sábado, 30 de outubro de 2021

Dias cinzentos

 



Hoje, pela primeira vez este ano, sinto-me finalmente nos preâmbulos do inverno. A noite de ontem foi de temporal intenso e de manhã, bem cedinho, descobri a varanda com vasos derrubados, o chão encharcado e cheio de folhas arrancadas pela intempérie. É daqueles dias em que apetece ficar em casa, preguiçando com um livro entre as mãos, vendo um filme interessante ou praticando canções novas na guitarra. Às cinco e meia da tarde já é quase noite cerrada e sob a consistente camada de nuvens, a perder de vista, que vislumbro da janela do meu escritório, tremelicam, ao longe, as luzinhas amarelas que alumiam a estrada e as aldeias em redor. À parte alguns cães que de vez em quando ladram, o silêncio é sepulcral e só é interrompido pelo ruído irritante das minhas falanges a atacarem as teclas de plástico do teclado. Os meus gatos já dormitam com indolência, enrolados um no outro, na almofada da cadeira junto a mim e só me vem à memória uma frase de Fernando Pessoa, daquelas que reputo bastante irritantes, por conter uma ideia forçada de otimismo: “Um dia de chuva é tão belo como um dia de sol. Ambos existem; cada um como é.” Não podia estar mais discordante, eu que sou um ser solar e adoro a luz, a primavera, o verão, os dias azuis e a florescência da natureza. A aproximação do inverno é para mim a chegada das trevas medievais do longo inverno, que auspicia uma estação de negritude, frio e chuva, plena de monocromatismos e sobretudo demasiado longa. 

Os amantes dos dias chuvosos com certeza adoram quando as primeiras nuvens apontam no céu. Alguns até sentem o cheirinho da chuva chegando! Eu, definitivamente, não, mas a água que hoje cai relembra de que tudo na vida faz parte de um grande ciclo e de que somos parte de um plano maior que nós mesmos. Assim como a água que evapora, forma nuvens e depois cai como chuva, nós também estamos em constante transformação e renovação, partindo de um estado para o outro e de uma fase da vida para outra.

Esboçadas estas linhas, em claro desafio ao “horror da folha em branco” que tanto assola escritores como escreventes, concluo que pouco ou nada tinha para dizer para além destas trivialidades. Mas, seguindo a mesma linha de desplante e pleno desrespeito por conteúdos sérios e merecedores de abordagem, regozijo-me pela minha sopa de repolho, tomate e abóbora, entre outras leguminosas que para lá deitei, que está finalmente pronta e saborosa em modo repouso no meu fogão. E se há coisas que estes dias de negrume convidam, para além de outras coisas inconfessáveis que dispenso relatar, é degustar comida quentinha e calórica. Para a lareira ainda é cedo. Lá mais para meados do mês que vem não há noite que não apeteça. Mas agora, se me dão licença, vou ver o telejornal e aterrar na realidade do orçamento que não existe e da pandemia que não acaba, pois por estas bandas já bolsei demasiadas palavras redondas.



quinta-feira, 21 de outubro de 2021

A novíssima complicómetra



Há mais de 20 anos que me governava com a minha velhota máquina de lavar roupa Philips Whirlpool, completamente manual, com o botãozinho dos programas que se rodava e fazia aquele trec trec trec reconfortante. Até à ferrugem, que já a estava a consumir como um tumor, eu me afeiçoara. Não lavava a quente desde o princípio de incêndio no termostato, ocorrido faz algum tempo, e durante as centrifugações (mais pareciam erupções vulcânicas), não raro, quase vinha ter comigo ao escritório aos saltos pelo corredor. Com o rodar dos anos, a Philips ganhou uma cor pérola, como os dentes de um fumador inveterado, longe dos anos áureos em que resplandecia brancura. Mas, como acontece na vida biológica, também as máquinas têm um fim.

Ontem, relutante, comprei uma máquina de lavar moderna, daquelas que têm música catita a anunciar o início e o fim dos ciclos de lavagem, com 40 programas (só vou utilizar um, talvez dois, o resto são futilidades), ecrã azul luminoso, abertura para colocar peças de roupa esquecidas sem desfazer o programa, que promete poupar muita energia e água e me obrigou a decifrar um livro de instruções pleno de generalidades e muito pouco facilitador. As legendas que vão desfilando no ecrã estão todas em inglês (a outra opção, pasme-se!, é o dinamarquês) e tudo é automatizado, o que deve desencorajar pessoas com iliteracia nas novas tecnologias ou desconhecimento da língua de Shakespeare a comprar uma lavadora dos tempos modernos.

Detesto ter de ler livros de instruções e não sou particularmente fã das novas tecnologias. Lido com elas porque tem de ser, porque já não se vendem eletrodomésticos sem os complicómetros do costume, que, de resto, fazem as delícias dos taradinhos por este género de coisas. Gosto de utensílios simples, robustos e fiáveis, com as essencialidades para um desempenho sem rococós. Já me disseram que quando avaria a centralina de um bicho deste calibre, mais vale comprar uma complicómetra lavadora a estrear, porque o preço da peça não compensa a reparação.

Longe vão os tempos em que via a empregada lá de casa a lavar as roupas no tanque de cimento com sabão macaco ou azul e branco. Só mais tarde, no final dos anos 60, veio finalmente a almejada máquina de lavar roupa (durou mais de 30 anos na casa paterna), uma Miele made in Germany, que custou uma fortuna na época.

Não sei se alguma aversão que dispenso às máquinas de lavar roupa terá a ver com o facto de a minha gata angorá, a Fô, branquinha, com nariz rosa e patinhas da mesma cor, ter morrido asfixiada dentro do tambor dessa máquina. Como todos os felídeos, a bichana era metediça e, em má hora, lembrou-se de ir dormir a sesta para dentro da Míele. A empregada não reparou e fechou a porta. De manhã acordei com os gritos lancinantes da minha mãe.

Com 13 anos de idade, lembro-me que foi o meu primeiro grande desgosto. Novas ou velhas, malditas sejam as máquinas de lavar roupa!