domingo, 25 de abril de 2021

O meu 25 de Abril

No dia 25 de Abril de 1974, tinha eu 13 anos de idade, frequentava o 1º ano do Liceu (hoje, creio, o equivalente ao 7º ano unificado) e morava na Praça da Renovação (hoje Praça do MFA), no primeiro andar do edifício da Caixa Geral de Depósitos, onde o meu falecido pai pontificava como todo poderoso gerente. À época era, tão-somente, o local mais central da cidade de Almada e os cargos de direção incluíam o privilégio da casa (enorme) oferecida pela CGD.
Recordo esse dia como se fosse hoje, pois, com o andar da carruagem, retenho com mais facilidade, na caixa dos pirolitos reservada ao repositório das recordações, as memórias mais antigas do que o que almocei ou jantei ontem. Deve ser mesmo assim, próprio da idade, ou então estarei porventura a iniciar um processo degenerativo, com perda das funções cognitivas, em que a dado momento terei de recorrer ao incontornável memofante. Valham-me as muitas leituras e o estudo musical, que me obrigam ao exercício da massa cinzenta e a tarefas de memorização.
Mas, voltando à descrição que aqui me trás, queria eu contar que estava a preparar-me para ir para a escola, quando o meu pai, ainda com a espuma da barba no rosto e o rádio a pilhas encostado ao ouvido, ia repetindo as notícias: "aconteceu alguma coisa em Lisboa nesta madrugada. Parece que há uma revolução em curso. As forças armadas estão a dirigir-se para Lisboa".
Entretanto, o barulho ensurdecedor de aviões a hélice, os famosos T-6, passavam a baixa altitude sobre a cidade. Ao longe, também se escutava o barulho de helicópteros. Apenas as estações de rádio começavam a dar as primeiras notícias, que não passavam de comunicados a avisar as pessoas para ficarem em casa, pois estava em curso uma revolução. As principais estações radiofónicas já tinham sido ocupadas pelos militares. No intervalo das emissões, escutava-se em repeat uma marcha marcial que se tornou icónica da revolução.
Nessa manhã de quinta feira, para grande satisfação minha, não fui à escola e da varanda do meu quarto, que dava para a Praça da Renovação, comecei a ver os primeiros ajuntamentos de populares, e também alguns veículos militares, descobertos, que passavam, cheios de soldados sentados costas com costas, dirigindo-se provavelmente para o Forte de Almada.
O meu pai acabou por ter de ir para o Banco, acompanhado de uma comitiva da PSP que entretanto chegou a minha casa. As ordens superiores eram para proteger o dinheiro que se encontrava nos cofres e ele, como primeiro responsável, tinha a obrigação de estar perto dos valores dos depositantes. O medo maior era que, a coberto do furor revolucionário, alguma coisa acontecesse ao dinheiro.
A minha mãe, professora, também ficou em casa e proibiu-me de ir para a rua, mas eu nunca fui dado a submissões e jamais tive vocação para obedecer. Ainda hoje, infelizmente, assim sou e nunca consegui cinzelar essa característica de mau feitio. Antes do almoço já tinha tudo congeminado na minha cabeça. Com a desculpa de que ia brincar no arvoredo do Externato Frei Luís de Sousa, ao lado da minha casa, que curiosamente se mantinha aberto, mas sem aulas, contei os meus tostões e fui a pé até Cacilhas. O dinheiro que tinha no bolso dava para duas viagens de cacilheiro e pouco mais.
O que relato aqui já contei a diversas pessoas. Fui para Lisboa ver o 25 de Abril a acontecer: os soldados deitados no chão, rodeados de populares, um militar, com galões dourados nos ombros, a dar ordens através de um megafone roufenho ( soube mais tarde o seu nome: Salgueiro Maia). O Terreiro do Paço e a Rua Augusta a abarrotar de populares, postados atrás dos soldados que se deitavam no chão com as G3. Muitas Chaimites em fila indiana. No Tejo, duas ou três fragatas, não recordo com precisão, da cor do rio, estavam paradas defronte da Praça do Comércio e tinham um aspeto perfeitamente inofensivo, no recorte da sua silhueta contra-luz, como se fossem belos iates de cruzeiro.
Segui a população através da Rua Augusta rumo ao Chiado e, frente ao Quartel do Carmo, de novo um cenário semelhante. Um oficial gritava ordens de rendição aos militares da GNR que se tinham barricado no interior. Soube bem mais tarde que negociavam a saída do Marcello Caetano. Recordo-me perfeitamente de ver o pai do Miguel Sousa Tavares, o falecido Francisco Sousa Tavares, ex-PPD, ex-marido da Sofia de Mello Breyner, empoleirado numa árvore aos gritos. O barulho era incessante e eu acotovelava-me entre a multidão,
Vi o 25 de Abril de 1974 a acontecer e na altura não percebi rigorosamente nada do que estava presenciar. Para mim, era uma espécie de um plateau de um filme, com bons de um lado e maus do outro; ou, mais parecido ainda, uma daquelas peças de teatro modernas " on going" que se desenrolam na rua e os espetadores vão seguindo os atores. Foi exatamente isso que eu presenciei e talvez seja esta a forma mais honesta de eu descrever o "meu 25 de Abril".
Tinha uma vaga consciência do que era a Pide e a Mocidade Portuguesa, os bufos. Sabia que, nas conversas em família do Marcello Caetano, o meu pai não gostava quando nós metíamos uns cornos ao chefe do Governo, sempre que ele discursava na televisão. Era um tempo horrível e muito chato e só o meu pai lá em casa gostava de assistir àquela ladainha paternalista, que na verdade eu não entendia ou não fazia o mínimo esforço por entender.
Eu participei no 25 de Abril como um espectador ignoto de tudo o que estava a suceder, como se fosse uma criança a assistir a um filme para adultos ou um iliterato a ler um ensaio filosófico. Na altura não percebi nada do que presenciei, mas confesso que gostei. Foi preciso amadurecer um pouquinho mais para perceber o momento histórico que tinha passado sob os meus olhos.
Só muito mais tarde contei aos meus pais que desobedecera às suas ordens e tinha ido para o Terreiro do Paço. Hoje tenho consciência que se algum magala mais nervoso tivesse aberto fogo naquele dia, teria havido uma chacina, tal a quantidade de populares mirones amontoados. Imagine-se o nosso emplastro e multiplique-se por milhares de clones. Assim era a disposição do povo naquele dia junto dos militares.
Há um vídeo da RTP em que eu apareço por fugazes instantes. Um puto magrinho no meio de uma turba de populares. Já escrevi por várias vezes à televisão pública a pedir uma cópia da filmagem e nunca me deram resposta.
O que eu assisti naquele dia foi a uma espécie de Guerras do Alecrim e da Manjerona, uma ópera joco-séria, que, por descuido, poderia ter terminado em grande tragédia. Mas, para meu consolo, tenho a absoluta certeza de que os militares - na sua maioria, pouco mais velhos do que eu, com exceção dos oficiais diretamente envolvidos no planeamento das operações - também não faziam rigorosamente ideia alguma do que estavam ali a fazer.
Éramos todos incautos e inocentes como crianças de tenra idade. Estávamos ali porque era um dia giro, sobretudo diferente dos demais, e todos cuscas por defeito de fabrico.
No regresso a Cacilhas não paguei bilhete no cacilheiro. Todos saltavam as cancelas e eu fiz o mesmo. A anarquia que haveria de se instalar já se esboçava. Com o dinheiro que sobrou, ainda passei no Café Central e comi um bolo podre, o meu favorito, pois sempre que vou a Almada é das únicas coisas que não abdico fazer.
Entretanto a Revolução tinha começado.