quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Levar o leite à cama



Nos meus tempos de juventude a maioria de nós o que mais desejava era ser independente. Sonhávamo-nos libertários, encontrar fonte de sustento, arrendar um espaço, uma roulotte, com amigos ou com a namorada, sermos donos do nosso nariz; e, na medida do possível, vivermos de acordo com as nossas regras e valores. Eu, por força de circunstâncias várias, tornei-me autónomo num estádio muito precoce da vida. Antes dos 18 anos de idade já morava sozinho, trabalhava durante o dia, estudava à noite e ganhava para o meu dia a dia. Passei muitas dificuldades, sofrimentos, privações, momentos surrealistas na Lisboa de há mais de 40 anos, mas tudo isso depois de depurado no repositório das memórias, revelou-se um ganho de maturidade e capacidade de resiliência. Se a vida tivesse sido mais fácil, porventura não daria importância a valores que mais tarde vim a considerar essenciais. Refiro-me ao gosto pela autonomia, espirito de sacrifício e capacidade criativa perante circunstâncias adversas.

Algumas pessoas das gerações que vieram depois de mim têm vindo a perder esse amor pela independência, aquele espírito pós hippie que nos forrava a mente e que fazia com que desejássemos ardentemente viver longe da tutela paterna, livres como os pássaros, sem escutarmos constantemente alguém a ditar-nos a forma como tínhamos de viver. Na minha juventude, muitos perderam-se pelo caminho, fosse porque não tivessem horizontes, ambições, planos e força suficiente para levar a vida por diante ou porque circunstâncias demasiado adversas tenham-se revelado obstáculos intransponíveis; outros, pelo contrário, sobreviveram e construíram uma vida com alguma solidez. Os que escolheram o rumo da dependência das drogas, muito usual no final dos anos 70 e durante os anos 80, na sua maioria, faleceram precocemente ou levam uma vida atual lastimável.

Na altura, se alguém com o dom da adivinhação me dissesse que no ano de 2022 existiriam muitas pessoas com 40 anos de idade ainda a morar com os pais, eu provavelmente não iria acreditar. As circunstâncias atuais, pelos motivos que todos sabemos, são péssimas, mas nada que se compare com o inicio dos anos 80, a Troika em Portugal pela primeira vez, o país ainda fora da então CEE, transitando de uma nação quase rural para o universo da Europa desenvolvida, muito focada nos serviços, no comércio e na indústria. O desemprego nesse tempo era endémico e havia muitas pessoas a passar literalmente fome. Os da minha geração recordam-se seguramente, nos anos 80, em Lisboa, ser comum vermos pessoas a comer restos retirados dos caixotes do lixo. Mas - e se calhar até nos faz bem psicologicamente, porque nos defende da lembrança traumática - a nossa memória coletiva é curta e o rodar do tempo faz-nos concentrar em realidades temporalmente mais próximas; e muitos não compreendem, ou ainda não perceberam, que viver é sobretudo competir.

Vivemos num país de subsídio dependentes. Muitos esperam que o Estado Social seja uma espécie de mãe eterna que provê todas as nossas necessidades, como a ave que leva a comida ao ninho. A vontade de lutar, trabalhar, competir para ocupar um lugar razoável na pirâmide social, não é apanágio de todos. São poucos os que se sujeitam a laborar em trabalhos indiferenciados, mesmo sabendo que isso pode ser um trajeto necessário, uma via sacra obrigatória para atingir objetivos maiores.

A imagem do "menino" com 40 anos de idade, cuja mãe ainda lhe leva o leite à cama de manhã, permanece gravada na minha mente. Não tenho nada contra uma mãe levar o pequeno-almoço ao filho, seja qual for a idade que ele tenha. Ainda há poucos anos atrás, sempre que eu passava o fim-de-semana com a minha mãe, estando ela ainda em sua casa, era frequente levar-me um copo de leite com café e uma torrada à cama, quando eu preguiçava até tarde. Sentia nessa sua atitude um gesto de carinho e proteção enorme cuja memória me vai acompanhar até ao final dos meus dias. Para uma mãe, nós somos sempre pequeninos. Sei que ela nunca mais me vai levar o pequeno-almoço à cabeceira da cama, mas foi reconfortante ter tido esse afeto até há poucos anos atrás.

O "menino" com 40 anos que a mãe ainda lhe leva o leite à cama, pode muito bem ser a metáfora perfeita para alguns gentios que se recusam a deixar o lar paterno, alegando que as casas estão muito caras, não há empregos e a vida está complicada. Afinal, para quê deixar o conforto dos pais se têm um ninho acolhedor pleno de facilitismos onde podem resguardar-se das agruras da vida? O problema não está no afeto tremendo que é a mãe levar o pequeno-almoço à cama. O busílis da questão está na dependência total e na incapacidade de lutar pela vida que a excessiva proteção paterna ou materna podem causar. Imagino o meu gato, que nunca caçou - apesar de ser um felino e isso fazer parte da sua genética - nem teve de se preocupar em encontrar a próxima refeição, ser largado na rua entregue a si mesmo, sem qualquer tipo de treino de sobrevivência. O mais certo seria durar uns escassos dias até ser morto por um cão ou atropelado.

Na minha senda musical, toco num grupo com jovens muito empreendedores, que sonham, têm planos de vida, ambições e sobretudo disciplina e foco. É graças a isso que conseguimos aprender e ensaiar canções com bons resultados e cada vez maior rapidez. O sucesso advêm do empenho, perseverança e treino de repetição. Nenhum deles tem insucesso escolar, falta de motivação, preguiça e todos sabem muito bem o que querem para as suas vidas e aquilo que é preciso fazer para atingir os objetivos a que se propõem. Sinto-me honrado por conviver semanalmente com a Beatriz, o Simão e o Adelino, todos com 16 anos de idade, que me aceitam como o baixista da banda, porque partilhamos uma forte empatia que é o gosto pela música. Os meus meninos, como eu lhes chamo, são muito bem dispostos e virtuosos no que à música respeita e não se enquadram no estereótipo do "menino" cuja mãe ainda lhe leva todos os dias o leite à cama. São meninos assim que o futuro precisa.

2022





segunda-feira, 6 de novembro de 2023

FIAT 850



Quando ultrapassamos as seis décadas de vida, começamos inevitavelmente a ter um repositório enorme de memórias do tempo passado.

Nos idos anos 60, uma época que compulsivamente me aflora a mente, talvez por nela ter vivido os tempos mais felizes da minha vida, somente as famílias da classe alta e média alta possuíam automóvel. O carro era um luxo a que muito poucas pessoas tinham acesso, a não ser que fosse uma viatura destinada ao trabalho.

Geralmente os automóveis duravam muitos anos no seio das famílias e não existia este moderno costume de mudar de veículo em cada x anos; tão pouco havia a facilidade de crédito que, nas suas diversas formas, está à disposição das pessoas nos nossos dias. Os Bancos privados eram escassos, pertenciam a famílias muito abastadas, aparentadas com o regime fascista e as taxas de juro cobradas eram altíssimas. Somente se concedia crédito a quem desse garantias reais de poder pagar os empréstimos nas condições requeridas pelos Bancos, geralmente proprietários ou industriais.

A mobilidade social era muito baixa e a linhagem do nascimento, regra geral, definia a condição futura das pessoas. Quem nascia pobre, pobre também seria a sua prole. Para o liceu, iam os filhos das classes alta e média alta, com vista a depois frequentarem a universidade, enquanto os cursos comerciais e industriais destinavam-se aos filhos das classes economicamente menos favorecidas. Ser "doutor" era um luxo de ricos, reservado aos filhos de pais que podiam custear 4 ou 5 anos de Universidade. Os jovens oriundos das classes mais desfavorecidas frequentavam preferencialmente um ensino que rapidamente lhes desse acesso a uma profissão e ao mercado de trabalho.

Recordo-me que eu tinha 7 anos de idade quando o meu pai comprou o seu primeiro automóvel. Era um Fiat 850, modelo de 1968, branco frigorífico, com os estofos vermelhos e o motor traseiro. Aquecia muito em filas de trânsito ou em subidas que exigissem esforço do motor e o espaço interior era bastante reduzido. No dia em que o meu pai o comprou, a família (os meus irmãos mais novos ainda não eram nascidos) decidiu ir ao Cristo Rei para estrear a novíssima máquina italiana, vinda de Turim para o agente da Fiat em Almada. Nunca me esqueci da matrícula - EF-42-31, pois fixar matrículas era um dos grandes passatempos da minha infância.

O meu pai, no início, era bastante maçarico a conduzir e enervava-se com facilidade, mas ninguém, para além da minha mãe, podia rir-se das suas constantes aselhices. Há mais de 6 anos que ele já não está entre nós, e, ainda que consiga ler os meus escritos, com toda a certeza não vai levar a mal que eu conte este episódio por ele protagonizado na estreia do 850.

Todos já estavam a bordo, o meu pai colocou o motor em funcionamento, engrenou a marcha atrás, não sem antes arranhar várias vezes a mudança da caixa de velocidades, mas o carro parecia não querer sair do mesmo sítio. Ele acelerava e nada. Entretanto começava a cheirar a queimado e o nervosismo instalava-se entre todos os membros da família. O meu pai bradava aos céus que a porcaria do carro novo já estava a dar problemas logo no primeiro dia.

Providencialmente, o dr. Silvestre, advogado com escritório frente à nossa casa, junto ao Externato Frei Luís de Sousa, amigo do meu pai e dono de um fabuloso Mercedes negro, passava na rua naquele mesmo instante. Foi ele quem disse para o meu pai destravar o carro, caso contrário nunca iriamos sair dali.

Lembro-me que a manobra de marcha à ré teve a assistência de grande parte dos populares que por ali passavam. Ditavam ordens para o meu pai virar o volante para a direita e depois para a esquerda. No percurso até ao icónico monumento da cidade de Almada, o carro foi abaixo inúmeras vezes, mas chegámos a casa sãos e salvos. Por ordem expressa da minha mãe, o pai teria de praticar sozinho durante mais algum tempo até que a família pudesse viajar em segurança. E assim foi. Ele, entretanto, tornou-se um excelente condutor e levou-nos muitas vezes pelas estradas da Europa e do Norte de África. Em 1971, o 850 foi trocado por um Ford Cortina, um sedan com três volumes que durou muitos anos na sua posse.

Em Almada, as famílias do nosso convívio e as pessoas em geral, eram identificadas pelo automóvel que possuíam. Os Inácio tinham um Taunus 12 M, com uma cor azul peculiar, quase verde; os Lamelas um Opel 1700 Rekord cinzento mate; os Valverde um Austin 1300 verde azeitona; os Rebelo um Ford Cortina 1300 branco; os Santos um Opel Kadett azul claro e assim sucessivamente. Existiam muito menos automóveis e os veículos eternizavam-se na posse dos seus proprietários. Quando alguém se queria referir a uma pessoa que o interlocutor não estava a reconhecer dizia-lhe: - É aquele que tem um Taunus 20M azul escuro!

Os tempos felizmente mudaram para uma maior equidade social, a disparidade entre pobres e ricos reduziu-se bastante e aqueles que se queixam das atuais condições de vida - felizmente não era o caso da minha família - não imaginam o que era ser pobre há mais de 50 anos atrás. Ninguém consegue ser feliz sem ter as suas essencialidades garantidas, bem como a saúde preservada, mas a abastança não é necessariamente um passaporte para a felicidade.

Creio veementemente que é possível ser-se feliz vivendo com os bens materiais essenciais, desde que tenhamos família, harmonia, amor, ética e doses substanciais de alimento espiritual. Se me fosse possível escolher uma viagem na máquina do tempo, não me importava regressar àquelas manhãs chuvosas de outono em que o meu pai me levava no Fiat 850 até à Escola Conde Ferreira. Sentia-me o menino mais importante do mundo quando chegava ao portão da escola.




sexta-feira, 6 de outubro de 2023

De novo a Justiça...


Se perguntarem a alguém o que entende por Justiça, o mais certo é que todos se sintam aptos a responder. Mas a resposta, a meu ver, não é assim tão fácil e evidente; e é bem provável que as opiniões resultem díspares e acabem por refletir um pouco o pulsar de cada um em relação ao modo como encara aquilo que acha que deve ser “o viver” dentro do tecido social.

O conceito de «Justiça», mercê da permeabilidade de várias correntes doutrinárias, tem, ao longo dos tempos, vindo a sofrer contínuas alterações – que lhe alteraram a forma e a substância - em resultado do espírito da época e das correntes de pensamento mais fortes que em cada momento vigoraram.

Tenho por assente que a crença daquilo que é justo e injusto [sem querer entrar em querelas impróprias, além de chatas e inúteis, acerca da validade e anterioridade do Direito Natural e Divino, como realidades metafísicas e superiores aos ditados humanos], não é uma constante mas algo que acompanha a evolução das mentalidades e sobretudo das novíssimas conveniências e contingências que vão surgindo e metamorfoseando-se.

A definição daquilo que é justo ou injusto, surge como uma espécie de plasticina apta a moldar-se e transfigurar-se ao sabor de realidades bem mais sórdidas do que o conceito de Bem. O resultado de tudo isto é evidente: o que dantes era considerado injusto, hoje pode ser valorado de forma oposta e vice-versa, tudo à bolina de conveniências que, muitas vezes, pouco ou nada têm a ver com uma preocupação altruísta do legislador em criar uma sociedade mais igualitária – a igualdade será, porventura, um dos paradigmas do conceito de Justiça, mas, ainda assim, também ela padece de imensas interpretações.

Este conceito, após interiorizado no tecido social, deveria presidir à feitura de qualquer normativo jurídico, para servir a finalidade de “fazer justiça”, que é, afinal, aquilo que todos nós, individualmente ou em coletivo, queremos: a consagração dos valores que temos como nossos, com os quais nos identificamos e reconhecemos, alicerçados na ideia de BEM, refletidos em normativos que devem ser cumpridos sob pena da sanção individual, imposta pelo coletivo na pessoa do Estado.

Um dos grandes objetivos que habitualmente se consideram inerentes ao Direito é a Justiça. Haverá poucas palavras com ressonância social e histórica mais majestosas, e poucas haverá também que sejam mais difíceis de analisar racionalmente e prescindindo dos estímulos emotivos que suscita.

Podemos, aliás, utilizar a aceção justo/injusto em diversos sentidos: podemos, por exemplo, dizer que uma sentença judicial é justa no sentido de que nela se aplicou a lei, sem entrar em juízos de valor sobre esta. Neste sentido justo equivale a legal, o que não é necessariamente verdade. Noutra vertente, chamamos justo um ato ou mesmo à própria lei enquanto respeita um critério básico de igualdade. Este significado é tradicional no pensamento ocidental desde Aristóteles e exprime-se no principio de que: «Os iguais devem ser tratados como iguais e os desiguais como desiguais». Nenhum Direito dito «civilizado» deixará de levar em linha de conta esta máxima anterior.

Mas, com salvaguarda dos direitos ditos inalienáveis de carácter prioritário, como sejam: o direito à vida, à propriedade privada, à liberdade de expressão e dos diferentes credos religiosos, manifestações políticas incluídas, sinto, em tese geral, um progressivo decrescendo nos arautos inerentes a todas as liberdades conquistadas - o mais das vezes com o sacrifício de milhares de vidas - e que espelham a civilização ocidental e humanista que conhecemos, onde vivemos e em que acreditamos.

A Justiça e a Segurança, encaradas tradicionalmente como traves mestras da existência do Direito, e como um corpo de normas apto a regular as relações entre sujeitos num determinado grupo social, também tem servido de álibi aos maiores abusos.

Em nome do presuntivo interesse do coletivo, saído de eleições democráticas, aquilo que se assiste paulatinamente é ao favorecimento das elites políticas e o enriquecimento progressivo e constante da classe economicamente dominante.

Ler John Rawls, ou qualquer outro filósofo político bem intencionado e iluminado por astros flamejantes, não basta. Por vezes, quiçá não seria necessário o ressurgimento de uma ação coletiva para acabar com um Direito injusto; e, caso obtivesse êxito, repor uma nova legalidade, desta feita baseada em conceitos que tivesse efetivamente a ver com a ideia de BEM.

Creio que este conceito não é de interiorização tão difícil, assim fosse possível eliminar à nascença a nossa propensão genética para o egotismo, a visão umbilical que temos da vida e o medo dos "radicalismos", das mudanças abruptas, mas seguramente eficazes. Julgamos ficar a salvo, inertes, num eterno registo de preferência por uma "paz social" podre - "eles, os políticos, são todos iguais!

O Direito do mais forte é, infelizmente, o único Direito que parece auspiciar um futuro risonho; e deixem-me rir quando oiço falar em Direito Internacional e na possibilidade de se aplicarem sanções, por incumprimento, a países que detêm um poderio militar e económico que subordina os restantes.

Talvez a manutenção da ideia peregrina de que existe Direito Internacional Público e a possibilidade de o aplicar coercivamente seja, afinal, a ideia mais risível que alguma vez o Homem fantasiou da Justiça…

Sou formado em Direito e....em desilusão, tantos os anos, as teorias, os livros, e os manuais de boas intenções que li, decorei, e que sempre esbarraram contra esta regra implacável: o mais forte (quase) sempre vence.

Por isso mesmo, para grandes males, grandes remédios e a História testemunha-nos ser sempre esse o antídoto único e eficaz. Almejar uma mudança no tecido social sem fazer uma revolução, isto é, sem mudar radicalmente a balança negativa dos desequilíbrios e injustiças flagrantes, é o mesmo que desejar que uma árvore floresça e dê frutos sem lhe podarmos os ramos podres e previamente prepararmos a terra. E, por radical que a minha opinião surja aos olhos de quem me lê, todos sabemos quão verdadeira é.

Isto é: se gritamos contra as injustiças cometidas contra nós, se nos indignamos com a corrupção que medra na classe política, se nos conformamos com a fome de muitos e a aviltante e cada vez maior riqueza de outros; se nada fazemos e continuarmos a pensar que a correção destas desconformidades esquizoides resolvem-se com eleições - mais do mesmo, temos, afinal, aquilo que merecemos. Nós somos quase onze milhões. Quantos são eles, numericamente falando?





quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Como é que o teu pai se chama?



Efeméride

- Como é que o teu pai se chama? Importas-te de repetir?

Carlos Fernando Luís Maria Victor Miguel Rafael Gabriel Gonzaga Xavier Francisco de Assis José Simão de Bragança Sabóia Bourbon e Saxe-Coburgo-Gota, foi o penúltimo Rei de Portugal. Nasceu em Lisboa, no Palácio da Ajuda, a 28 de Setembro de 1863, e morreu na mesma cidade, no Terreiro do Paço, a 1 de Fevereiro de 1908.

O nosso penúltimo rei não morreu de morte natural, foi chumbado pelo Manuel Buíça e outro comparsa, quando seguia numa caleche aberta no Terreiro do Paço, no regresso de Vila Viçosa. O regicídio encontra-se assinalado numa placa discreta no local onde aconteceu o atentado.

O monarca D. Carlos tinha um nome do tamanho do comboio de Chelas, pelo mesmo motivo contrário que eu somente tenho dois nomes próprios e dois apelidos. As pessoas de sangue azul, aparentadas com a nobreza, têm imensos nomes porque são o resultado dos muitos cruzamentos com gente de linhagem com vista a apurar o pedigree. O pior de tudo são os barrabotas, que não têm onde cair mortos, mas apresentam-se forrados de catrefadas de títulos, apelidos e nomes sonantes.

Tratar o nosso filho por menino ou por você é superlativar às últimas consequenciais a presunção de que se é nobre e diferenciado da arraia miúda. As nossas tias de Cascais e as socialites são eximias nisso. Mas aqui pela cidade do Lis também conheci uma fulana que, além de flibusteira, mentirosa e intriguista, arrogava-se ser Condessa da Marinha Grande e doutoranda, sem nunca ter metido os pés numa Universidade. O ridículo, infelizmente, nunca conheceu limites, nem tampouco a noção, pelo próprio, do mesmo.



quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Baleia Azul



A baleia azul, como todos sabemos, é um mamífero marinho e o maior animal que habita o planeta, podendo pesar mais de 300 toneladas e atingir os 30 metros de comprimento. Acontece que há cerca de uma década, ao que parece, numa rede social russa, nasceu uma espécie de jogo, extremamente perigoso e idiota, associado normalmente a adolescentes, a que se deu o nome de “Baleia Azul” e que nada tem a ver com o referido mamífero aquático. A brincadeira implica uma série de desafios muitas vezes perigosos com consequências potencialmente fatais, entre os quais automutilação. O jogo já terá provocado, um pouco por todo o mundo, mas principalmente na Rússia e no Brasil, dezenas de mortes.

Os participantes no jogo são, regra geral, recrutados entre adolescentes com problemas de autoestima, comportamentos autolesivos, depressão ou isolamento. Quanto mais frágeis, mais aptos a entrarem neste jogo perigoso, que os incita à automutilação e ao suicídio.

Apesar de ter pouca adesão em Portugal, também por cá deixou marcas. Segundo li, são cada vez mais os rapazes e as raparigas que chegam às urgências hospitalares com o corpo cortado com navalhas, facas, lâminas e x-atos.

Normalmente são casos de miúdos em grande sofrimento psicológico, a atravessar períodos de depressão e tristeza que os fragiliza e transforma em alvos fáceis para jogos do mesmo género.
No passado domingo, um homem de 35 anos de nacionalidade britânica foi encontrado morto, com marcas de esfaqueamento, no meio da floresta de Pedrógão Grande, no distrito de Leiria. O suspeito, de 32 anos, entregou-se à Guarda Nacional Republicana e revelou que o crime ocorreu na sequência de um jogo das redes sociais, conhecido como “Baleia Azul”.

Pelos vistos, também os adultos são vitimizados por este jogo hediondo e completamente insano, o que nos leva a questionar: como é possível influenciar pessoas a este ponto?



Guerra



Em tempo de guerra - it's an old saying, como dizem os ingleses - enquanto uns choram os outros fabricam os lenços. São os comentaristas de serviço e os de ocasião, que ganham fortunas por bolsarem opiniões e adivinhações nas várias estações televisivas; são as empresas de energia que têm lucros fabulosos por conta da subida dos preços; é o governo que obtém uma receita fiscal com resultados inesperados e sem precedentes; é a industria de armamento e, de um modo geral, todas as empresas ligadas à produção conectada com a guerra que arrecada lucros gigantescos; são as empresas fornecedoras de bens alimentares, com grandes stocks comprados a preços baixos, que têm lucros imensos ao venderem os seus produtos a preços inflacionados. Se demorasse mais tempo a refletir, certamente que me recordaria de outras pessoas que obtêm vantagens com o atual conflito. A guerra sempre foi uma grande oportunidade de negócio.

No final de tudo isto, quem sofre, quem se lixa, em português vernáculo e por todos entendível, é sempre o consumidor final, aqueles que não podem fazer repercutir os aumentos dos preços em ninguém; os que estão na base da pirâmide social, com especial enfoque para os mais desfavorecidos, economicamente tornados ainda mais vulneráveis face todos estes acontecimentos.

Não tarda, virá o incumprimento das prestações bancárias, as famílias que perdem as suas casas, a fome, o desespero, o rasgar de uma parte do tecido social. O mundo de 2022 ficará na História como um ano infame.

Inevitavelmente, muitas vezes é preciso fazer a guerra para conquistar a paz. E sempre assim foi ao longo dos séculos. O contrário disso, a submissão, a aceitação da chantagem, resultaria numa situação muito pior. O mundo democrático, livre, com todos os defeitos que tem, que ainda assim é o melhor modelo societário que conheço, deixaria de existir. O estranho é que a grande maioria das pessoas com quem falo, está mais interessada nos resultados desportivos, nas realidades comezinhas do dia-a-dia, porque acha que ver noticias sobre a guerra é depressivo e indispõe. Não é pelo facto de nos tentarmos alhear dos problemas que eles desaparecem e sendo um facto que nenhum de nós tem uma solução mágica para remediar o que está a acontecer, nada justifica a alienação da realidade.

Fosse eu substancialmente mais novo, e quem bem me conhece sabe que não faço afirmações vãs, estaria provavelmente na Ucrânia a defender a Democracia e os valores em que acredito e baseio a minha vida.

2022




2022

domingo, 24 de setembro de 2023

A F da FDL



Estando eu numa clínica privada cá do burgo, aguardando consulta, eis que reencontro a F., magistrada judicial na cidade, antiga colega da FDL, desde sempre moradora na cidade do Lis. Depois das perguntas triviais - só nos encontramos de tempos a tempos e sempre por casualidade -, contou-me, com os olhos marejados de lágrimas, que tem o filho de 16 anos com graves problemas no estômago e o seu marido, com 56 anos de idade, acabou de remover o dito órgão, face a um cancro maligno que entretanto lhe surgiu.

À F., sempre lhe conheci um temperamento forte e resiliência - sei que apesar de estudar à noite na Faculdade, trabalhar e morar a mais de 150 kms de distância, nunca pensou desistir do curso, do trabalho ou do namoro ( que na época já mantinha com o agora marido e pai dos seus filhos). No entanto, nunca a tinha visto tão fragilizada e esfrangalhada dos nervos. Tudo isto, acontecido em pouco tempo, deitou-a abaixo.

Despedi-me da F., falámos apenas alguns minutos e, no caminho de regresso a casa, não pude deixar de pensar sobre o quão frágeis somos. O que hoje é, num instante deixa de ser. Não há certezas absolutas, planos e vidas que não possam desmoronar em pouco tempo. Face às circunstâncias da sorte, ou da falta dela, a nossa vida pode cambiar num instante e ninguém está realmente preparado.


quarta-feira, 2 de agosto de 2023

A rapariga do lenço à pirata



Já há muita gente na sala e ainda há pouco a manhã começou. Tira uma senha e diz bom dia ao rapaz que está atrás do balcão. É um moço bem parecido, bastante novo, tem dois piercings, um no nariz, outro na sobrancelha esquerda. É um funcionário diligente, simpático e muito educado.

Ele recorda que, quando era jovem e saudável, também ele era belo. As pessoas olhavam-no na rua e as raparigas, quando seguiam em grupo, viravam a cabeça para trás e davam risadinhas. Ele corava e seguia o seu caminho, lesto, com os olhos ainda mais firmes no chão.

Senta-se numa cadeira vaga, com a senha número setenta na mão e dispõe-se a aguardar a chamada. Pela primeira vez olha com mais atenção em seu redor. A numeração ainda vai nos cinquenta e pouco mas as funcionárias das análises trabalham rápido a extrair a seiva vital. O numerador eletrónico avança com rapidez, à razão de um número por cada três minutos. Ele cronometra o tempo e tenta calcular quanto falta até chegar à sua vez.

Aflige-se com o cenário que o rodeia. Há tanta gente doente! Será que os que estão neste momento lá fora, longe deste ambiente insano, os que ainda trabalham, sorriem despreocupadamente, divertem-se, amam, conduzem a velocidades estonteantes e espreguiçam nas esplanadas da cidade, pensam que vão ficar eternamente sãos, como se fossem deuses? Saberão eles que as coisas não são assim? Que a sombra da morte surge sempre algures numa curva da vida...?

Não param de entrar mais pessoas no espaço cada vez mais atulhado. Os funcionários continuam simpáticos, calmos e diligentes para com os pacientes, como se estivessem a atender clientes numa loja comercial. Ele fica contente por ver que, afinal, as mentalidades sempre mudam; que os jovens trazem uma mais valia aos serviços públicos, devido à sua maior instrução e diferente postura.

Quer relatar o que está a acontecer diante dos seus olhos, ele que é um vulgar utente de um hospital. Aqui não há doutores nem engenheiros, ricos ou pobres: são todos doentes e carecem de tratamento.
Sofrimento é: olhar para o canto da sala e ver uma rapariga – não terá mais de vinte e poucos anos – magricela, a pele como um pergaminho, num rosto de olheiras cavas, como duas fundas negras, expandindo um olhar tristonho, vago, como se fora uma lâmpada apagada.

Acompanham-na os pais. Ampara-se no ombro da mãe. Andar é um custo. Tudo é um custo. O pai carrega, dentro de envelopes acastanhados enormes, os cardápios dos exames, das radiografias, dos tacs, das ressonâncias magnéticas – ele receia que tudo não seja senão um périplo de notas negativas, más notícias, chumbos nas disciplinas vitais à continuação da saúde, da vida, daquela rapariga tão jovem. A rapariga aparenta um estado irremediável.

Ele quer, sobretudo, evadir-se desta visão que o obriga começar a pensar. O lenço às flores. O lenço que ela usa na cabeça, enrolado à moda dos antigos piratas que dantes povoavam o mar das Caraíbas. Um lenço posto de modo tão simples. Um símbolo. O símbolo da quimioterapia.

As coisas de que ele mais gosta são, não necessariamente por esta ordem: os livros; a escrita; as artes; as flores; o campo; o mar; os rios e toda a água corrente; a fruta deliciosa que cai madura das árvores; a brisa que sopra suave no final da tarde; as horas na relva a ver o céu, sonhando; amar e ser amado. Gosta de beijar e ser beijado. Disso gosta muito.

É fácil desviar o olhar. Fixá-lo no branco das paredes, abrir o livro fininho que sempre transporta na mão. Dar uma mirada no final da novela, apaziguando uma curiosidade irreprimível. Olhar repetidamente os ponteiros do relógio, para nada. Remexer no telemóvel, como se fosse um tique e apagar mensagens e chamadas perdidas que já nada significam. Apagar alguém, desse modo, seria fácil. A morte, afinal, mais não é do que uma súbita falha de luz, de energia.

Fecha os olhos. Sempre detestou agulhas. Sente a picada. Dói. O que é a dor? A dor é subjetiva e ninguém a sente do mesmo modo. Ao seu lado há mais lenços de pirata. Alguns doentes não têm sobrancelhas, nem luz, nem gordura, nem consistência, nem esperança.

A vida é esperança. Viver implica (ter) esperança.

Lá fora está frio. Muito frio. O sol brilha ténue no meio do dia azuláceo. Apetecem sempre dias assim. Sente-se vivo. É por ora tudo quanto lhe importa.

Lisboa 2004





Edelweiss


Ontem, em Leiria, passou por mim uma mulher. Tinha os olhos perfeitamente azuis, como dois lagos profundos, os ossos da cara largos, os lábios desenhados e vivos, com um andar desengonçado e um indisfarçável ar germânico. Presumo que fosse alemã ou austríaca.

Recordei uma das minhas primeiras viagens feita há bastantes anos à Áustria. Em Salzburg, armado em saloio, fui visitar, entre outras maravilhas, o Palácio da família Von Trappen – um percurso lindíssimo pela montanha – e, tal como os camaradas turistas, engoli todas as historietas que a guia local, que falava um péssimo castelhano, entendeu contar – o meu alemão é deplorável e datado.

Edelweiss, sim é esse nome que tinha em mente, é uma flor que se pode encontrar no alto das montanhas e Alpes da Suíça, da França, da Áustria e da Itália. Desenvolve-se de modo espantoso nos cumes mais elevados da montanha e o seu nome significa "branco precioso", pois trata-se de uma linda flor em formato de estrela.

Dizem que quando se quer presentear alguém com algo que signifique amor ou amizade eterna, oferece-se uma flor de Edelweiss a essa pessoa, a flor eterna. Diz-se, também, que a sua duração, depois de seca, é superior a cem anos.

Tenho uma Edelweiss, dentro de uma caixa de vidro, adquirida há cerca de 18 anos numa loja de lembranças, em Salzburg, na Áustria, e, realmente, não noto que tenha ocorrido qualquer mudança na sua morfologia desde então. Hoje, mesmo, li – facto que desconhecia em absoluto – que a dita flor já é considerada Património da Humanidade, pela sua raridade e carga simbólica que encerra.

Sei que a Edelweiss inspirou poetas um pouco por todo o mundo e uma das composições mais lindas e intemporais é essa que leva o nome da flor: "Edelweiss" - tão bela e emocionante quanto a flor. A música é da autoria de Richard Rodgers e Óscar Hammestein, e é realmente maravilhosa. Pertence ao musical The Sound of Music, de 1959, interpretada por Christopher Plummer, que todos quantos pertencem à minha geração recordam - " Música no Coração" e em "brasileiro", o nome mais foleiro com se podia batizar um dos filmes mais premiados de sempre: "A Noviça Rebelde".


domingo, 23 de julho de 2023

A distância de um abraço


Há doze anos que percorro com alguma regularidade a estrada entre a cidade do Lis e Almada. Sempre que posso, evito a autoestrada e opto pela nacional 1. Atualmente chamam-lhe IC 2, mas nos meus tempos de menino, quando em família viajávamos até ao Porto ou em excursões à Serra da Estrela, chamávamos-lhe simplesmente a "estrada para o Porto". O troço da autoestrada entre Lisboa e Vila Franca de Xira, foi inaugurado no ano do meu nascimento, mas somente em 1991, volvidos 30 anos, as duas maiores cidades do país ficaram ligadas por autoestrada.

Nos anos sessenta, a modernidade acabava quando deixávamos o troço da autoestrada em Vila Franca de Xira e nos embrenhávamos na estrada nacional, enfileirados atrás dos vagarosos camiões que transportavam mercadorias entre as duas cidades principais. A "Ponderosa", para os lados de Alenquer, era paragem obrigatória dos excursionistas. Um eventual arranjo entre os donos do café/restaurante e os motoristas, que a mim, criança, me passava despercebido, fazia com que todos os autocarros de excursão parassem naquele lugar, para satisfação das necessidades fisiológicas e um cafezinho.

Se a paciência abunda e a pressa de chegar não é soberana, vou sempre pela nacional. Conduzo uma Yamaha X MAX 250cc que, além de ser bastante confortável, económica e segura, faz velocidades de cruzeiro relativamente baixas, o que permite o deleite integral da paisagem. Quando conduzia a Yamaha FJR 1300 ou mesmo a Aprilia Caponord ETV 1000, chegava mais rápido ao meu destino, mas gastava incomensuravelmente mais combustível e as únicas sensações que retenho dessas viagens, são as ultrapassagens estrondosas e uma estranha incapacidade para conduzir no respeito dos limites de velocidade permitidos.

Hoje tenho tempo. É bom ter tempo e não viver confinado à ditadura dos prazos, dos horários, do tempo controlado e imposto à nossa vontade.

Sigo direito à Batalha e passo rente ao mosteiro, que agora tem umas barreiras acústicas celebérrimas, para salvaguarda dos impactos de ruído e poluição sobre o Mosteiro de Santa Maria da Vitória, declarado património da Humanidade pela UNESCO. E tudo por causa do "impacto ambiental" - adoro esta expressão, mas ainda gosto mais do vocábulo "sustentável". Tudo o que não seja "sustentável", nos dias que correm, não presta, pelo menos até à invenção de uma nova expressão ou teoria.

São Jorge, Cruz da Légua e Aljubarrota vão ficando rapidamente para trás. Saí de casa às 13h00, pois almocei bastante cedo, e sigo viagem em bom ritmo. Há pouco trânsito. Tenho o depósito atestado e não conto parar. A manhã, a principio bastante nebulosa, deu lugar ao início de uma tarde solarenga com uma temperatura convidativa ao passeio. Depois da Benedita e da Venda das Raparigas - o meu falecido pai tecia sempre piadas de franco mau gosto cada vez que passámos por este lugar - a paisagem começa a ser deveras encantadora. À minha esquerda, na Serra de Aires e Candeeiros, as enormes ventoinhas eólicas não cessam de rodopiar, enquanto um ou outro estorninho faz rasantes à roda dianteira da mota e os mosquitos vão-se estatelando na viseira do capacete. Pouco antes do corte para Rio Maior, a Serra dos Candeeiros fica para trás e a sensação de nos encontrarmos no Ribatejo adensa-se. A seguir vem Alcoentre, terra sobejamente conhecida por albergar um dos maiores estabelecimentos prisionais do país; e depois Aveiras de Cima e Aveiras de Baixo, terra que só tem significado para mim como nome dado a uma estação de serviço da autoestrada.

Sigo na direção da Azambuja - terra da antiga fábrica da Ford - e Vila Nova da Rainha, que tem um avião de caça à beira da estrada, para relembrar que é o berço da aviação portuguesa e onde existiu a primeira escola militar de aviação. Depois, segue-se o Carregado, a localidade com o maior outlet do país e onde teve início a primeira viagem de comboio em Portugal, Castanheira do Ribatejo e finalmente Vila Franca de Xira. Agora, à medida que me aproximo de Lisboa, o trânsito é muito menos fluído. As paisagens campestres dão lugar a edifícios feios, urbanizações caóticas, lixo urbano, grafitis nas paredes, cartazes rasgados e estradas esventradas. Um pouco por toda a parte a pegada humana faz-se sentir. Os detritos da nossa existência tomaram conta do que outrora foram campos semelhantes àqueles que alguns quilómetros havia deixado para trás. Pouco já há para saborear no que à paisagem respeita e o interesse é chegar rápido.

Deixo para trás, Alhandra, Vialonga e Póvoa de Santa Iria. Todas partilham da mesma fealdade pragmática dos subúrbios. São ilhas onde se concentram pessoas de baixos recursos que não conseguem comprar ou arrendar casa na capital. De semáforo em semáforo, vou volteando pelo meio do trânsito, com manobras próprias de muitos anos de motociclista, até encontrar uma escapadela para a 2ª Circular em direção ao Eixo Norte-Sul. Antes das 15h00 já me encontro em cima da Ponte 25 de Abril a saborear uma aragem fresca que alivia o calor que sinto na cabeça. Já só penso em ver-me livre do capacete.

Subo a Avenida Bento Gonçalves e estaciono a mota frente ao Café Central de Almada. Acabei de perfazer cerca de 180 kms. A primeira personagem com que me deparo é o Zé Sobral. Tanto quanto recordo, nos anos 70, já invariavelmente o avistava todos os dias naquele local. O Zé Sobral mora a poucos metros do Central e fez toda a sua vida naquela circunscrição geográfica. Dantes, sei que vendia droga e ocupava-se de pequenos delitos, no intervalo de outros expedientes mais honestos. Encontro-o bastante magro, pele e osso, as tatuagens dos braços e do pescoço mirradas na pele queimada por muitos anos de sol, mas o mesmo semblante de sempre. Arruma cadeiras numa esplanada do outro lado da praça, levanta as mesas e varre o chão. Ao que me disseram, ganha para o tabaco e para alguma bucha. Tem uma doença qualquer. Não parece reconhecer-me ou, se calhar, finge não saber quem eu sou. Desvio o olhar em sinal de respeito pela sua condição e entro no café. Ao balcão peço um bolo podre. Há cinquenta anos atrás, elegi-o como o bolo da minha predileção e sempre que me davam uns trocos, juntava dinheiro para comer um. À época, era das maiores satisfações que a vida me dava. Uma homenagem ao travo das coisas simples.

A X Max 250cc ficou no parqueamento subterrâneo do Pingo Doce, pois Almada é terra de larápios. Logo em frente é a casa da minha mãe. Subo no elevador e rodo a chave na porta. Entro na sala de estar e a minha velhinha nem me deixa pousar a mochila. Levanta-se, abraça-me e diz: "Meu rico filho. Tenho rezado tanto por ti!". Também a abraço e ficamos juntos no sofá a ver a televisão sem som. A mãe é surda e não acha necessário subir o volume do som. E eu não me importo. Estamos juntos.

Almada, 2018






sábado, 15 de julho de 2023

Rir de mim



Hoje, depois do treino no ginásio, completamente distraído com as minhas deambulações, entrei para dentro do chuveiro com os óculos postos e as sapatilhas calçadas. Felizmente percebi a tempo o meu lapso quando as primeiras bátegas me caíram na cabeça e fiquei com os óculos embaciados. Embora não tenha sido uma distração com consequências graves, concedo que “estar com a cabeça no ar” é um estado normal em mim e me tem acompanhado ao longo da vida, por vezes em situações recorrentes.

Já fui protagonista de diversos episódios risíveis, motivados pelo meu comportamento nefelibata, por sorte, sempre sem outras sequelas que não fossem provocar o riso nas pessoas que assistiram.

No local de trabalho: bater com o cotovelo ou o braço numa porta e pedir desculpas pelo facto; esquecer-me do código que desligava o alarme da porta da repartição e confrontar-me por diversas vezes com a chegada da polícia; entrar na casa de banho feminina; tomar o pequeno-almoço no bar e não pagar a despesa.

Na rua: tentar abrir a porta de um automóvel semelhante ao meu e depois ver-me confrontado com a chegada do proprietário; deixar o telemóvel em cima do tejadilho do automóvel e arrancar com o mesmo; abastecer e esquecer de ir pagar o gasóleo; por duas vezes, meter gasolina no depósito em vez de gasóleo.

No prédio onde moro: sair do elevador no andar errado e tentar abrir a porta do apartamento do inquilino que mora no piso superior ao meu; deixar a porta da garagem aberta com muitos valores lá dentro; deixar o molho das chaves pendurado na fechadura da caixa do correio ou na porta do meu apartamento; encomendar uma pizza e depois esquecer-me e estar a tomar banho quando o funcionário que faz as entregas toca à porta; deixar comida a fazer no fogão e só dar conta disso quando cheira a queimado; deixar a porta do apartamento aberta depois de chegar a casa com muitas compras.

Na música: esquecer-me, durante um concerto ao vivo, de um determinado acorde ou notas de um solo durante uma sequência musical; perder constantemente as palhetas e depois encontrá-las mais tarde no saco do aspirador, por vezes, três ou quatro de cada vez.

No barco cacilheiro: durante o trajeto para Lisboa, deixar-me dormir e ser acordado por um dos tripulantes, para me informar que já toda a gente havia saído do barco e eu corria o risco de voltar para Cacilhas.

Se eu fizesse um esforço maior, tenho a certeza de que me recordaria de muitos mais episódios, com comicidade apreciável que ocorreram ao longo da minha vida, mas isso tornaria o texto longo e quem sabe repetitivo.

Deixo propositadamente para o fim o relato de uma das cenas mais burlescas que protagonizei. O que vou contar aconteceu teria eu trinta e muitos anos e, já licenciado, frequentava à noite um mestrado na Faculdade de Direito de Lisboa. Durante o dia, trabalhava numa repartição notarial, na Avenida Defensores de Chaves, em Lisboa, onde era o ajudante principal da respetiva notária.

À época, morava na cidade do Barreiro e esta cena aconteceu durante o inverno, num dia ventoso e com bastante chuva, pois recordo-me que eu levava numa das mãos a mala com os códigos jurídicos e na outra um guarda-chuva.

Como era habitual, nesse dia, também levei o saco do lixo para despejar no contentor mais próximo, antes de entrar para o autocarro que me levaria ao barco.

Ao chegar à repartição, por volta das 09h00, as minhas colegas começaram a comentar que cheirava muito mal e não sabiam de onde vinha o mau odor, até que uma delas me perguntou o que é eu tinha dentro do saco de plástico do Pingo Doce que trazia na mão.

As risadas duraram cerca de dois dias. Resultado: fiz os trajetos de autocarro na cidade do Barreiro, travessia de barco no Tejo, de novo autocarro em Lisboa e metro, sempre com o saco do lixo entrelaçado nos dedos da mão esquerda, juntamente com a pega da minha pesada mala preta.

Quem me está a ler estou certo de que a primeira ideia que lhe vem à mente é a de que eu, porventura, estarei enfrentando um processo de demência ou perda das capacidades cognitivas.

Poderia ser o caso se eu não tivesse ao longo da minha vida sido sempre assim. Quando me ponho a pensar, por vezes, desligo-me do mundo físico que me rodeia e sento-me em cima de uma nuvem. Uma nuvem que segue navegando com a brisa ligeira.



domingo, 9 de julho de 2023

Na praia


Prezo muito a doce penitência dos pescadores solitários, fiéis, sempre, junto à sua cana, vigiando o dançar periclitante da linha, como pastores vigilantes de um rebanho de peixes, num prado eterno feito de mar. De quando em quando, desviam os olhos do horizonte e rodam o carreto de nylon verde, ensaiam um lançamento longo, mais junto às rochas negras forradas de algas, em águas mais afortunadas, onde os cardumes se alimentam.

As canas estão fincadas na areia, em suportes próprios. São artes antigas, instrumentos pontiagudos que vão adelgaçando à medida que se aproximam da extremidade. Do lugar donde as vejo, sempre que o vento clama mais forte os seus caprichos, curvam-se com graciosidade, como bicos de tucano. Ao seu lado, muito perto, baldes vulgares, repletos de água do mar, servem de depósito a peixes que já não nadam: jazem argênteos, no fundo, numa quietude de impressionante morte fresca, mas a vibração da água, por breves momentos, parece que os vivifica; mas é mentira.

Sigo sempre no sentido contrário à zona dos chapéus-de-sol, caminhando contra a luz. Fujo das áreas concessionadas, das barracas «Olá», laranja e escarlate; das cadeiras «Pepsi» azul noite. Raspo-me das areias movediças da mundanidade, pelejada de gentes, pauzinhos de gelado, caricas, beatas de cigarros e beatas da vida. Quero-me na praia onde não pontificam os vestígios humanos – não quero «ser-humano» – na língua da areia onde o mar suserano, em frenesim, sem parcimónia, traga despojos de presenças alienígenas (a mim).

Tenho a caneta bem fincada na areia, um pouco acima da linha da vazante, abrigada da rebentação. É uma caneta cinzenta, paper-mate, uma flexigrip ultra, chiquérrima, aborrachada, daquelas que não magoam os dedos, mas, por vezes, magoam a alma. Ela é muito mais pequena do que as canas que observo em meu redor.

Os pescadores distam a alguns metros de mim. Estão dispostos ao longo da praia, em espaços intervalados, cinquenta metros distantes uns dos outros. A minha flexigrip não verga na ponta quando a brisa entorna mais densa. As canas sim.

Aguardo a chegada dos advérbios frescos, de olhar esbugalhado; das frases coragem; dos parágrafos comestíveis, dispostos a disputar-me o domínio, mas eles não vêm. De tempos a tempos, olho para a ponta esférica e aguçada da minha flexgrip. Um raro movimento, um estremecer por breve que seja, enchem-me o coração de esperança e brilho azuláceo. Agora o silêncio. O som do mar. O piar absurdo de uma gaivota que se afasta. As franjas brancas das ondas, ao longe, que aparecem e desaparecem. Um navio a fingir, no horizonte.

[Sempre quis ter uns óculos de sol da cor da felicidade, pois já tenho um chapéu da cor do mar. O mar existe?]

Passaram por mim duas mulheres com os corpos densamente povoados de desejos. Os pescadores não pestanejaram. Permaneceram quedos, os olhos postos no horizonte brilhante. Esperam. Desenleiam as linhas das canas como quem desembaraça os escolhos da vida. Os chumbos estão pendurados no nylon verde como pêndulos de relógios de cuco antigos – O Pêndulo de Foucault não é de chumbo.

Cheira-me a abandono e sinto arrepios de luz pela espinha acima. A felicidade é um acontecimento. Dizem-me que não a devo procurar mas sim esperar. Às vezes canso-me. A minha flexigrip continua hirta, espetada na areia como um soldado perfilado na parada, mas a borracha que a envolve parece ter amolecido. Começa a desfazer-se, pingando gotículas de talento derramado que o mar depressa engole. Os veraneantes, lá longe, parecem vultos pré-fabricados. Movem-se em constância: para lá, para cá, para lá, para cá.

Os pescadores são agora sombras recortadas na contraluz e, com o dedo indicador, acompanho o recorte da silhueta de cada um deles, que me cabe na palma da mão. Os peixes – ainda aguardam por eles – de quando em quando, deixam-se morrer para viverem, ainda que por instantes, dentro de nós. Nós vivemos. Eles não.

Coloco o meu estetoscópio de sonhos e ausculto o pulsar das emoções que me rodeiam. Tomo o pulso à vida, paciente, e peço-lhe com delicadeza que abra a boca e faça: «Ah!». Vi a língua da vida! Ena! Que sensação! De seguida, agarro na minha máquina de fotografar ilusões e proponho-me captar momentos genuínos – um completo desastre! Fico-me pela película da memória. Apetece-me fugir.

Guardo a minha flexigrip, ou o que resta dela. Torno a casa com o mesmo peso com que cheguei. Concentro-me no regresso ao trivial, que é onde a maior parte das coisas se movem e estão à vista de todos. Basta-me sacudir toda esta areia de perseverança, que me incomoda, colocar a pequena mochila às costas e pôr no semblante o sorriso que sempre guardo para os momentos em que me quero parecer com os outros.

Não me despeço dos pescadores, nem do mar, nem do céu, ou da areia. Parto sem olhar para trás, pois sei que as despedidas deixam-me sempre angustiado. Um dia voltarei e, dessa vez, trarei uma cana a sério, muito isco, balde, e tudo o que é necessário para pescar. Por ora, só quero tornar a casa com os pés calçados de subtilezas, antes que cheguem as parábolas da noite e me perguntem o que é feito da minha farta pescaria.

Leiria - escrito no verão de 2006



segunda-feira, 3 de julho de 2023

Da escrita



Às vezes sinto-me pouco gramatical e apetece-me usar marcas de oralidade na escrita, mas depois não consigo. Tento, tento, e as sucessivas investidas, todas frustres, desanimam-me e soltam a negação. Um dos meus defeitos é, porventura, o de não me conseguir livrar do espartilho das formas consideradas corretas estabelecidas pela ortografia. São normas que intui e me esforço por bem utilizar, como se escrever bem fosse tão só isso: o domínio de uma técnica: «- O aposto e o vocativo são sempre separados por vírgulas!», dizia ele.

Afinal, bem vistas as coisas, as regras gramaticais não passam de convenções que, na sua origem, não resultam de qualquer imperativo interno à própria língua, e só se tornam obrigatórias porque são aceites oficialmente pela comunidade linguística. As regras da ortografia valem como leis que pretendem regulamentar a atividade da escrita, disciplinando-a, e só admitem desvios – não censuráveis – no discurso poético. Para tudo o que escape a esse universo de permissividade total, existe uma censura atroz.

Acho, com uma certa ironia, que o esforço gasto para um razoável domínio destas competências, de algum modo, também pode ser considerado nefasto e responsável pela espontaneidade perdida; penso nos «efeitos perversos» gerados pela obediência ao crivo severo e burocrático da gramática – às vezes um balde de esterco de conceitos predefinidos, que mais não serve senão para tornar longínqua a comunicação, que deve ser a essência do discurso escrito.

A felicidade que dantes sentia por ter ligado aos textos corretos – as minhas boas leituras! - e ter tido a sorte de conhecer professores corretamente preparados, com qualidade didático-pedagógica, esboroa-se, hoje, nesta reflexão à «la minute» que frustra todas as recomendações de boa sintaxe.

Mas se, o mais das vezes me mostro incapaz de me aligeirar com interjeições, diálogos, graçolas, que me valha a catarse, o desabafo intimista, ainda que só eu lhe entenda o verdadeiro sentido e alcance. Fico-me, pois, pelo texto rebuscado. Rebuscado de tanto me devassar e pouco ou nada encontrar de novo, não fora aquilo que, de mim, já tão bem conheço.



terça-feira, 9 de maio de 2023

Cats



Olhando para o cortinado de cetim verde da sala, totalmente rasgado, o cadeirão de veludo, com perto de 100 anos, com o encosto do braço esquerdo com a espuma à mostra, para não falar das cadeiras de couro do escritório numa completa ruína e os ímanes do frigorífico, recordações de Londres e do Rio, partidos um a um, não posso deixar de admitir que tenho sido demasiado tolerante para com a gataria que tem coabitado comigo durante todos estes anos. É verdade que são objetos de que eu gostava, alguns adquiridos em antiquário, outros recordações de viagens, mas o meu amor pelos felinos consegue ser superior aos desgostos que me causaram os danos provocados.

Os gatos são como as crianças pequenas: dão-nos muito amor mas fazem tropelias e estragam objetos que para eles são meros ótimos afiadores de unhas. O segredo é não carpir o desgosto pelas coisas estragadas e aceitar o prejuízo inevitável que os bichanos sempre provocam numa casa.

Fico perplexo sempre que oiço alguém dizer que tem gatos em casa mas eles não estragam nada. Das duas, uma: ou os animais vivem em zonas muito restritas da casa, fechados na cozinha ou numa marquise, ou têm as unhas muito bem cortadas. De qualquer forma, ainda assim, é impossível não estragarem nada. Está na sua natureza usar os dentes e as unhas.

Eu gosto de dormir com o meu Negrito e tê-lo perto de mim no escritório quando toco ou escrevo. O cadeirão de pele de vaca, em que neste momento me sento, encontra-se de tal forma estragado que grande parte da espuma encontra-se à mostra. São excrescências estranhas e inestéticas que me habituei a desvalorizar. A minha mãe, sempiterna amante de gatos, tinha uma filosofia própria no que respeita aos estragos dos bichanos: quando os gatos estragavam por completo os sofás da sala, atirava-os fora (os sofás, entenda-se) e comprava outros, às vezes em segunda mão, sabendo que a sua duração estava aprazada.

Acho que foi ela que me ensinou de algum modo a desvalorizar os prejuízos causados pelos nossos amigos felídeos e a aceitar os danos colaterais desta relação ternurenta.

Lembro-me que, teria eu cerca de 4 ou 5 anos, não mais, fiz um lindo desenho com lápis de cera na parede da sala e depois fui chamar a minha mãe para que ela apreciasse a obra de arte, uma vez que lhe era dirigida. Sei, contado por ela mais tarde, que na altura ficou muito zangada mas não teve coragem de me dar umas nalgadas bem merecidas. Assim sou eu com os gatos: barafusto, zango-me, mas não passa disso.




domingo, 7 de maio de 2023

Nós e os outros

 



Fui à varanda manhã cedo e deparei-me com uma chuva miudinha e persistente, quase invisível, que tocou com leveza o meu rosto como se fosse uma caricia. O céu apresentava uma cor indizível, monocromática, um misto de cinzento claro e azul deslavado, sem nuvens, como se o outono tivesse vindo brindar-nos mais cedo, após tantos dias de calor infernal. Um ruído longínquo e constante, produzido pela enorme quantidade de automóveis que àquela hora se deslocavam na estrada nacional, compunha a sonoplastia do cenário. No prédio dianteiro, um andar mais abaixo em relação ao meu, na varanda, abrigado da chuva, o meu vizinho fumava o useiro cigarro ao mesmo tempo que bebia café. É um homem com quarenta e muitos anos, de estatura mediana, usa óculos com lentes grossas e já apresenta alguma calvície, apesar não ter ainda cabelos brancos. Presumo que tenha alguma profissão técnica, talvez seja engenheiro, pois tem ar disso. Vejo-o com alguma regularidade no único café que existe na minha rua. Para mim as pessoas, regra geral, têm ar daquilo que são. Cumprimentei-o e proferi algumas banalidades sobre a súbita mudança do tempo e acerca da urbanização vizinha, cuja construção nunca mais começa, sendo que a vegetação alta e as ervas daninhas já tomaram conta de todo o espaço. Na verdade, os arruamentos que foram construídos para dar serventia aos futuros prédios, apenas servem para que todas as escolas de condução da cidade utilizem o espaço para ministrar manobras elementares aos seus alunos. À medida que recordo as escassas palavras que trocámos, pois somente nos conhecemos do bom dia e boa tarde, lembrei-me de uma frase de Antoine de Saint-Exupéry, por mim lida algures no preâmbulo de um romance cujo título não recordo, que me alertou para a importância da comunicação com os outros, ainda que para dizer trivialidades: “No momento em que sorrimos para alguém, descobrimo-lo como pessoa, e a resposta do seu sorriso quer dizer que nós também somos pessoa para ele”.


Pode parecer desajustado que uma frase de Exupéry sirva de mote a uma tomada de consciência sobre as atitudes comportamentais que devemos ter para com os nossos semelhantes, mas um sorriso – eu não sorri, nem sei bem como o fazer -, um cumprimento, uma conversa ligeira, é um intenso sinal de que o outro nos importa, que é estimável e, como tal, digno da nossa atenção. Quando eu era criança – nos nossos dias, nas aldeias e em conglomerados habitacionais de baixa intensidade, ainda assim é - sabíamos o nome dos vizinhos do nosso prédio, frequentávamos a casa uns dos outros, pedíamos emprestado um raminho de salsa ou qualquer género alimentar em falta e, de um modo geral, havia uma salutar convivência e um verdadeiro espírito de vizinhança - vocábulo que significa proximidade, contiguidade. Se mo perguntarem, não sei o nome de nenhum vizinho do meu prédio, apesar de já aqui morar há mais de 14 anos. Para além dos indispensáveis bons dias, boas tardes ou boas noites, consoante seja o caso e de algumas cusquices que vieram ao meu conhecimento sem que eu perguntasse, nada sei sobre a vida dos confinantes que moram paredes meias comigo. Ao longo deste tempo, já tive conflitualidades com alguns vizinhos mas aqueles com quem as questões foram mais agudas, num caso até polícia meteu, felizmente, já debandaram para outras paragens. O cumprimento, nos dias de hoje, tornou-se a forma normalizada de dizer ao outro que é importante o suficiente para se lhe desejar que o dia, a tarde ou a noite lhe corra bem. A mensagem é clara: não lhe desejo nenhum mal, pelo contrário, não é meu inimigo e quero que as nossas relações de contiguidade assim continuem: sem profundidade e assumidamente formais. A preservação da individualidade é o derradeiro baluarte de qualquer condómino moderno e, salvo raríssimas exceções, até pela usual conflitualidade das assembleias de condomínio, ninguém deseja ir mais além no relacionamento de vizinhança, pois nunca se sabe quando o vizinho do lado, de cima ou de baixo de nós se torna um arqui-inimigo. Potencialmente, todos o são.

Prezo a minha individualidade e assim me fui acostumando, pois se eu considerar a leitura, a escrita, a fotografia, o treino de um instrumento musical, ou mesmo os longos passeios de mota que englobam sempre o ato de fotografar, a maioria das minhas atividades são habitualmente solitárias. Não obstante, tenho firme consciência de que nada somos sem a relação com os outros. Somos seres eminentemente sociais e é na interação que nos realizamos com plenitude. Tudo faz mais sentido se for partilhado, inclusive o que é entretecido e elaborado a sós, no recato do nosso espaço preferencial. Sou proativo no sentido de colocar em prática aquilo que acho ser correto: cumprimentar os outros, os conhecidos e os desconhecidos por quem passo, durante as passeatas à beira-rio, no jardim; dou os bons dias no ginásio e antes de entabular uma conversa ou fazer uma simples pergunta; concedo a primazia a alguém à entrada de um elevador ou de um estabelecimento e, ainda que levemente, esboço sempre o ensaio de um sorriso ou vénia. Mantenho forte a convicção de que os hábitos de cordialidade tornam mais fácil a nossa convivência com os outros e sobretudo connosco. A prática de vida, no entanto, faz-nos quase sempre esperar o pior dos outros e tornou-nos desconfiados por natureza. Uma gentileza vinda de um estranho adquire quase sempre a significação de uma intenção oculta.

Muitos anos antes do aparecimento da Sociologia, ciência que estuda os fenómenos da sociabilidade, Aristóteles, um dos maiores filósofos gregos, afirmava que o homem é um sujeito social que, por natureza, precisa pertencer a uma coletividade. Somos, portanto, animais comunitários, gregários, sociais e solidários. Mas também somos profundamente egocêntricos, desconfiados, capazes de escolher o Mal em vez do Bem e pouco solidários no que concerne a pessoas fora do contexto dos nossos laços familiares ou das nossas amizades. Há muito tempo que me interrogo sobre algumas facetas padronizadas do comportamento humano, especialmente no que respeita a pessoas que estão fora do contexto da nossa intimidade. Morei 46 anos em Lisboa e nas suas cercanias e por lá trabalhei, estudei e utilizei diariamente os transportes públicos. Durante os anos 60 e 70 do século passado, primeiramente acompanhado pelos meus pais e mais tarde sozinho, utilizava amiúde os barcos cacilheiros, bem como os autocarros da Carris os elétricos e o metropolitano. Sou do tempo dos cacilheiros feitos de madeira e aço que, devido à sua vetustez e após várias décadas ao serviço, acabaram na sua grande maioria na sucata. Na década de 60 uma viagem de Cacilhas para Lisboa, fosse nos ferries para o Cais do Sodré ou nos cacilheiros para o Terreiro do Paço, era um momento bastante agradável, em especial no verão, quando retiravam as grandes lonas verdes que tapavam as janelas e navegávamos numa espécie de barco descapotável, sorvendo a brisa que corria sobre o rio e admirando uma vista panorâmica fantástica sobre a cidade de Lisboa, a Ponte e a margem sul. Durante o trajeto, que durava cerca de 30 minutos ou mais, consoante as condições de navegabilidade, existiam sempre a bordo os engraxadores de sapatos e os homens que trabalhavam em escritórios, bancos, ou locais mais formais, aproveitavam para deixar os sapatos a brilhar, ao mesmo tempo que liam a primeiras notícias da manhã no Diário de Lisboa ou no Jornal de Notícias. Depois, apareciam os mendigos oficiais, a maioria invisuais, tocadores de acordeão, com uma caixa preta pendurada no pescoço, onde constava uma espécie de dístico com um número de matrícula, comprovativo da autorização para o exercício daquela actividade, já que a mendicidade era punida por lei. Não raro, faziam-se acompanhar por uma criança, que ajudava na coleta das moedas e mais facilmente enternecia os corações mais renitentes a doar algo para o sustento do músico invisual e da sua pobre cria. Também apareciam vendedores de jornais, de cautelas da lotaria, cigarros e cigarrilhas e até de bolas de berlim. A viagem era tudo menos rotineira e apresentava todos os ingredientes próprios de uma cena de um filme de Fellini. Para quem, como eu, absorvia tudo o que se passava ao meu redor, a viagem num cacilheiro era um festival de sinestesia.

Para além da movimentação comercial intensa a bordo, acompanhada de canções do mundo tocadas pelo acordeão do músico invisual, as pessoas falavam com o parceiro do lado, sem receios ou pudores, sobre assuntos triviais. No final dos anos 70 e início dos anos 80, com o crescente fluxo populacional que começou a rodear a grande cidade, a heterogeneidade das pessoas, vindas dos lugares mais díspares do país e também do estrangeiro, acompanhou o fenómeno. Aumentou a desconfiança, as medidas de protecionismo individual, como consequência de um crescendo da criminalidade. O aparecimento dos telemóveis na década de 80 veio a cimentar definitivamente o individualismo, que hoje é corrente, favorecendo o fechamento em concha das pessoas e mitigando a sociabilidade. Comecei a me indagar por que motivo as pessoas não se sentavam ao lado uns dos outros sempre que existia um lugar vago no autocarro. Fui obrigado a começar a fazer o mesmo, pois essa prática ganhou contornos de convenção social, que ainda hoje se mantém.

Somos seres sociais mas ao mesmo tempo temos relutância na proximidade física com estranhos; repulsa até, nos casos de antipatia por motivos racistas ou de índole congénere. Esperamos que o quente do assento de um transporte público arrefeça antes de nos sentarmos e, sempre que tocamos num corrimão ou qualquer pega tocado por outras pessoas, não descansamos enquanto não lavamos as mãos. No metropolitano ou no elevador, quando seguimos apertados como sardinhas em lata, desviamos a vista para evitar olhar um desconhecido nos olhos. Pode-se sempre falar de medidas de saúde pública. O evitamento do outro como uma forma de nos assegurarmos de que não nos é transmitido qualquer doença, mas a razão principal é mesmo a convenção social que se instalou de que devemos viver com alguma impermeabilidade em relação aos desconhecidos que acidentalmente cruzam as nossas vidas.

Estive no Rio de Janeiro quatro vezes, nos anos de 2006 a 2009, e para além das assimetrias gigantescas que existem nessa gigantesca metrópole sul-americana, com índices de pobreza, criminalidade e corrupção inimagináveis aos olhos de um europeu, que se depara pela primeira vez com o fenómeno, constatei que não existe o evitamento do contacto físico com desconhecidos, que é apanágio dos povos europeus, com maior destaque nos países nórdicos, muito mais afastados dos ritos emocionais dos latinos e grandes cultores da individualidade e da conteção. Para além dos ónibus – até aqui existe diferenciação, pois o “frescão”, com ar condicionado, é mais caro - e dos táxis, existe um transporte público intermediário, com características peculiares, que se pode ver igualmente em qualquer grande cidade africana ou asiática, que é a van. A van é uma furgoneta branca, na sua esmagadora maioria, de marca Volkswagen, fabricada no Brasil sob licença paga aos alemães, e que é um transporte público que tem um ponto de partida e um ponto de chegada: uma linha regular. Não existe propriamente um horário de partida, pois o condutor só arranca quando tem a van completamente atulhada de passageiros, no sentido literal do termo, de forma a tornar a viagem lucrativa. A van, durante o trajecto regular, pára em qualquer lugar da cidade, desde que haja o mínimo de espaço no interior e façamos o sinal de paragem levantando o braço. Fiz viagens em trajetos dentro da cidade do Rio de Janeiro em vans com mais de 20 pessoas a bordo, quando a lotação normal não deveria exceder as 9 pessoas. Desde colchões de camas a animais de criação, passando por caixas com bebidas, comidas e outros géneros, transportadas pelos vendedores ambulantes, no Brasil comumente chamados camelôs ou marreteiros, tudo o que caiba entra dentro da furgoneta branca. Não raro, estando eu sentado, viajei com mulheres literalmente acomodadas sobre as minhas pernas, numa proximidade física, para nós europeus amigos do intocável, quase promíscua. Mas o Brasil é um mundo diferente.

A manhã transformou-se de deslavada e lúgubre, num final de tarde soalheira e aprazível. A vista da janela do meu escritório cambiou radicalmente, como se tivessem mudado uma tela no céu e na paisagem circundante por algo muito mais agradável. O vizinho defronte está de novo na varanda, com o cigarro na mão, mas desta vez com uma camisa social vestida. A mulher, que observo bastantes vezes a estender roupa, não deve permitir fumos em casa, razão pela qual ele permanece muitas vezes na varanda. O ruído longínquo dos automóveis na estrada nacional é a única coisa que não mudou.

Habito no sítio mais alto da cidade e os transportes públicos não abundam como na capital. De onde eu moro até ao centro, distam cerca de 1700 metros, uma descida agradável quando se vai e uma íngreme e penosa subida quando a casa se torna. Durante o inverno, por vezes em dias frios e chuvosos, encontro com frequência mães, com os filhos pequenos pela mão, fazendo a subida. Por três vezes parei o automóvel e ofereci-me para dar boleia e em todas as ocasiões recebi um “não obrigado” como resposta. Entretanto, desisti de o fazer e, das duas, uma, ou aderi ao convencionado ser socialmente correto ou entendi de uma vez por todas que um homem sozinho num automóvel, a oferecer boleia a uma mulher, não é provavelmente um tipo que mereça confiança. Não convivo com facilidade com muitas das regras e convenções que se foram sedimentando e, goste-se ou não, fazem parte do mosaico social do qual todos fazemos parte. Vivemos tempos de desconfiança absoluta e descrença nas eventuais boas intenções dos nossos semelhantes. Fazer uma simples festa numa criança desconhecida, gesto para nós usual há alguns anos atrás, ou permanecer sentado num parque infantil observando crianças a brincar, são tidos por comportamentos tacitamente proibidos, face aos múltiplos caso de pedofilia que têm vindo a lume. Cada vez mais tocar num estranho é tido por um comportamento desaconselhável e evitável. Continuo a renegar a distopia em que a nossa sociedade insiste em se transformar e continuo crente nas palavras de Saint-Exupéry: “No momento em que sorrimos para alguém, descobrimo-lo como pessoa, e a resposta do seu sorriso quer dizer que nós também somos pessoa para ele”. 

Agora vou fechar a janela porque começa a arrefecer.










domingo, 30 de abril de 2023

Vaya Con Dios



Nem tudo são más notícias. Ontem, ao sair do elevador, deparei-me com montanhas de bugigangas, o recheio de casa dos vizinhos do lado que, segundo parece, estão de saída. Aleluia! Trata-se de um casal novo, na casa dos trinta e poucos anos, muito mal-educados, com quem mantenho um conflito relacionado com ruído (provocado por eles) a horas impróprias e que já dura há vários anos.

O último episódio, que não tem mais de um mês, por minha iniciativa, terminou com a vinda da polícia, muito perto da meia-noite, após mais um serão de grande algazarra. Nessa noite, igual a muitas outras ocasiões, os vizinhos foliões decidiram uma vez mais encher a casa de gente (trata-se um apartamento T1 arrendado, o de menor tipologia existente no meu piso) e entre risos estridentes, cadeiras a arrastar e gritaria, preparavam-se para levar a festa noite dentro.
Ainda bati repetidamente com os nós do dedos na parede, para evitar uma vez mais tocar à campainha, não fosse acontecer uma situação de vias de facto, face às discussões que já tive com eles. Como resposta, em total gozo e desafio, seguindo o meu gesto, os desnaturados começaram todos mimeticamente a bater na parede enquanto soltavam grandes risadas. Não perdi mais tempo e chamei as autoridades. Passados 15 minutos, a polícia interveio e eles foram advertidos de que, de acordo com a Lei do Ruído, se fossem novamente chamados por causa do mesmo problema, seriam multados em quinhentos euros.

Nos dias seguintes, esperei algum tipo de represália da sua parte e, a conselho das autoridades, andei especialmente atento, mas felizmente nada aconteceu. Aliás, nunca mais me confrontei com eles nas escadas do prédio. Ao que parece, eles evitavam deparar-se comigo, nunca saindo do apartamento ao mesmo tempo do que eu.

Foram vários anos de confrontação, sempre por causa do ruído excessivo que, muitas vezes, durava até às duas da madrugada. Em todas as vezes, decidi confrontá-los pessoalmente com a questão, nunca optando por chamar a polícia. Prometiam fazer menos barulho e ter mais cuidado, mas nunca cumpriram e as sextas-feiras eram fatídicas. O último episódio exauriu o resto da minha paciência.
Para além da manifesta falta de civismo e das mais elementares práticas de urbanidade, a total falta de respeito por alguém com a idade dos seus pais, reflete a parte ausente de valores que nunca tocaram alguns elementos desta nova geração. São os chamados millenials ou Geração Z, que assistiram ao surgimento da tecnologia e das maiores transformações mundiais dos últimos tempos. Nascidos em Democracia, alguns na abastança , muitas vezes foram protegidos pelo facilitismo dos pais e viram satisfeitas necessidades de consumo para as quais nunca tiveram de trabalhar ou esforçar-se.

Mas felizmente não são todos assim. Interajo musicalmente com jovens com idade para serem meus filhos, alguns, netos, e mantemos uma relação cordial, com amizade sincera e respeito mútuo. A música é por essência apaziguadora e esta paixão transversal torna-nos, a nós praticantes, envoltos numa empatia que derruba quaisquer eventuais conflitos geracionais. Esta podia ser uma explicação simplista, mas acontece que eu tenho a sorte de privar com jovens com ambições, quer musicais, quer de outra ordem, que os resguarda de caminhos menos saudáveis e que cultivam o esforço pessoal como forma de atingir propósitos. São adolescentes e jovens que vislumbram para si um futuro, uma carreira, com sucesso na vida, baseada em práticas salutares e opções que os tornam melhores pessoas. Não é certamente o percurso trilhado por este detestável casal que está em vias de deixar de ser meu vizinho.

Com a mudança, por excesso de carga, já avariaram um dos elevadores (são arrendatários, estão de saída, pouco lhes importam os estragos provocados) e hoje era a mim que me apetecia fazer uma festa para comemorar o facto de que vou deixar de conviver paredes meias com tão insalubre presença.
Se cantar e tocar hinos de aleluia, irão terminar às 22h00, porque a Lei do Ruído é para respeitar. Talvez me fique apenas pela “canção do adeus”, com acordes simplificados, mas em som audível o suficiente para que a metáfora musical atinja os ouvidos destas criaturas persona non grata. Vaya Con Dios e pela sombra, que o sol está quente!