segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Primavera



Hoje, pelas 07h00, a urbanização onde moro encontrava-se tomada por uma extensa neblina. Com as luzes dos candeeiros de iluminação pública ainda acesos, o cenário era tão belo quanto tétrico. Não se vislumbravam, sequer, as folhas rosa e púrpura que já brotam nos ramos das árvores, anunciando uma primavera precoce, e os pássaros que se recolhem nas ramadas mais altas estavam em silêncio.

Em meados de março, começa a chilreada e os trinares flauteados na copa das árvores, os ramos enchem-se de folhas e regressam ao jardim os gritos das crianças em esfuziante alegria. É o ciclo da vida que se manifesta, a regeneração primaveril que mais cedo acontece; e, a cada dia que passa, os dias aumentam e as noites vão encurtando um pouco.

Primavera é metáfora para os vocábulos esperança e renovação, palavras que nos são tão gratas, e cada vez que ela acontece lembro-me deste belíssimo poema de Alberto Caeiro.

Quando Vier a Primavera
Quando vier a primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na primavera passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma
Se soubesse que amanhã morria
E a primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.
Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.

(Heterónimo de Fernando Pessoa)
Alberto Caeiro

sábado, 19 de fevereiro de 2022

Almada revisitada

 



Encontro-me em Almada, na casa materna, de onde saí ainda muito jovem, e reencontro uma cidade que mantém o mesmo registo dos últimos anos: uma urbe devastada pelos grafittis, repleta de lojas encerradas, com as montras vandalizadas, as ruas sujas e esventradas, repletas de gente que se cruza com indiferença, no meio de prédios amontoados, muitos deles com as fachadas degradadas pelas marcas do tempo.

Um caldeirão de raças e de diferentes culturas, que nos últimos anos veio habitar a cidade e os seus arredores, transformou Almada numa cidade heterogênea, longe da antiga urbe harmónica e pacata que conheci. A cidade acabou por ser vitíma do mesmo destino a que a Amadora, Loures, Massamá, ou qualquer outro grande agregado populacional satélite de Lisboa, foram sujeitas. A vinda de populações culturalmente diferentes, trouxe consigo um potencial de desarmonia com a cultura anterior e um aumento substancial da criminalidade e da insegurança.

Um trânsito caótico coabita com o metro de superficíe, que cortou literalmente ao meio as principais artérias da cidade, e as pessoas movem-se rapidamente pelas ruas, fugindo aos atropelamentos que, não raro, sucedem, por vezes de forma fatal.

O Café Central, fundado em 1956, outrora um ex-libris da cidade, tem-me como cliente há precisamente 50 anos. Hoje já pouco resta do carismático café, situado na antiga Praça da Renovação. O espaço sofreu tantas alterações ao longo dos anos, que só quem conheceu Almada nos anos 60, 70 e 80, se consegue recordar de uma cafetaria toda forrada a madeira, as paredes pintadas de amarelo suave, com um piso inferior, cujas escadas tinham um corrimão, também ele de madeira, ao fundo a sala dos bilhares (na cave os matraquilhos) e os empregados trajados de calças pretas, camisa branca e laço lustrado pelo uso, dançando entre as mesas pelejadas de clientes, com uma bandeja de inox nas mãos.

Eu era um dos clientes habituais da bica e copo de água e permanecia - sem fazer mais despesa já que o dinheiro era escasso -, juntamente com grandes grupos, nas mesas do piso inferior, em useira algazarra e diatribes diversas. Nunca nos conseguiam expulsar com o argumento de que não consumíamos, já que nas mesas em que nos sentávamos, iam embora uns e chegavam outros; havia sempre consumo: café e copo de água e nada mais.

Hoje, à distância de 50 anos, desde os primeiros momentos que me recordo de lá entrar, encontro-me sentado na esplanada do Café Central (morei durante muitos anos a 20 metros do mesmo), nesta manhã prazenteira e com sol, a escrevinhar estas palavras e a ver quem passa. Há sempre caras conhecidas. Os traços fisionómicos estão enrugados pelo rolar do tempo, mas são demasiado familiares para me passarem despercebidos. Ainda agora passou por mim o António Manuel Ribeiro dos UHF, em passo apressado com um papel qualquer na mão e fingiu que não me reconheceu.

Tento abstrair-me do tempo presente e a minha mente viaja até ao final dos anos 70. O Central fechou e é sexta-feira à noite. Na Praça da Renovação começam as street race habituais e os espetadores, os noctívagos de serviço, onde eu me incluo, enchem a esplanada. As mesas e as cadeiras de ferro à época não eram arrecadadas, mesmo depois do fecho do café. A gritaria é imensa e os ânimos estão exaltados. Já se bebeu e fumou muita coisa. De repente, ninguém sabe porquê, cadeiras e mesas começam a voar, pessoas envolvem-se em lutas. O rally continua, indiferente ao buliço, até que aparece o "nívea", o patusco volkswagen da bófia, com tinónis estéreis e em grande algazarra. No seu interior, quatro polícias gordos, fardados de cinza rato, armados de cacetetes e apitos, vêm preparados para pôr termo aos desacatos. Os street racers desaparecem e toda a gente se escapule da esplanada, perdendo-se nas ruas adjacentes. Horas depois, após a policía ter regressado à esquadra, em regra sem conseguir fazer detenções, os mirones regressam e recomeçam as corridas de carros madrugada dentro. E tudo se repete.

As minhas memórias já quase se esfumaram. Cada tempo tem os seus ritos, os seus modos, as suas vivências. Os anos loucos do pós 25 de Abril, já fazem parte de um acervo de recordações que é um privilégio de poucos. Comparar a Almada de hoje com a cidade de Leiria, onde habito há 13 anos, seria o mesmo que comparar um apartamento de estudantes, onde reina a maior desorganização, com o espaço cuidado de uma dona de casa zelosa. Mas se calhar a cidade está bem assim para os que nela hoje habitam. São os seus habitantes que fazem a cidade. Eu, confesso, morei na Almada de outros tempos e não consigo sair desse desajuste.



Almada - Antiga Praça da Renovação e Café Central ao fundo

19022019


segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Sessenta e uma voltas ao Sol



Aprendi na História que o costume de dar os parabéns e de celebração com o requinte de velas acesas, nos tempos antigos, era para proteger o aniversariante de demónios e garantir segurança no ano vindouro. Entretanto, vencidas que foram as resistências da Igreja, face ao paganismo do costume, a prática enraizou-se e ainda assim se celebra o aniversário de alguém nos dias de hoje.

Por motivos e razões que não convém revelar nesta escrita, há muito tempo que não celebro o dia dos meus anos. Limito-me a agradecer, com sinceridade, às muitas pessoas que perdem um bocadinho do seu tempo para me parabenizar. E nisso o Facebook é um auxiliar precioso, pois, a menos que não revelemos no perfil a data do nosso nascimento - muitas senhoras não o fazem pois gostam de manter o mistério sobre a sua idade real -, os amigos e conhecidos são sempre alertados acerca do momento em que determinado fulano cumpre mais uma volta à roda do Sol.

O ano de 1961 foi de sobressaltos. Nasci um mês depois de Henrique Galvão ter chefiado um assalto ao paquete Santa Maria, com o objetivo de provocar uma crise política contra o regime de Salazar. E, precisamente no mês seguinte, aquele em que nasci, um grupo de angolanos, munidos de facas e catanas, efetuou um assalto à prisão de Luanda e à esquadra da polícia, sendo este ato considerado como o início da guerra colonial portuguesa.

Entretanto, no contexto da Guerra Fria, na Europa, as autoridades da ex-República Democrática Alemã encerravam a fronteira com a Alemanha Ocidental e iniciavam a construção do muro que ficaria
conhecido como o Muro de Berlim.

Alheio a tudo isto, na cidade de Setúbal ( até ao facto de não ser uma criança desejada, mas fruto de um "acidente"), um bebé franzino, o segundo filho de um casal, mais desavindo do que amoroso, dormitava algures num berço no rés-do-chão esquerdo de um prédio familiar.

A história deste petiz, saído da casa paterna com 17 anos de idade para tomar a vida a seu cargo, prestes a fazer 61 anos, tem décadas de peripécias dignas de figurar numa novela camiliana; mas isso é o que cada um de nós sempre diz acerca da sua própria narrativa.

Entretanto, o repositório de memórias em que nos transformamos, esse ninguém nos tira, a menos que alguma demência apague o disco rígido das nossas recordações.

Chegamos ao mundo como se estivéssemos chegando a um país desconhecido para uma estada por tempo indeterminado. Mas não é verdade. O nosso tempo é limitado. Precisamos aprender como viver neste novo lugar e vamos encontrar no caminho pessoas que vão nos amar e nos ajudar a lidar com a vida; e outras que não vão gostar de nós e que nos vão tornar a vida mais difícil, mas temos de aprender a lidar com isso. A resiliência é uma prova de vida, a nossa sobrevivência.
 
Assim é o viver. Sabemos que estamos de passagem. Sabemos que nascemos para morrer, e que cada dia a mais é um dia a menos. Vivemos com a angústia da morte atrás de nós, embora a maior parte do tempo façamos de conta que ela nunca vai nos alcançar. Mas só esquecendo a morte é que é possível seguir em frente e dar um sentido à nossa vida. Viver como se houvesse sempre um amanhã.

Assim dito, parece lírico e simplista, mas acho que é mesmo a melhor solução, pelo menos para mim.



segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Deixa o vírus correr



Todos os dias nos noticiários vejo que diversos países por esse mundo fora estão a aligeirar as medidas de contenção e proteção contra o Covid-19. A Dinamarca, salvo erro, vai mesmo abolir o uso da máscara em espaços fechados. Trata-se do primeiro país da União Europeia a levantar as restrições relacionadas com o Sars CoV-2.
 
A medida foi justificada com a elevada taxa de vacinação e com o facto da variante Ómicron ser “menos agressiva”. Mas a notícia está a ser simultaneamente gratificante e preocupante para os dinamarqueses, já que o número de infeções continua a registar máximos diários e os hospitais continuam a trabalhar no limite.

Todos nós, irremediavelmente, mesmo sem possuir valências científicas, opinamos sobre esta catástrofe que, vai para três anos, forra os nossos quotidianos. Eu sou mais um opinante, como tantos outros, mas que fica perplexo ao saber que desde há um tempo, não muito felizmente, morrem em Portugal diariamente, 61, 53, 59 pessoas, sem que os números abrandem. Perante estes factos, como é possível falar-se em aligeirar as medidas de proteção?
 
Estas vexatas quaestios colocam-me as seguintes interrogações: A pandemia já acabou, como alguns iluminados anunciam? Este alijar de medidas é uma forma sub-reptícia de atingir a “imunidade de grupo”? – deixa todos infetarem-se e depois salvam-se os mais aptos e os imunodeprimidos vão para o galheiro. Será que estamos perante uma presuntiva abordagem malthusiana do problema? Uma seleção darwiniana das espécies mais aptas?

Não nos esqueçamos que o sinistro Malthus no “ An Essay on the Principle of Population”, alertava que a população crescia em progressão geométrica, enquanto a produção de alimentos crescia em progressão aritmética e que o crescimento populacional deveria ser controlado, sendo que as epidemias e toda a espécie de doenças, bem como as guerras, eram necessárias ao equilíbrio populacional.
 
Provavelmente estou a efabular cenários que não explicam esta aparente irresponsabilidade de “deixar o vírus correr”, ou, pelo menos, recuso-me a admitir que seja esse o real propósito, mas aqui do alto da minha gritante ignorância cinjo-me aos factos: morrem mais pessoas em cada dia que passa. Qual a sua condição clínica? Tinham comorbidades associadas? Qual a sua idade? Estavam triplamente vacinadas? Em que circunstâncias se infectaram?

Porque será que a DGS, mantendo obviamente o anonimato dos falecidos, não detalha a situação das pessoas que diariamente morrem por Covid em Portugal?