segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Aniversário do MTC - a crónica antecipada

Muitas vezes me perguntam se alguma vez publiquei as coisas que escrevo, ignorando que o acto de escrever pode ser apenas uma catarse, e só isso mesmo. Uma actividade que nos alivia de coisas que de outro modo ficariam a ruminar dentro de nós e que carecem ser por nós interpretadas e posteriormente expulsas. Na verdade, à parte uns quantos poemas publicados num semanário local e a colaboração efémera num pasquim universitário, a coisa mais importante que publiquei foi uma elegia fúnebre, que acabou sendo um poema de amor, gravado a oiro numa lápide do cemitério de Santa Cruz, na Ilha da Madeira. Foi essa a 'publicação' que mais me honrou, quer pela amizade que à data nutria pela pessoa que ma pediu, quer pelo propósito que serviu: a expressão em verso de uma mágoa profunda com a partida de um ente querido. Não menciono a escrita em blogues por ser uma evidência. Mas o mais curioso desta minha incursão pela escrita, acaba por ser a minha estreia como cronista motard.

Por terem lidos uns quantos comentários e algumas crónicas escritas por mim num conhecido site motociclista nacional, quer o José Valença, presidente do MTC, quer o António Costa, fotógrafo e cronista residente, decidiram, unilateralmente, fazer de mim o Fernão Lopes dos motociclistas. Encomendam-me comentários, crónicas, querem que eu seja redactor no site do clube, impõem-me dead lines, pedem-me que eu ilustre com palavras os eventos do MTC, tudo a tempo da publicação semanal no site da associação. Fazendo tábua rasa dos meus argumentos, de que o meu género de escrita, intimista e noticiarista, é mais próprio para publicação em blogues, onde o cunho pessoal está sempre presente, 'deslumbraram-se' com a minha incapacidade natural de ser sumativo e de apreciar os barroquismos literários, e pedem-me que escreva algumas das crónicas dos eventos motociclistas. Será que é desta que os motards puseram os motores a ronronar e descobriram a magia das palavras, ou acharam piada a um companheiro das motas que, além da paixão pelo moto-turismo, também conhece outros gostos, outras paixões, e as partilha com os demais? O que eu, com franqueza, nunca me imaginei foi vir algum dia a escrever crónicas em sites de motociclismo. Para que mais estarei eu guardado, meu Deus?!


As nossas montadas perfiladas ao sol da manhã
O jovem piloto a quem confiei a minha vida por 20 minutos
Coimbra vista do ar numa tarde cheia de sol
O passarinho de alumínio reluzente que me levou ao céu
Pista do aeródromo de Coimbra

Este ano o MTC tem um calendário bastante activo no que respeita a actividades e basta consultar o seu site para constatar isso mesmo. Já perdi um passeio por não ter estado atento às datas e não marquei presença nos "Esquimós", em Valhelhas, por absoluta impossibilidade. Mas hoje, dia 27 de Fevereiro de 2011, dia em que se comemoram vinte e três anos desde o nascimento do MTC, achei que, apesar de ser um sócio demasiado recente e ainda sem história na associação, não podia deixar de participar nesta importante efeméride.

Ainda não percebi bem porquê, atenta a minha incapacidade de escrever sem ser sumativo, e perder-me sempre em redondilhas, pouco consentâneas com uma crónica que ser quer breve e prática, o António Costa insistiu, uma vez mais, para que eu escrevesse algumas linhas sobre este dia.


Quando deixei Leiria, pelas 08h30 da manhã, o céu estava bastante enevoado e a temperatura deixava antever um dia frio e monocromático, mas ao aproximar-me de Condeixa, o sol lembrou-se de dar um ar da sua graça, acabando por nos prendar a todos com um resto de dia quase primaveril. Não encontrei praticamente trânsito nenhum pelo caminho, pelo que circulei a uma velocidade um pouco acima do recomendável para as limitações que a estrada impõe, e rapidamente cheguei à cidade dos doutores.


Atestado o depósito da mota à chegada a Coimbra, dirigi-me para Taveiro, a sede do MTC, onde fui encontrar bastantes camaradas motociclistas em alegre confraternização matinal. Estacionei a Aprilia e comecei por cumprimentar todos, em especial aqueles que já conhecia de anteriores encontros, mas cujos nomes a minha frouxa memória ainda recusa fixar - Há uma vaga esperança de que com o rodar do tempo esta disfunção melhore.


Depois de um curto convívio e dos cafés da praxe, o José Valença, com o seu jeito inimitável de líder desta grande tribo motociclista, pediu a atenção do pessoal presente para dar uma explicação sumária sobre as actividades que nos esperavam, bem como do trajecto a seguir.


[Estavam presentes cerca de trinta motas e seguramente mais de quarenta pessoas, onde se incluíam muitos familiares e amigos dos sócios.]


A incursão começou por uma visita à Adega Cooperativa de Cantanhede, situada na cidade de Cantanhede, terra de vinhas e grandes vinhos, onde se localiza a principal mancha vitícola da Região Demarcada da Bairrada. A cooperativa, fundada em 1954, é responsável pelo fabrico de vinhos e espumantes que ocupam lugares cimeiros na produção nacional, com um peso de relevo na nossa exportação.


A visita começou pelas caves, a lembrarem vagamente as catacumbas romanas, húmidas como se querem todos os espaços onde se produz este tipo de vinhos, onde fomos instruídos acerca das técnicas morosas e delicadas utilizadas no fabrico de espumantes de alto gabarito. A título de curiosidade, já que a cultura nunca é uma demasia para ninguém, aprendemos também que as vinhas da Bairrada, com origem no período das legiões romanas, anteriores aos primórdios da nacionalidade, atestam a secularidade dos nossos vinhos, com especial ênfase para os da região de Cantanhede.


Depois da visita à Adega Cooperativa e após a prova do famoso espumante, já com alguma fome a fazer-se sentir, seguimos viagem com destino ao Aeródromo Municipal de Coimbra, situado em Antanhol, para o almoço, um dos momentos incontornáveis de quaisquer passeios organizados pelo MTC. A ementa, e, porventura, não o mencionaria caso se tratasse exclusivamente da minha opinião - bacalhau fresco no forno -, a avaliar pelas queixas unânimes de muitos camaradas, deixou muito a desejar, mas a boa disposição, sempre presente, e os bolos deliciosos que se seguiram à refeição, chegaram, de sobra, para compensar o prato de 'bacalhau sem sal'.

No almoço, estavam presentes dois motociclistas fundadores do MTC, que tomaram a palavra, com a voz embargada pela emoção, para manifestarem o seu agrado pelo facto da associação, por eles fundada à 23 anos atrás, ainda manter vivo o mesmo espírito que presidiu à sua criação: fazer turismo de mota em ambiente de total fraternidade.


Um dos momentos mais simbólicos do dia foi a pose para o remake da famosa foto, obtida há precisamente 23 anos atrás, na pista do aeródromo, com a diferença de que as motas e os motociclistas eram outros, mas todos imbuídos do mesmo espírito daqueles jovens que decidiram naquele dia fazer nascer o MTC.


Seguiram-se baptismos de voo, a preços módicos, que constituíram uma excelente oportunidade para quem quis voar pela primeira vez; e para os outros, nos quais me incluo, a repetição sempre apetecível de fotografar Coimbra vista lá do alto. O jovem piloto, nas mãos do qual colocámos as nossas vidas durante 20 minutos, afiançou-nos que pilotar aquela ave de alumínio é mais fácil do que conduzir uma mota de grande cilindrada. Vamos lá nós motociclistas acreditar nisso?!..

Despedimo-nos com um até breve, já que dentro de 15 dias vamos encontrar-nos de novo para um passeio mais longo que nos ocupará todo o fim-de-semana. E ansiamos todos por isso.


Jorge Rebelo

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Mais para a esquerda


A clivagem irremediável entre criaturas que vivem eternamente nas luzes da ribalta e os condenados a viver na sombra sempre me incomodou. Sacramentalmente, por razões do coração, onde cabem opções politicas e morais, entre outras, sempre me insurgi contra os poderosos e me senti mais próximo daqueles que nada têm, e cuja importância é tão diminuta que grande parte da sociedade acha-se no direito de os desprezar. Esta minha forma de sentir afirma-se com clareza sempre que me deparo com pessoas de um certo calibre. Os meus heróis pouco ou nada têm a ver com gente que dribla bem com uma bola nos pés ou nasceu para os lados da Quinta da Marinha em piscinas repletas de dinheiro. No amor em fazer bem ao próximo, na cultura, nas artes em geral, na poesia e na literatura, fermenta-se a matéria de que são feitos os meus heróis - aqueles que não me importava de imitar,  fosse o caso de possuir a sua verve. Infelizmente vivemos numa época de imediatismos que atribui majoração a capacidades pouco prestáveis e à posse de bens materiais. A ânsia insaciável de subjugar o próximo, a vertigem do poder, o estar acima do outro, são os valores-paradigma que guiam o tempo em que vivemos e no qual, confesso, não me sinto de todo integrado. Talvez eu seja um romântico, no sentido mais lato da expressão, um idealista, um fantasioso, como já me chamaram, com um modo de pensar mais consentâneo com modelos  societários hoje considerados retro, ou pertencentes ao jurássico das ideias; mas, ainda assim, não abdico daquilo que me constitui e integra. Não fora isso, o que seria feito de mim?     

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Sinatra & Jobim - The girl from Ipanema (trad./trans.)

Um adeus enevoado

Foi num dia fúlgido, de nuvens condoídas,
Cansado de me cansar com luzes irreais,
Que ofertei da minh’alma esvanecida,
O néctar dos meus insanos ideais.

Verso a verso, esqueci a sua cintura de mármore,
O odor a cânfora que se despedia do seu corpo,
O cabelo luzente à solta no crepúsculo à beira-mar.
[Esperava ver passar um navio de pérolas e quase morri de tanto esperar…]

A lua desce agora nua e incandescente sobre a cidade,
Lua macia, irónica, que embacia o meu olhar cheio de asas de solidão sem descanso.

Os meus olhos  já não se fecham de noite,
Antes fitam um norte de penhascos gelados,
Onde o espírito pernoita, já longe de mim,
Por entre alvoroços engomados de sonhos…



[Republico poesia minha, algo datada, é certo, mas com a ténue esperança de que um destes dias a minha mente e o meu coração sintam de novo a vontade de poetar. Sinto saudades, sim,  mas é a veia quem dita o tempo e o modo].

Shut the fuck up!



Quem fala de mais até dá bom dia a cavalo!



No meu local de trabalho há um grupo de galinhas poedeiras que acham que a forma ideal de comunicação é o riso e a fala ininterrupta. Usam sem parcimónia o instrumento vocal, em modo constante e uma oitava acima, entre-cortado por gargalhadas em falsete, para tecerem comentários sobre os mais variados assuntos, por maior que seja a insignificância de que os mesmos se revistam. Falam como se fossem matracas, até à exaustão, ignorando completamente o valor do silêncio ou a oportunidade da intervenção. Parece que se não falarem em alta voz e num atropelo de palavras vão implodir - o que nem seria mau de todo - e interrompem constantemente a minha parca concentração. Eu também gosto de falar. Gosto mesmo muito. Mas guardo as minhas palavras para fóruns apropriados e evito perder tempo com trivialidades que não carecem de grandes comentários. Talvez que a minha impossível sociabilidade com um certo tipo de gente, essa irremediável clivagem, influencie a incomodidade com o ruído de fundo provocado pelas minhas colegas poedeiras. Uma vez que ainda não inventaram próteses com filtros auditivos, nem são permitidos auriculares ou head phones no local de trabalho, que possibilitem o sufoco deste barulho constante, todos os dias tenho de fazer um esforço sobre-humano para me alhear dos corócócós. É um lugar comum dizer-se que as mulheres falam pelos cotovelos, pois também há homens assim. As pessoas gostam, sobretudo, de se fazer ouvir e de se escutarem a si mesmas, talvez por ser uma forma imediata de se sentirem afirmadas e correspondidas. Existe um ditado que diz: "falar é prata, calar é ouro", que assenta como uma luva naquilo que me apraz hoje dizer. As pessoas que falam em demasia, causam sérios transtornos a todos, inclusive a elas mesmas; e justamente por falarem demais não têm tempo para pensar, ouvir e aprender. E as palavras e as atitudes têm esse grande poder de gerar sensações agradáveis ou não. Uma palavra bem colocada estimula pessoas e consegue bons resultados. Uma palavra mal colocada gera desconforto, constrangimento e o resultado será sempre nulo ou desastroso. É claro que depende do contexto e a tendência também tem muito a ver com o genótipo e o fenótipo da criatura em apreço. 

A probabilidade de algum dia uma das minhas colegas descobrir o meu blogue e ler este texto é reduzida, mas a acontecer tinha a inegável vantagem de ficarem a saber o que penso delas. Eu prefiro – e creio que o faço melhor – escrever do que falar. Escrever é a minha forma de expressão por excelência, embora não seja necessariamente inócua, nem isenta de contundências ou contradições, mas faço os possíveis por a preservar de ruídos e atropelos, ou retornos idiotas e indesejáveis, que não me apeteça tolerar.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

O Capuchinho Vermelho




O Lobo motard e a sua bela garupa
[Versão dos Irmãos Grimm (século XVII) - truncada da história original de Perrault, bem mais violenta e sem um final feliz - seguida de comentários (meus) inspirados na (re) leitura de algumas partes do celebérrimo livro 'A Psicanálise dos Contos de Fadas', que acabam por rejeitar o registo interpretativo original e seguir um raciocínio, porventura,  muito mais delirante. ]

Era uma vez uma linda menina de quem todos gostavam muito. A avó, então, essa nem sabia que mais lhe havia de dar! Certa vez ofereceu-lhe um capuchinho de veludo vermelho que lhe ficava tão bem que a menina nunca mais o tirou e assim passaram a chamar-lhe “Capuchinho Vermelho”.
Um dia, a mãe chamou-a e disse-lhe:
— Anda cá, Capuchinho Vermelho. Pega neste bolo e nesta garrafa de vinho e leva‑os à tua avó, que está doente. Vão fazer-lhe bem. Quando lá chegares não te esqueças de lhe dar um beijo e não andes a bisbilhotar pela casa toda. Agora, é melhor ires antes que fique muito calor. E não te afastes do caminho senão tropeças, cais, partes a garrafa e a avó fica sem nada.
― Vou fazer tudo direitinho! ― respondeu o Capuchinho Vermelho, despedindo-se da mãe.
A avó vivia no meio da floresta, a cerca de meia hora da aldeia. Na floresta, o Capuchinho Vermelho encontrou o lobo, mas, como não sabia que ele era mau, não se assustou.
― Bom dia, Capuchinho Vermelho ― disse-lhe ele.
― Bom dia, senhor Lobo.
― Onde vais tão cedo?
― Vou a casa da minha avó.
― E o que levas no avental?
― Levo um bolo que fizemos ontem e uma garrafa de vinho. São para a minha avó, que está doente, ganhar forças.
― E a tua avó, onde é que ela mora?
― Mora um pouco mais longe. A casa fica debaixo de três grandes carvalhos e, mais adiante, há três nogueiras. Já a deves ter visto.
O lobo pensou: “Esta menina tenra deve ser uma delícia. Bem melhor do que a avó. Tenho de arranjar uma artimanha para as comer às duas”.
Acompanhou o Capuchinho Vermelho por uns momentos e disse-lhe:
― Capuchinho Vermelho, já viste que lindas flores? Por que não olhas à tua volta? Tenho a impressão de que nem ouves o chilrear dos passarinhos! Vais a direito como se fosses para a escola e, no entanto, aqui na floresta é tudo tão divertido!
O Capuchinho Vermelho levantou os olhos e viu os raios de sol a dançarem entre as árvores, por todo o lado flores, e pensou: “A minha avó havia de ficar toda contente se eu lhe levasse um ramo”.
Saiu do caminho e pôs-se a colher flores. Mal colhia uma, logo via outra mais bonita adiante, corria para lá e assim se foi embrenhando na floresta.
Quanto ao lobo, esse correu a casa da avó e bateu à porta.
― Quem é?
― É o Capuchinho Vermelho. Trago-te um bolo e vinho. Abre!         
― Dá a volta ao trinco ― gritou a avó. ― Estou demasiado fraca para me levantar.
O lobo deu a volta ao trinco, empurrou a porta, entrou e, sem dizer palavra, foi direito à cama da avó e comeu-a. Depois vestiu-se com as roupas da velhinha, pôs a touca, deitou-se na cama e correu as cortinas.
Entretanto, o Capuchinho Vermelho apanhava flores, e só quando já não conseguiu pegar em mais é que se lembrou da avó e se pôs de novo a caminho. Ficou espantada ao ver a porta aberta e, quando entrou, tudo lhe pareceu estranho. “Meu Deus – pensou – que medo tenho hoje, quando gosto tanto de estar com a avó!”
Deu os bons-dias, mas não lhe responderam. Foi até à cama e abriu as cortinas. A avó, deitada com a touca enfiada até aos olhos, tinha um ar esquisito.
― Oh! avó, que grandes orelhas tu tens!
― São para te ouvir melhor, minha netinha.
― Oh! avó, que grandes olhos tu tens!
― São para te ver melhor, minha netinha.
― Oh! avó, que grandes mãos tu tens!
― São para te abraçar melhor, minha netinha.
― Oh! avó, que boca tão grande tu tens!
― É para te comer.
Dizendo isto, o lobo saltou da cama e devorou o Capuchinho Vermelho.
Já sem fome, voltou a deitar-se, adormeceu e pôs-se a ressonar muito alto. Um caçador que, precisamente naquele momento, ia a passar por ali, pensou: “Como é que a velha está a ressonar tão alto? É melhor eu ir ver se ela não precisa de nada.”
Entrou no quarto e aproximou-se da cama: o lobo estava lá deitado.
― Até que enfim que te encontro, grande patife! Ando há tanto tempo à tua espera.
Pensou em apontar-lhe a arma; mas lembrou-se de que o lobo podia ter devorado a avó. Assim, não atirou; pegou num par de tesouras e pôs-se a abrir-lhe a pança. O lobo continuava a dormir. Ao dar as primeiras tesouradas, o Capuchinho Vermelho saltou lá de dentro a dizer:
― Ai que medo eu tive! Como estava escuro dentro da barriga do lobo!
Depois foi a vez de a avó sair, ainda viva, mas mal podendo respirar. O Capuchinho Vermelho foi rapidamente buscar umas pedras grandes e com elas encheu a pança do lobo. Quando este acordou, quis fugir, mas as pedras eram tão pesadas que caiu ao chão e morreu.

Então os três ficaram todos contentes. O caçador ficou com a pele do lobo. A avó comeu o bolo e bebeu o vinho que a neta tinha trazido e sentiu-se melhor. Quanto ao Capuchinho Vermelho, pensava: “Nunca mais volto a desviar-me do caminho quando a minha mãe mo proibir.” 

Estive a reler parcialmente o famoso livro 'A Psicanálise dos Contos de Fadas',  mormente a parte em que aborda a história do Capuchinho Vermelho, um dos contos mais conhecidos do repertório das histórias da nossa meninice, e seria quase tentado a dizer que já tudo foi escrito sobre ele. Será que a moral da história não é clara? “O Capuchinho Vermelho concluiu que não mais deveria deixar o caminho traçado para vadiar na floresta.” O conto é normalmente apresentado como um aviso às crianças, nomeadamente às raparigas, para que tenham em conta os perigos que as espreitam e desconfiem de tudo e de todos, a fim de se furtarem a encontros indesejáveis e evitarem acabar na 'barriga' de um lobo. Esta visão moralista remonta à versão truncada de Perrault, publicada no final do século XVII – infelizmente mais conhecida em França do que a dos Grimm – e na qual o episódio do caçador a libertar a menina e a avó do ventre do lobo foi esquecido. Contrariamente à versão dos Grimm, o conto de Perrault acaba mal. Na versão original, o lobo salta sobre a menina e devora-a tout court. É uma comezaina efectiva, sem regresso nem arrependimentos, o que leva a um severo aviso à navegação, feito às meninas bonitinhas e gentis, que não devem dar ouvidos aos lobos velhos e argutos - os Lobos Maus -  não sendo assim de estranhar se um deles, mais esfaimado, as tomar de manjar. Trata-se, sim, da hipótese de comer e ser comido, numa metáfora que só serve se um deles efectivamente comer o outro; e este último for por ele comido; e nunca para uma situação em que se possam comer mutuamente, como fica claro.

Tentando não me deixar influenciar pelo registo do livro, nem pela interpretação analítica que faz do conto, achei melhor explicar a minha própria forma de encarar a metáfora nele contida, apresentando algumas soluções para o fatalismo que encerra. 

Perante o destino, quase irrevogável, do incauto Capuchinho Vermelho às garras do Lobo Mau, a única esperança que os fracos e os ingénuos  (as meninas, leia-se!) têm de sobreviver é: ou obedecendo estritamente às recomendações e às ordens que lhes são dadas, onde todo o prazer e toda a liberdade lhes estão interditados, porque cada esquina guarda um predador cruel que as espera; ou, em alternativa, afiarem os incisivos e serem elas também predadoras de lobos maus, numa espécie de vendeta de olho por olho, dente por dente, dentada por dentada. Se não podes com eles, junta-te a eles ou aprende como eles fazem. Que visão terrível da vida! Se os lobos podem comer capuchinhos vermelhos à vontade, e estes últimos não podem fazer o mesmo, então a vida é injusta, e só podemos responder a esta injustiça com cinismo e desespero. O Capuchinho Vermelho terá inevitavelmente de se libertar do estigma do Lobo Mau e viver plenamente e sem restrições as aventuras que lhe são mais caras, e tentar explorar o desconhecido sob sua conta e risco. 

São os Lobos Maus que vamos conhecendo ao longo da vida, que, muitas vezes, nos abrem os olhos. No conto, foi aliás ele quem abriu os olhos à menina para a beleza que a rodeava, mesmo se, entretanto, estava a pensar na melhor maneira de a comer. Até então, a menina vivera numa redoma, com uma vida moldada por vontades alheias e onde toda a sua imaginação e impulsos estavam perfeitamente reprimidos. De repente,  ela saiu do caminho estreito e rígido que a mãe lhe impusera para usufruir da natureza em seu redor. O lobo teve por função despertar. Levou-a a transgredir as leis restritas e rígidas. É óbvio que o contacto com ele pode ser 'perigoso', uma vez que ele segue a sua natureza de predador, mas será que o Capuchinho não pode inverter a fatalidade das coisas?

Não é dando somente exemplos de vida cor-de-rosa às crianças, omitindo deliberadamente as coisas más da vida, as facetas menos sãs das pessoas, os perigos que o trilhar do quotidiano nos guarda a cada instante, que se prepara alguém para a vida. É a nossa experiência de vida, o conhecimento do Bem e do Mal, a nossa intuição, a capacidade de conhecer e avaliar, que nos permitem saber se o Lobo que temos pela frente é um mero predador, ou, antes pelo contrário, alguém que, para além da trivialidade de gostar de comer seres humanos, tem outras necessidades, qualidades e valores, que ultrapassam o mero registo homeostático.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Há quase 50 anos...


"Quarenta anos é a velhice dos jovens; cinquenta anos é a juventude dos velhos." 

(Victor Hugo)

Não chega a ser angústia, é antes um frémito, um nervoso miudinho, quando penso que dentro de um três dias vou fazer cinquenta anos. Chamem lá o que quiserem à efeméride, mas é incontornável que dentro em breve celebro meio século de vida. Parece que o facto se deveria passar de forma natural, como se fosse apenas o acrescento de um ano à idade que já possuo; mas não. Fazer cinquenta anos, muito mais do que fazer trinta ou quarenta anos, é um marco na vida de alguém. Muitos não tiveram a sorte de atingir o meio século de existência, pelo que, vistas as coisas por esta perspectiva, devo sentir-me agradecido à vida ter-me proporcionado chegar tão longe. O que mudou na minha vida? Cada vez mais procuro uma imensa paz de espírito, uma beatífica tranquilidade, uma inefável bem-aventurança, que me permita sorrir satisfeito ou, pelo menos, lidar com a vida e com as mil contrariedades do quotidiano levemente. Mas nem sempre consigo. Cada vez me é mais penoso fazer fretes e lidar com gente medíocre que nada acrescenta de positivo à réstia do meu tempo livre - hoje, muito mais precioso. Mas, felizmente, ainda me sobra alguma inquietação para me sentir insatisfeito com muitas coisas e desejar fazer mais e melhor. Aliás, não tenciono despir esta roupagem de insatisfação e a apreensão que a constitui e assimila, ainda que poeticamente, à luz trémula que assinala todas as existências, mormente a minha. Há ainda muitas coisas para fazer e o caminho faz-se caminhando.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

A evolução do Homem

Largo da Matemática

Largo da Matemática - Coimbra - Novembro de 2010

"A Matemática é para poucos" 
vulgata popular
A Matemática ocupa o lugar das disciplinas que mais reprova os alunos na escola. A justificativa que a comunidade escolar dá a esta "incapacidade" do aluno com esta área do conhecimento é que "matemática é difícil", e o senso comum confere-lhe o aval. Como a matemática é considerada útil, o aluno não pode passar para o ano seguinte sem atestar o seu conhecimento na disciplina e desta forma aceita-se inclusive que  ele seja reprovado apenas em matemática. Nos meus tempos de estudante liceal, com poucos hábitos de estudo - que só se manifestaram já próximo da entrada para a Universidade -,  sempre desprezei a matemática. Fosse por não a entender, ou porque me enfastiava de tal forma que me recusava  fazer um esforço para me entrosar com a sua linguagem áspera e abstracta, sempre nutri por ela uma antipatia antiga. Hoje, reconheço ter bastantes lacunas no conhecimento matemático, muitas delas quase impossíveis de serem supridas,  facto que me  tem prejudicado em alguns aspectos práticos da vida.

Naquele instante, ao deparar-me com o Largo da Matemática, situado no casco antigo da cidade de Coimbra, muito perto das mais antigas Repúblicas estudantis, e a avaliar pelo estado dos prédios que por lá se encontram, creio ter encontrado uma boa metáfora fotográfica para definir o nível do meu conhecimento  da disciplina: simplesmente ruinoso. Deus me valha!

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Albufeira de Cabril - Fevereiro de 2011
Um dia de Primavera na  Serra da Lousã - Fevereiro de 2011
A Aprilia à sombra da cruz - Serra da Lousã - Fevereiro de 2011
O retratista auto-retrata-se - Fevereiro de 2011
Piscina Fluvial - Albufeira de Cabril - Fevereiro de 2011
Albufeira de Cabril - Fevereiro de 2011
 Barragem de Cabril - Fevereiro de 2011
Restaurante Esplanada - Ribeira de Alge - Fevereiro de 2011
Nuvens pintando o céu da Serra da Lousã - Fevereiro de 2011
Hoje esteve um dia primaveril e depois de ter estado em Tomar com uma pessoa conhecida, fiz-me de novo à estrada para dar continuidade a mais um dos meus passeios higiénicos. Desta vez o destino levou-me de novo pelas lindas terras do centro do país, ao longo das múltiplas praias fluviais do Zêzere e dos seus afluentes, com passagem por Ferreira do Zêzere,  Pedrógão Grande, Sertã, Figueiró dos Vinhos, Ribeira de Alge, Castanheira de Pêra, Miranda do Corvo, Penela, e também por muitas aldeias de xisto perdidas no meio da mancha serrana. É formidável o silêncio que se consegue experimentar lá no alto, somente entre-cortado pelo uivar do vento e pelo trinar de algum pássaro mais afoito que, de quando em quando, passa, lesto, rente à copa da árvores. O céu, no alto da serra, apresentava uma tonalidade índigo, quase anil, e dizem que a sua observação atenta e demorada, melhora a nossa intuição e ajuda a reorganizar estados psíquicos. Ora, não podia vir a calhar melhor. Em dias azuis,  ainda que por efeito placebo, tenho de ir meditar mais vezes para o alto da serra.

Rosas & Acero

Rosas & Acero vai conhecer uma nova edição, desta vez em Junho, na Província de Aragão, perto de Huesca, em Espanha. Conhecida por ser a maior concentração motard no feminino (os homens só podem entrar se forem acompanhados por uma mulher e o preço que pagam é superior), mantém a mesma vertente sexista de segregar a entrada dos moteros sem estarem devidamente acompanhados por uma motera. Naquilo que tanto condenam nos homens, as organizadoras deste evento optam por um comportamento a todos os títulos reprovável e inconcebível no mundo do motociclismo. Trata-se de uma festa eminentemente feminina - streap teases masculinos não vão faltar! - que reúne milhares de motociclistas femininas de toda a Europa, e que repudia uma das essências das agremiações de motociclistas, que é  precisamente o culto da pluralidade e da não discriminação. [Quem sabe eu não apareço mascarado de motera, mais não seja para pagar menos à entrada... mas depois não podia ir à piscina.] 

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

As dificuldades de um músico imberbe

Em estilo twitter, venho aqui à folha informar que estou a descansar os dedos por uns minutos - as falanges estão quase em sangue! -, após ter estado na guitarra a treinar os acordes Dó, Lá Menor, Ré Maior e Sol. O Ré Maior é o mais complicado, mas o Dó é o que mais faz doer a ponta dos dedos. O exercício proposto pelo professor para treinar durante a semana, consiste em conseguir fazer estes acordes seguidos, com o ritmo e o tempo que ele ensinou, o que resulta numa música simples e bonita. Caso a conseguisse tocar toda de uma vez, sem me enganar, já ficaria bastante contente. Mas estou a ver o caso mal parado... Será que não haverá guitarras com cordas de cabelo humano ou outra coisa assim suave? Ou as falanges dos dedos da mão esquerda ganham rapidamente calos, como toda a gente me afiança, ou terei de encostar a minha Daytona a um canto, pois preciso dos dedos intactos para teclar o dia inteiro no computador, coisas chatas e formulares - o meu ganha pão. Mas, pensando bem, não deve ser impossível, a um jovem da minha idade, aprender a tocar alguma coisita; e, sobretudo, ultrapassar estas dores impossíveis provocadas pela pressão do aço das cordas na carne. Uns dizem que é por causa das cordas serem novas, outros dizem que passado um mês já tenho calos e a dor passa.  Sei que não sou diferente dos outros; posso, sim, ter  umas mãos muito delicadas - umas mãos de menino, como me dizem - mas sei que vou ultrapassar a questão. Hoje, um jovem aluno riu-se quando me viu aflito com dores nos dedos, e garantiu-me que nas primeiras vezes que começou a pisar as cordas da guitarra, ficou com a ponta dos dedos em sangue, mas depois tudo passou e  hoje já não lhe dói nada. Olhei para ele, depois para as minhas mãos, e fiquei horrorizado. Essa perspectiva de vincar os dedos no aço até deixá-los em sangue, não me agrada mesmo nada. Sei que estou a ficar obsessivo com esta coisa da dor intensa nas falanges, mas espero que o prazer prevaleça e o sacrifício valha a pena. Para já, estou a gostar de tudo: do ambiente familiar, do contacto com uma nova linguagem, até então totalmente estranha para mim, e da possibilidade de um destes dias poder vir a tocar  músicas do meu agrado. Além do mais, a minha guitarra é tão gira que seria uma pena ficar metida dentro de um saco, sem a utilização para a qual foi concebida. Não, não vou desistir, ainda que os dedos me doam... mas onde é que já li isto?

Apenas o essencial

Mário de Andrade
'Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para a frente do que já vivi até agora. Tenho muito mais passado do que futuro. Sinto-me como aquele menino que recebeu uma bacia de cerejas. As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço. Já não tenho tempo para lidar com mediocridades. Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflamados. Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram, cobiçando seus lugares, talentos e sorte. Já não tenho tempo para conversas intermináveis, para discutir assuntos inúteis sobre vidas alheias que nem fazem parte da minha. Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas que, apesar da idade cronológica, são imaturas Detesto fazer acareação de desafectos que brigaram pelo majestoso cargo de secretário-geral do coral.  As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos. Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência, minha alma tem pressa. Sem muitas cerejas na bacia, quero viver ao lado de gente humana, muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com triunfos, não se considera eleita antes da hora, não foge de sua mortalidade. Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade. O essencial faz a vida valer a pena. E para mim, basta o essencial!'

Mário de Andrade
(1893-1945)

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Na margem sul do Tejo, pelos lugares do meu passado

Miradouro dos Capuchos - Vista das Terras da Costa - parte sul da Costa da Caparica

Ontem, um domingo cheio de sol, fiz-me à estrada com a minha Caponord em direcção ao sul, tendo como destino o concelho de Almada, na margem de lá do Tejo. Estava um dia esplendoroso, com o céu profundamente azul, recortado por cima da Serra de Aires e dos Candeeiros,  convidativo para passear de mota. Segui sempre pela estrada nacional, passando por Porto de Mós, Alcobaça, Alcoentre, Alenquer, Castanheira do Ribatejo e Vila Franca de Xira, terras que nunca me canso de admirar, para finalmente, logo a seguir a Alverca e a Sacavém,  entrar nas cercanias de Lisboa. O último lance do percurso, à medida que nos aproximamos da capital, é o mais desagradável, pois o tráfego automóvel começa a intensificar-se para nunca mais parar.  É mesmo a maior diferença que registo na comparação com as terras mais provincianas, e que é de inegável vantagem para estas últimas. Mas tudo correu dentro da normalidade e foram inúmeros os grupos de motards com quem me cruzei, que vinham para norte, com destino à Batalha, mais propriamente à Exposalão, para visitarem uma das mecas do motociclismo nacional que por lá tem lugar todos os anos.  

Há muito tempo que não ia a Almada. A cidade, desde a instalação do metro de superfície que a cortou literalmente em dois, já não é o que era. A maioria das ruas do centro estão vedadas ao trânsito automóvel e encontram-se apenas acessíveis aos moradores. À medida que percorria a longa avenida que vai desde a rotunda do Centro Sul até à zona central da cidade, na minha mente, começava a desenrolar-se um filme em rewind, um desfiar de memórias que todos aqueles lugares me traziam. Cada rua, cada café, cada loja, cada esquina,  adjacentes à imensa avenida, cujo nome já nem recordo, de algum modo, ligavam-se a cenas ocorridas no meu passado. Morei em Almada desde os 2 anos de idade até aos 17 anos, pelo que alguns dos melhores tempos da minha vida estão intrinsecamente ligados àquela cidade. Mas a ida a Almada teve uma razão objectiva. Tratou-se de fazer uma visita à minha mãe, que já não via há bastante tempo, e que simpaticamente me pagou o almoço. Depois de aplacada a saudade e de ter escutado as advertências habituais - as mães são eternamente assim - para os perigos que espreitam todos quantos andam de mota, após um telefonema a um amigo de infância, o Carlos Peres, com quem já não estava há imenso tempo, fiz-me de novo à estrada, desta vez em direcção a Vale Figueira, para os lados da Sobreda de Caparica. Chegado lá, constatei que o Carlos afinal não estava em casa. Tinha ido ao cinema com a mulher e os filhos e só ao final da tarde podia-se encontrar comigo. Como ainda era cedo e não estava disposto a esperar tanto tempo, decidi tentar a visita a outro amigo, que não morava muito longe dali, em Belverde, um lugar idílico situado no meio dum imenso pinhal,  para os lados da Aroeira, entre a Fonte da Telha e a Cruz de Pau.

Atravessei a Charneca da Caparica, todos eles lugares da minha infância e juventude, passei pela Mata dos Medos - onde, nos idos anos sessenta, a minha família, entre outras tantas, já que era um costume da época, fazia picnicks; e nós, a miudagem, espairecíamos a correr pela mata adentro, enquanto o meu pai, refastelado numa rede, com o rádio sintonizado no Rádio Clube Português, dormia as suas eternas sonecas após o almoço enquanto a mãe, coitada, lavava a loiça - e segui até Belverde, sempre pela orla dos verdejantes pinhais, em homenagem ao dia soalheiro, pelejados de picniqueiros, num costume que parece não ter abrandado até aos dias de hoje. Estacionei a mota junto ao restaurante "A Cabaça", há trinta anos atrás, uma referência por aquelas bandas,  hoje em franca decadência, e fui tocar à campainha da vivenda do Padinha, um amigo músico que nunca fez outra coisa na vida. O velho Toyota Corolla branco, com a pintura a estalar pelo rodar dos anos, encontrava-se estacionado à porta, sinal de que  ele estava em casa. Fartei-me de tocar à campainha mas ninguém veio abrir a porta. Quando estava prestes a desistir, o vizinho da moradia da frente, muito prestimoso, chamou-me para me informar que o Sr. Padinha compõe música no computador durante toda a noite e de dia dorme, só acordando ao final da tarde. Há tempos, segundo me informou, foi preciso falar com ele durante o dia, por causa do arranjo de um problema qualquer nos canos, e foi uma carga de trabalhos para ele abrir a porta. Teve de vir o pai, de Almada, com a chave de casa,  porque o Rui Padinha, antes do cair da tarde,  nem com um tremor de terra de grau 8 na escala de Richter abre as pestanas.

Voltei para trás, sempre pelos pinhais, desta vez de frente para o sol,  passei pelas praias da Caparica, entrei num trânsito caótico que se aglomerava à chegada à Costa da Caparica,  e tive de andar a serpentear pelo meio dos carros, malabarismo que se torna ainda mais complicado desde que coloquei uns alforges laterais na mota. Fiz uma última paragem no miradouro do Convento dos Capuchos, de onde se pode ter uma visão privilegiada sobre a Costa da Caparica, com o oceano em frente, e, para sul,  as Terras da Costa a perder de vista. Foi lá que tirei a única fotografia desta minha pequena viagem. Ainda telefonei a um terceiro amigo, o João Venceslau, que ficou radiante com o meu telefonema, mas informou-me que só tinha disponibilidade para estar comigo por volta das 21h00. Ora, por essa hora já eu queria estar em Leiria, de banho tomado, com alguma coisa no estômago e, como de costume, de volta do computador. Despedi-me dele com aquela frase lacónica e gasta pelo uso: "Um abraço. Vemo-nos então noutra oportunidade.." – que ambos sabemos, pode ou não acontecer. A vida é madrasta e lá diz o apanágio:  longe da vista, longe do coração. As pessoas deixam de conviver, afastam-se no plano geográfico e depois, em consequência, vão perdendo as referências mútuas, estabelecem novas amizades, novos interesses, o que não deixa de ser cruel, mas natural. Eu é que sou um saudosista, alguém que ainda acredita poder resgatar amizades antigas que, em tempos, foram presentes e intimas, quase quotidianas. Mas a realidade desmente-me. Com alguma pena, mas sem dor, com um conformismo depurado pelo sentimento de que a vida é mesmo assim, fiz-me de novo à estrada e só parei em casa. Pelo caminho, entretanto, o dia foi escurecendo e esfriando, tal como eu. 




quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Vista aérea da Ponte 25 de Abril num dia nevoento


Praticamente todos os anos tenho a sorte de sobrevoar Lisboa, quer de dia, quer durante a noite, e, regra geral, sempre que fico junto à janela, nunca me canso de tirar fotografias com a minha pequena máquina digital Olympus. É um hábito um tanto ou quanto assaloiado, até porque a frequência com que ando de avião já deveria ter amansado quaisquer destes entusiasmos, mas assumo plenamente este gosto nunca esmorecido. A imagem que publico é porventura a mais fantástica que alguma vez vi da nossa Ponte 25 de Abril. Trata-se de uma fotografia obtida pelo Comandante José Costa, piloto de um Air Bus A320, num dos seus muitos vôos com terminus no aeroporto da Portela.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Eu (não?) nasci para a música

Comecei a aprender a tocar guitarra acústica e também estou inscrito no órgão à espera de vaga. Deu-me para isto, mas é certo que me podia ter dado para pior. Ainda só tive uma aula mas já adquiri uma guitarra toda catita. Trata-se de uma  "Daytona" em madeira lacada, cor de pérola, com pré amplificação e afinador integrado. Talvez demasiado preciosa para alguém que ainda só agora aprendeu as notas correspondentes às diversas cordas da viola e a sua correspondência internacional em letras do alfabeto. Mas, com afinco, espero dentro de alguns meses estar ao nível de um Joe Satriani. Para já ainda só sinto as pontas dos dedos a esfolar e em vias de ficar em carne viva, mas já me garantiram que depois deste massive atack, ganham-se uns calos maravilhosos nas falanges e depois é sempre a aviar. A ver vamos. Estive indeciso entre uma viola clássica, com cordas de nylon, e uma viola acústica, com cordas de aço. Acabei por me decidir por esta última, pois tem uma sonoridade muito mais brilhante, apesar de fazer doer as falanges dos dedos como eu nunca imaginei. Já consigo, pasme-se!,  fazer um acorde em Lá menor e um acorde em Dó maior e mudar de um acorde para o outro quase sem me enganar. Aprendi também que existem tons e meios tons entre as notas, sendo que entre o Mi e o Fá, bem como entre o Si e o Dó, existem meios tons e não tons, como entre as restantes notas.

O meu professor usa vários brincos nas orelhas, veste-se de negro, usa óculos e tem uma tatuagem no pescoço. Disseram-me que é guitarrista numa banda musical, para além de dar aulas de guitarra. Trata-me reiteradamente por senhor - esta coisa da "proveta idade", aos olhos dos outros, nunca perdoa - e eu estou sempre a corrigi-lo para lhe dizer que me pode tratar por tu e pelo meu nome, mas não passam mais de cinco minutos lá está ele outra vez com o senhor. Com este tipo de tratamento como é que eu me vou entender com este guitarrista com créditos firmados? Já lhe disse que ele me faz sentir o avô cantigas que se decidiu um dia ser músico e aprender a tocar violão. O maganão ri-se mas, passados uns momentos, lá está ele  outra vez com o senhor Jorge. Se ao menos me tratasse por Seu Jorge... A ver vamos como é que as coisas vão correr daqui para diante. Para já estou a descansar as pontas dos dedos. Só tenho uma aula por semana e tem-me custado imenso escrever no teclado do computador, actividade que tenho de prosseguir diariamente por dever profissional. Mas lá diz o ditado: burro velho não aprende línguas; mas será que consegue aprender música? O futuro o dirá.