadas. Não perdi mais tempo e chamei as autoridades. Passados 15 minutos, a polícia interveio e eles foram advertidos de que, de acordo com a Lei do Ruído, se fossem novamente chamados por causa do mesmo problema, seriam multados em quinhentos euros.

Nos dias seguintes, esperei algum tipo de represália da sua parte e, a conselho das autoridades, andei especialmente atento, mas felizmente nada aconteceu. Aliás, nunca mais me confrontei com eles nas escadas do prédio. Ao que parece, eles evitavam deparar-se comigo, nunca saindo do apartamento ao mesmo tempo do que eu.

Foram vários anos de confrontação, sempre por causa do ruído excessivo que, muitas vezes, durava até às duas da madrugada. Em todas as vezes, decidi confrontá-los pessoalmente com a questão, nunca optando por chamar a polícia. Prometiam fazer menos barulho e ter mais cuidado, mas nunca cumpriram e as sextas-feiras eram fatídicas. O último episódio exauriu o resto da minha paciência.

Para além da manifesta falta de civismo e das mais elementares práticas de urbanidade, a total falta de respeito por alguém com a idade dos seus pais, reflete a parte ausente de valores que nunca tocaram alguns elementos desta nova geração. São os chamados millenials ou Geração Z, que assistiram ao surgimento da tecnologia e das maiores transformações mundiais dos últimos tempos. Nascidos em Democracia, alguns na abastança , muitas vezes foram protegidos pelo facilitismo dos pais e viram satisfeitas necessidades de consumo para as quais nunca tiveram de trabalhar ou esforçar-se.

Mas felizmente não são todos assim. Interajo musicalmente com jovens com idade para serem meus filhos, alguns netos, e mantemos uma relação cordial, com amizade sincera e respeito mútuo. A música é por essência apaziguadora e esta paixão transversal torna-nos, a nós praticantes, envoltos numa empatia que derruba quaisquer eventuais conflitos geracionais. Esta podia ser uma explicação simplista, mas acontece que eu tenho a sorte de privar com jovens com ambições, quer musicais, quer de outra ordem, que os resguarda de caminhos menos saudáveis e que cultivam o esforço pessoal como forma de atingir propósitos. São adolescentes e jovens que vislumbram para si um futuro, uma carreira, com sucesso na vida, baseada em práticas salutares e opções que os tornam melhores pessoas. Não é certamente o percurso trilhado por este detestável casal que está em vias de deixar de ser meu vizinho.

Com a mudança, por excesso de carga, já avariaram um dos elevadores (são arrendatários, estão de saída, pouco lhes importam os estragos provocados) e hoje era a mim que me apetecia fazer uma festa para comemorar o facto de que vou deixar de conviver paredes meias com tão insalubre presença.
Se cantar e tocar hinos de aleluia, irão terminar às 22h00, porque a Lei do Ruído é para respeitar. Talvez me fique apenas pela “canção do adeus”, com acordes simplificados, mas em som audível o suficiente para que a metáfora musical atinja os ouvidos destas criaturas persona non grata. Vaya Com Dios e pela sombra, que o sol está quente!


quarta-feira, 27 de abril de 2022

Sexo versus notas na FDLisboa

 

Lendo agora notícias sobre os diversos casos de assédio na FDL, o meu espanto está mais ligado ao facto de somente agora se falar abertamente nesta situação do que propriamente sobre os crimes em si. Tratam-se supostamente de crimes de assédio e outras tipologias, dependendo do que ficar provado, se se esmiuçar bem o assunto. Até ao momento, trinta e um professores estão a ser acusados por estudantes de assédio e discriminação. Não acredito que se consiga fazer prova contra todos, pois nestes casos alguma culpa morre sempre solteira.

Frequentei a FDL desde o início dos anos 80 e já nessa altura se falava abertamente de determinadas alunas que “faziam as cadeiras na horizontal”. E a situação era tão corriqueira que surgia aos nossos olhos como um facto normalizado, algo que era impossível combater, por falta de provas concretas ou interesse real em fazer a denúncia, uma vez que a situação, tanto quanto sei, era perfeitamente aceite e consensual. Na Faculdade de Letras, onde igualmente fui aluno, nunca escutei rumores com a mesma consistência, embora muitas alunas lanchassem com os professores no bar, em alegre cavaqueira e organizassem diversos jantares juntos. No entanto, nunca tive conhecimento de algo tão generalizado como aquilo que se passava no edifício dianteiro. Os candidatos a juristas eram os que mais depressa se dispunham a infringir as leis e a urgência dos fins justificavam os meios.

O que nós estudantes noturnos tomávamos conhecimento nos idos anos 80, era da existência de alunas que voluntariamente faziam favores sexuais aos professores em troca de notas inflacionadas que as fizessem dispensar das provas orais. Pelo menos das provas orais stricto sensu, no sentido mais benigno e inocente da expressão. Igualmente, aquando do exame, a passagem a determinadas disciplinas estava garantida se as ditas voluntárias do sexo se prestassem à entrega de amor aos examinadores.

Muitos de nós, pelo menos os que se interessavam por esta mexeriqueira, onde eu me incluo, comentavam sobre as colegas e os professores que estavam indubitavelmente num relacionamento que extravasava a amizade. As conversas, a maioria das vezes, decorriam nos esconsos dos corredores gigantescos do edifício “Estado Novo” da autoria de Porfirio Pardal Monteiro. A casa onde me formei em leis sempre me esmagou pela sua grandeza pautada pela simetria, em que o mármore é adornado por pinturas da autoria de José de Almada Negreiros. A Faculdade de Letras e o edifício da Reitoria, são obra do mesmo arquiteto e as paredes de dois destes estabelecimentos são testemunhas silentes de muitas conversas e atos inconfessáveis que por ali tiveram lugar, em especial no período da noite. Mas isso são outras histórias e para outro lugar.

No final das aulas, já depois das 23h00, quem tivesse curiosidade e não quisesse correr logo para o transporte, ou pôr o motor do carro em marcha, e decidisse antes ficar no estacionamento dianteiro à porta da Faculdade, dentro do carro e com as luzes apagadas, observava, invariavelmente as useiras alunas a entrarem para os automóveis dos professores Casanova. Alguns não se preocupavam sequer com a indiscrição; outros, mais tímidos e cautelosos, para darem menos nas vistas, apanhavam as estudantes do amor já perto do Campo Grande.

O que agora é relatado nos jornais é bem diferente. Segundo li, trata-se de práticas de assédio e chantagem: exigência de sexo por parte dos docentes para garantir o sucesso escolar. Mas, nos idos anos 80, na Faculdade de Direito de Lisboa, o que se assistia era a uma relação mercantil, por ambos consentida, professores e alunas - nalguns casos era o aluno que oferecia sexo à professora - praticada quase às claras.

Bastantes anos se passaram desde então e os protagonistas destas peripécias, muitos deles, são pessoas casadas e com filhos, com profissões seguras, na advocacia ou na magistratura, e, inclusive, alguns deles já não pertencem ao clube dos vivos.

Na época, muitas das alunas, alunos e professores envolvidos neste ménage universitário, já tinham a sua vida marital e a respetiva prole. Mas isso nunca impediu que as práticas sucedessem. Era complicado, se não muitas vezes impossível, pelo menos com alguns docentes, ter sucesso a certas disciplinas, face ao rigor dos examinadores - que, também se dizia, tinham ordens expressas para reprovarem com certas percentagens, com o intuito de se manter a boa linhagem e o prestigio da Faculdade de Direito de Lisboa: à época, o estabelecimento de ensino superior com maior pedigree, medido pela quantidade de chumbos.

Um grande amigo e colega de curso, infelizmente já falecido, confessou-me que, também ele, tinha sido gigolo de uma determinada assistente, com vista a garantir uma nota elevada na avaliação contínua e a dispensa na prova oral – onde acontecia a maior percentagem das reprovações. Atendendo à pessoa que ele era, não me espantou a confissão.

Mas tudo isto é um passado com mais de quarenta anos e nem por isso ouso, sequer, desclassificar o nome das pessoas envolvidas; aliás, jamais o faria. Apeteceu-me, no entanto, relatar algo que à data era uma prática corriqueira e perfeitamente normalizada que, estou certo, não acontecia somente na FDL mas porventura em quase todos os estabelecimentos de ensino superior. E as coisas não mudam tanto assim. Assim existam corruptores e corrompidos e a relação contratual a ambos satisfaça.

Quase todos nós sabíamos o que se passava, e refiro-me aos trabalhadores-estudantes, como eu, que frequentavam o dito estabelecimento de ensino, com aulas teóricas e práticas a começarem às 18h00 e a terminarem às 23h00, isto depois de uma árdua jornada de trabalho. As olheiras vincadas nos rostos e os olhos marejados de lágrimas de tanto bocejar de cansaço, não nos impediam de ver certas alunas tomar boleia no final das aulas com determinados professores. A promiscuidade era vulgar e nem existia um grande cuidado para esconder o evidente. O espanto é que, volvidos mais de quarenta, anos leia-se nos jornais estes segredos de Polichinelo.



quinta-feira, 21 de abril de 2022

Lisboa revisitada



Faz 15 anos que deixei a capital e as suas cidades satélites, onde também morei até aos 46 anos de idade. Dantes vinha cá com mais frequência e a cidade mudou imenso em pouco mais de uma década.
Hoje encontrei Lisboa chuvosa, cinzenta, mas com muitos transeuntes nas ruas, os restaurantes e as esplanadas cheias, as ruas e avenidas repletas de estafetas da Uber Eats, trotinetas e bicicletas elétricas, Táxis Uber, scooters de todos os tamanhos e feitios e até jovens a descer a Avenida da Liberdade em patins.

O paradigma do meio de transporte citadino mudou radicalmente; e eu diria para melhor. A consciência ecológica e a necessidade de fazer exercício físico, são hábitos salutares cada vez mais enraizados na população em geral e também nos lisboetas.

Para quem há muito tempo se habitou a viver numa cidade calma como Leiria, andar no bulício das ruas da Lisboa contemporânea, é quase uma experiência cinematográfica, tal o contraste e a diversidade de gente com quem nos cruzamos na rua. Em certas zonas da cidade é muito difícil encontrar um português nativo e cada vez mais o multiculturalismo se apoderou de bairros inteiros da capital.

A Lisboa do meu tempo praticamente já não existe, mas continuo a adorar a minha cidade preferida e não deixo de sentir um aperto no coração cada vez que estou aqui, tantas são as memórias e vivências que me ligam a ela.

A nostalgia é uma característica inevitável que forra as pessoas a partir de uma certa idade. Começamos a possuir muitas narrativas dentro da nossa memória, pois décadas de vida encerram um lote de histórias para contar.

Confesso que gostava muito mais da Lisboa do passado, apesar dos modernismos e facilitismos com que entretanto se apetrechou. Agora é uma cidade diferente, em constante mutação, onde pulula o alojamento local, os starbucks, uma massa imigrante em crescendo, o turismo massivo e a reabilitação constante dos edifícios do casco histórico com vista à sua maior rentabilidade.

A cidade já não é minha, como outrora, e sinto-me um pouco estrangeiro por estas paragens. Mas de quando em quando sou surpreendido com elementos do passado e fico intensamente feliz. Só por isso vale a pena voltar.

sexta-feira, 8 de abril de 2022

Assistência em viagem

 



Ontem sucedeu-me algo que provavelmente já aconteceu, pelo menos uma vez, na vida de qualquer um de nós que seja proprietário de um automóvel. Como, regra geral, tenho sempre carros velhos, estas situações são um lugar-comum nos meus quotidianos

Numa viagem de Leiria para Almada, na auto-estrada, o carro começou a falhar a injeção do combustível e sentiam-se alguns solavancos sempre que faltava o gasóleo. Temendo que o carro parasse em plena auto-estrada, decidi não desligar o motor e seguir viagem até ao meu destino. Após o almoço, quando tentei pôr o automóvel em marcha, o motor estava morto.

Como qualquer comum mortal, chamei a assistência em viagem da minha seguradora, que são os anjos da guarda que nos acodem em momentos tão aflitivos. Depois de concluir todo o processo, cheguei à conclusão de que hoje em dia o proprietário de um automóvel, ou ciclomotor, para além de ter a carta e saber conduzir, tem de preencher certos requisitos pessoais a saber: dominar a navegação pela Internet, aceder a um smart phone e compreender a língua inglesa, isto se quer ver a sua situação resolvida em caso de avaria ou acidente.

1 – Quando se telefona para o número da assistência em viagem, responde um gravador que nos faz perguntas às quais vamos respondendo sim ou não. No final existe sempre a opção de poder falar diretamente com um operador, mas pode demorar séculos até que atendam o telefone do outro lado. É bom que a pessoa em questão seja paciente e apreciador de música de elevadores passada em repeat. Nestas situações o que mais nos falta é paciência e boa disposição.

2 – De seguida, temos de carregar num link que nos é fornecido por sms para dar conhecimento do local onde estamos, bem como para chamar um serviço da TDV, que nos transportará até uma empresa de aluguer de veículos. Essa comodidade do táxi nos levar até à porta de casa, desde o local da avaria, já terminou. Fica muito mais barato para as seguradoras alugarem um automóvel de substituição.

3 – Na rent-a-car, fornecem-nos um veículo classe C (por vezes inferior ao automóvel de que ficámos privados) e temos 24 horas para o devolver, com o depósito atestado, na sucursal da rent-a-car da cidade onde moramos. Antes disso, temos de deixar uma caução no valor de 80 euros que supostamente nos é devolvida aquando da entrega da viatura.

4 – Finalmente, novamente através da assistência em viagem e do esquema de resposta a gravações automáticas e links por eles enviados (não sem antes termos de escutar cerca de 20 minutos de música de elevadores), chama-se novamente uma viatura TDV para nos levar até à porta de casa.

Para um paisano como eu, que, por força de circunstâncias profissionais e pessoais, lida razoavelmente bem com as tecnologias de informação na ótica do utilizador, tudo parece lógico, assertivo, prático e eficaz. Acontece que uma larguíssima faixa da nossa população que conduz automóveis e ciclomotores,  tem níveis de iliteracia e/ou analfabetismo elevados. Falta referir a falta de domínio da língua inglesa, para perceber as sms que chegam ao nosso telefone no linguarejar do Shakespeare, a propósito do veiculo TDV que vem ao nosso encontro, ou os links a que temos de aceder via Internet num imprescindível smart phone de que temos ser portadores.

As novíssimas tecnologias da informação são o presente e o futuro do nosso quotidiano e é incontornável que assim seja. Mas existe uma larga faixa da nossa população que nem para levantar dinheiro num terminal multibanco tem competências, quanto mais para se desenvencilhar num caso de necessidade premente de chamar uma assistência em viagem. E eles não contam?

Temos de esperar por mais duas gerações até que os info-excluídos que ainda existem deixem o mundo dos vivos. Mas até lá, por razoabilidade, deveria existir sempre uma alternativa B para estas situações: um atendimento personalizado que fizesse a papinha toda a esta camada de condutores que se vão ver gregos e chineses quando, a propósito de uma pane na sua viatura, se deparem com uma panóplia de modernices das quais se vão ter de se desenrascar.