sábado, 28 de maio de 2016

Consenso e Conflito

As lutas contínuas desgastam-nos, envelhecem-nos, separam-nos. Prefiro de longe o consenso ao conflito, a concórdia à guerra. E quando discordo em absoluto de alguém, inamovível e inconversável, regra geral, deixo-o falar sozinho. Evito pessoas inconciliáveis, que nunca dão o braço a torcer. Sempre que possível, evito o conflito, a escalada originada por uma discussão, que, não raro, descamba na irracionalidade e no débito de descargas emocionais absurdas, desajustadas e ocas, proferidas apenas com o fito de magoar.

Nessa fase, aquilo que parecia ser à partida uma saudável troca de argumentos, um desajuste que se queria ver ajustado, transforma-se numa espiral de agressividade. Naturalmente por defeito meu, que suspeito tenha a ver com a verbosidade enfática com que defendo certas teses, acontece que muitas pessoas sentem um prazer quase mórbido em me contrariar. Não que a atitude de contra argumentar, a clivagem, seja pouco salutar, ou construtivamente incorreta. Antes pelo contrário. E não foram raras as vezes em que, à conversa com pessoas muito mais sensatas e lúcidas do que eu, depois de alguma introspeção, me tenha forçado a mudar de pensamentos e atitudes. O cerne da questão é outro.

Refiro-me naturalmente à guerrilha em que rapidamente se pode transformar uma troca de argumentos contrários e inconciliáveis. E as tensões são sempre superiores quando as principais linhas de clivagem se situam no plano da moral, ou no âmago das formas primárias de subjetivar que respeitam a cada um de nós.

Quando a discussão tem por temáticas realidades mundanas, as tensões são indubitavelmente mais baixas, pois a capacidade negocial e conciliatória é maior. O que eu rejeito liminarmente é a querela fácil e brejeira e o transbordar agressivo de quem, por recusar ficar na 'mó de baixo', independentemente da justeza das ideias que contradita e apenas porque sente a sua estima maculada por um argumento que julga lhe está a ser imposto, reage com desproporcionalidade.

Todos queremos ser inovadores, donos da razão, seres únicos, dotados de uma armadura moral e de uma estrutura de pensamento assertiva. A natureza humana assim nos fez, dessa maneira formatada e irrevogável.

Eu sou, sobretudo, um homem de paz, de mimos e de amor, assumidamente lamechas, embora tenha um feitio assaz complicado. Sou temperamental e agridoce: tanto fervo em pouca água e descampo, como caio na lisura. Acho que vou envelhecer irremediavelmente assim.
Gosto do bom humor e da doçura. Detesto a contenda e a crispação; e muitas vezes as minhas atitudes de 'fuga', e uma certa não sociabilidade, são confundidas com cobardia.

Há justamente quem pense que para mantermos íntegra a nossa personalidade, para nos sentirmos valorizados como pessoas, devemos ter sempre pronta na ponta da língua, uma resposta implacável e demolidora, como fora uma espada apta a ser desembainhada, perante um argumento ou uma crítica que nos desagrade.

Deixo essa gloriosa tarefa para os fazedores de opinião que ganham a vida participando em debates e contendas. Tenho uma estrutura de pensamento, arquétipos morais, vícios, preconceitos, contradições, tiques, e não sei quantos mais defeitos, com mais de meio século de sedimentação. Admito e agradeço que me mostrem o outro lado do espelho, me façam mudar de opinião, me coloquem num lugar onde a forma como perspetivo as coisas suporte um olhar diferente e me conduza a conclusões opostas. Não tenho é pachorra para corridinhas para ver quem chega em primeiro lugar, digladiações frustres, contendas onde a regra é ganhar o que berrar mais alto os seus argumentos e for capaz de colocar a voz duas oitavas acima.

Em troca desta consciente abdicação, aceito para a minha vida um acrescento de solidão, uma sociabilidade mitigada e uma seletividade cada vez maior na forma como escolho aqueles com quem interajo no tempo e no espaço - aquele que resta depois do trabalho, das minhas leituras, da minha escrita, da minha música, dos meus pensamentos. Depois dos meus tão queridos desertos de solidão, viro-me naturalmente para aqueles com quem tenho empatias, os que admiro e os que amo.

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Em tua memória, Paula C.


Hoje, dez anos volvidos após a sua morte, recordo-me da Paula C., uma amiga de infância que escolheu abreviar a vida, porque ela há muito lhe parecia um fardo insuportável. Se fechar os olhos, consigo vê-la no pátio do Liceu de Almada, nos finais anos 70, princípio dos anos 80: o cabelo cortado à Malvina, aquela da novela «O Casarão», as mãos sempre enfiadas nos bolsos estreitos de umas Levis ruças, uma camisa justa com folhos nos punhos e o eterno cigarro aperrado no canto dos lábios.

Uma situação tremenda: um ser que, muitos anos antes de morrer – de facto suicidou-se – há muito decidira alhear-se da própria vida e começara a agir como se nada mais tivesse realmente importância. Vivia numa passividade extrema perante tudo e tendia para os excessos, sem cuidar de refletir nas consequências. Essas, pareciam-lhe indiferentes, risíveis até. Chegou a um estado em que cessou de se projetar no futuro e apenas o presente contava. A sua ligação à existência parecia-lhe tempo inútil, tempo a mais. A vida era para ser vivida à velocidade de um foguete. E as frustrações da vida, com as quais ela nunca conseguiu lidar, sublimava-as sempre com excessos, compensações desnorteadas, inconsequentes, eternas fontes de sofrimento posterior.
Ainda hoje tenho uma certa dificuldade em incutir no pensamento, a certeza de que a Paula se precipitou para a morte, atirando-se de um oitavo andar e nunca mais a vou ver. Nós, os amigos, nem tivemos tempo para nos despedirmos dela, tal a pressa que ela teve em se despedir da vida.
Que tão fortes motivos pode ter um ser que renuncia propositadamente à vida, numa idade ainda relativamente jovem, antes de chegada a inevitável hora? É um mistério total que encerra razões que a minha razão desconhece.
Não lhe conhecia doenças crónicas, mortais, ou enfermidades que justificassem tal atitude. Apenas uma angústia profunda e uma inadaptação constante aos ritos sociais ditos "normais", faziam-na viver num drama interior que constantemente a sobressaltava. Foi doença mental, disseram os entendidos nestes assuntos. Eu digo que ela morreu de tristeza.
Muitas vezes encontrei-a, quer durante os tempos do Liceu, quer mais tarde na Universidade, afundada em desesperos (fomos colegas desde o liceu até à licenciatura). Nem o seu casamento recente, a atual estabilidade laboral (era chefe de divisão num Ministério - quadro superior da função pública - e gozava de alguma folga económica), pelos vistos, lhe trouxeram paz ao seu conturbado espírito.
A braços com os meus próprios dramas e problemas pessoais, hoje assumo que a ameaça do ódio à vida, bem como a ancilose da capacidade de nos amarmos, são conjuras que se podem urdir em qualquer momento e virar-se contra nós. E para além da obscuridade de histórias fragmentadas que me alcançaram, sobre os motivos que a levaram a tomar essa irrevogável atitude, ainda me custa aceitá-las como razões suficientes.
Que lhe diria eu se tivesse podido? Eu que também conheço os silêncios do vazio e a eterna espera da luz? Que poderia eu dizer-lhe, caso fosse a tempo de lhe segurar um braço? Que poderia eu dizer-lhe sem a magoar, sem lhe dar a impressão que não a queria compreender? Sem os ares de quem quer pregar a moral da verdade e é o arauto da felicidade? Dir-lhe-ia, talvez, para tentar manter a esperança e descortinar novos rumos para a felicidade, pois eles efetivamente existem. Mas a obstinação doentia dos suicidas, cedo, ou tarde, acaba por prevalecer. O mal é a fixação apoderar-se deles. A ideação toldar-lhes a mente. Depois só há uma questão: o tempo e o modo.
O desaparecimento da Paula, sempre que o recordo, transformou por completo a minha consciência acerca da morte. Revelou-me tudo o que havia de falso na relação com a minha própria existência e com a minha própria morte. Mudei definitivamente de ideias no que diz respeito a considerar que a morte não tem nada a ver com a vida, que não nos diz nada, que não existe ligação possível entre uma e outra, a menos que nos iludamos. Conseguiu libertar-me dessa absurda convicção de que a morte não tinha nada a ver com a vida, que não representava nada para mim. Pela primeira vez, senti com extrema agudeza, quão ténue, frágil e efémero é o sopro de vida, que toca cada um de nós em cada dia que passa.
RIP, Paula C., hoje que passaram dez anos sobre o dia da tua morte, relembro o fim que tu própria escolheste para ti: um salto em forma de anjo, às primeiras luzências da manhã, da varanda do oitavo andar onde moravas, na direção da calçada. És, desde há algum tempo, mais uma estrela no céu.




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