terça-feira, 30 de outubro de 2012

Poetar - Um processo de intenções...



Tenho muita vontade de tornar a escrever poesia, mas, mais do que a prosa, a escrita poética exige desertos de solidão e um estado de espírito especialíssimo que não se arranja quando se quer. A poesia é sempre  um derrame da alma de quem escreve, um estado de exposição franca, um corpo esventrado, engalanado com laivos de estética. São palavras muito intímas, que se escrevem e se querem belas, e têm geralmente por destino, mal grado o poeta nem sempre o admitir, serem sentidas e apreendidas por quem as lê. Muito do que se escreve fica na gaveta, ou em rascunho, mas, tarde ou cedo, alguém certamente acaba por ler os nosso sobejos. Nunca destruímos completamente tudo o que escrevemos, ainda que imputemos falta de qualidade literária às nossas palavras, mas deixar rastos faz parte da natureza humana. Mesmo depois da nossa morte, há sempre quem rebusque o nosso espólio e fique surpreendido com o que encontra e acabe por ficar a conhecer mais do nosso âmago. Facetas da personalidade impensáveis, corações eternamente inquietos, seres mal-amados, infâncias marcantes, mentes distorcidas e tortuosas. Foi assim com Fernando Pessoa e com tantos outros génios da poesia e não há motivos para pensar que possa ser diferente com poetas menores. Em vida, mostramos as caves das nossas emoções, somente àqueles que reputamos merecedores de tomar a ciência sobre o nosso Eu - nós em carne viva. Pouco interessa que os destinatários dos (nossos) poemas os entendam e os recebam como  interpretações autênticas dos mesmos, pois, essas só o autor poderia desvendar; e, nalguns casos, nem mesmo ele conseguiria explicar cabalmente tudo o que quis dizer. Interessa, outrossim, que quem leia os poemas sinta as palavras e lhes atribua sentidos possíveis para além da estética que lhes está subjacente. Escrever poesia é um pouco como radiografar o nosso interior, a forma como a nossa sensibilidade se organiza, como subjetivamos o que nos rodeia, ou os sentires que povoam a nossa mente e depois expo-los a uma luz que permita o olhar dos outros. Não deixa de ser tudo um grande delírio, um universo metafórico onde as palavras vertidas aparentam, não raro, uma pálida correspondência com a realidade. Há verdades, mentiras, ficções, desejos, crenças, malformações, tudo num turbilhão. Há máscaras na poesia, tal como no teatro existem disfarces, trajes, artefactos, cenários e um palco onde se desenrola o processo teatral. Na poesia o palco é a nossa mente. As palavras fluem da nossa mente, entontecidas, em voragem, quase sempre perfumadas com odores agradáveis como os que se desprendem das acácias em flor. Mas o disfarce é constante. O poeta é um perito na arte do embuste através das imagens. Recusa conscientemente a linguagem denotativa. A poesia representa, de certa forma, a antítese do normal valor gramatical das palavras. O poeta prefere as praias da metáfora, da alegoria e, não raro, delicia-se com o perfeito exagero. É o encenador da trama criada pelas suas palavras, mas também pode ser um ou vários dos personagens do enredo que criou; pode ser uma forma anímica, ou não; ou, ainda, outra coisa qualquer. O limite não é o absurdo, mas a inestética e o desvalor das palavras é pecado. Tal como a prosa, também a poesia pode enfermar de prolixidade, abusar da adjetivação, das imagens, das tautologias e usar de franco mau gosto e vocábulos rebuscados. A tentação do facilitismo e o seguidismo de "modelos de sucesso" nunca nos abandonam por completo. E isso é mais visível nos poetas menores. Mas na poesia valora-se sempre a sinceridade de quem escreve e, mais do que o evitar dos lugares comuns, das rimas fáceis e das construções frásicas delicodoces, é a sua autenticidade que nos conquista e faz amá-la, mais do que outra coisa qualquer. 


segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Arte da mãe em mosaico

Alguns quadros e trabalhos da minha mãe, pacientemente tratados no Photoshop por Luís Rebelo, que, pelos vistos, tem ciência e mestria nestas coisas.

Túlipas



TULIPAS


As túlipas são demasiado sensíveis; é Inverno aqui.
Vê como tudo está branco, silencioso e calmo.
Deitada, isolada e calma vou apreendendo a quietude
enquanto a luz incide naquelas paredes brancas, nesta cama,
nestas mãos.
Não sou ninguém; nada tenho a ver com sobressaltos.
Entreguei o meu nome, as minhas roupas de sair às
enfermeiras,
a minha história ao anestesista e o meu corpo ao cirurgiões. (…)
Não queria flores, apenas queria

estar prostrada com as palmas das mãos para cima e ficar
toda vazia.
Como me sinto livre sem que ninguém faça ideia da
libertação…
A paz é tão intensa que nos entorpece
e nada exige em troca, uma etiqueta com o nome, algumas
bugigangas.
Aquilo a que finalmente os mortos se agarram: imagino-os
introduzindo-as na boca, como se fosse hóstias.
Mais do que tudo o vermelho intenso das túlipas fere-me.
Mesmo através do papel de celofane as ouvia respirar
suavemente, por entre as suas faixas brancas, como um
bebé medonho.
A minha ferida corresponde à sua cor rubra.
São subtis: parecem pairar, embora me esmaguem,perturbando-me com as suas línguas súbitas e a sua cor,
uma dúzia de vermelhos pesos de chumbo em volta do
meu corpo.

Nunca alguém me vigiara, vigiam-me agora.
As túlipas voltam-se para mim, assim com a janela
donde, uma vez por dia, a luz se espraia e esvai
lentamente,
e vejo-me, estendida, ridícula, uma sombra de papel
recortado
entre o olhar do sol e o olhar das túlipas,
e, sem rosto, quis apagar-me.
As túlipas plenas de vida comem-me o oxigénio.

Antes de elas virem todo o ar era calmo,
entrando e saindo, sopro a sopro, sem alvoroço.
Então as túlipas encheram-no com um forte ruído.
O ar agora embate nelas e redemoinha como um rio
embate e redemoinha num engenho imerso e vermelho de
ferrugem.
Chamam a minha atenção, que era feliz
quando se entretinha e descansava despreocupadamente.

Também as paredes parecem animar-se.
As túlipas deviam estar atrás de grades como animais
perigosos;
abrem-se como a boca de um animal africano,
e é ao meu coração que estou atenta: ele abre e fecha
o seu vaso de florescências vermelhas pelo puro amor que
me tem.
A água que saboreio é quente e salgada como o mar,
e vem de país tão longínquo como a saúde.


Poema de Sylvia Plath

domingo, 28 de outubro de 2012

Ainda o concerto na Biblioteca Municipal de Leiria


















Algumas imagens dos momentos de poesia e música, que proporcionámos no final de uma tarde de sábado, no auditório da Biblioteca Municipal de Leiria. Foi para mim um privilégio tocar com o meu professor, Luís Emanuel, bem como com o Ricardo, ambos músicos maduros, perto de mim, ave emplume nestas andanças, bem como escutar poesia da minha lavra, dita pela Leonor Lourenço e os sonantes poemas de Luís Silva, recitados pelo próprio. O espetáculo foi um momento agradável,  fruto da colaboração de todos, músicos, diseurs de poesia, autores e um público generoso que aplaudiu calorosamente cada momento. À Drª Teresa, responsável pelos eventos culturais da Biblioteca, seguem especiais agradecimentos pelo seu empenho e disponibilidade, com a certeza de que eventos congéneres terão novamente lugar.  O meu muito obrigado pelos momentos de felicidade que me dispensaram. O meu bem haja a todos!

Biblioteca Municipal de Leiria - 2012 - Poesia e música



sexta-feira, 26 de outubro de 2012

O finar do dia


O morrer da tarde, algures entre Santarém e Leiria - julho de 2012



Absoluto





Há muitas caixas
de muitos tamanhos
e muitas cores.
Estão fechadas
contêm mistérios.
 

Estão sobre a erva,
sobre os mares e rios,
sobre a terra,
sobre as areias.

Fui em busca
daquelas caixas
que contêm mistérios.
Tive uma e outra
nas mãos,
porém, nunca pude abri-las.

No final, senti a morte
recostei-me sobre a erva
vi muitas caixas
que continham mistérios.
Estavam fechadas.

Vi o céu, os mares
os rios
e toquei a erva.
Era verde e húmida
e senti-me terra
erva, mar e céu.

Vi espaços de luz
ouvi a música
da claridade,
senti os amanheceres
a paz do brilho da manhã,
a vida palpitando.

E fui uma luz clara
uma nova luz.

E senti o meu amor
por ti!
E converti-me em água
transbordada.

A terra abria-se
à minha passagem,
banhei infinitos amanheceres
e não me detive.

E a luz sempre brilhou
e houve um novo amanhecer,
todo envolto
por aquela cortina de veludo anil
de onde eu te enviava beijos
num adeus de tules.

Enquanto a morte dormia...

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

"Praia das Rocas" - Castanheira de Pêra


A"Praia das Rocas", em Castanheira de Pêra, no rescaldo de mais uma tarde de verão - agosto de 2012

Mosteiro - concelho de Figueiró dos Vinhos











A localidade do Mosteiro, no concelho de Figueiró dos Vinhos, entre Ansião e Castanheira de Pêra, integra-se no conjunto pitoresco das "Aldeias do Xisto", que abundam na Região Centro de Portugal. Em mais um passeio moto-turístico, captei algumas imagens que, creio, ilustram bem a beleza quase idílica da paisagem envolvente - Setembro 2012

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Viseu

Pormenor de um prédio centenário em Viseu - o barbeiro no rés-do-chão 
outubro de 2012

Ria de Aveiro

A Ria de Aveiro ao anoitecer - janeiro de 2011

A Mãe



Um mosaico de fotografias da minha mãe, que correm o curso do tempo, com o qual que pretendo homenagear a mãe, a artista multifacetada, a mulher eternamente apaixonada pela arte, pela criação, e, sobretudo, a minha melhor amiga. Bem hajas, mãe!


segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Música & Poesia






27 de Outubro - SÁBADO - 18h00

*Música e poesia

Ensemble de música e declamação de poemas que conta com a participação dos professores e alunos de guitarra do Ateneu de Leiria.

Sala Polivalente da Biblioteca Municipal de Leiria

Público-alvo: público em geral


* Entre várias pessoas, serei um dos músicos presentes.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

The fabulous four


Almada - final dos anos 60



À época, um agregado familiar composto por um casal com quatro filhos, no seio da classe média-alta, com fortes práticas e convicções católicas, era considerado normalíssimo. As famílias numerosas começavam a ser consideradas como tal nos casais com seis e mais filhos. As polémicas que hoje se geram com as chamadas "famílias numerosas", que, na sua ideação obsessivo-compulsiva de fazer meninos, invocando o "feito patriótico" do repovoamento do país, para obterem benesses fiscais, são uma das muitas hipocrisias que medram no tecido social. Todos sabemos que no Portugal de hoje, famílias numerosas só existem no seio de dois tipos sociais: aqueles que, por ignorância, pobreza de espírito, indiferença, egoísmo, obtenção de mais-valias com o rendimento social de inserção, entre outras motivações menos nobres, se reproduzem como coelhos; e, naturalmente, nas famílias ricas, que podem pagar, por cada rebento que geram, propinas de mais de 1500 € em colégios particulares, na sua maioria de índole religiosa, que são sempre os mais bem abençoados e também os mais caros, estadias em campos de férias na Grã-Bretanha, ou na Suíça,  reservados às elites sociais, estudos superiores em universidades estrangeiras bem conceituadas, entre outras mordomias a que só os riquinhos têm acesso. Nascer rico ou nascer pobre, é um desígnio que nos calha em sorte, um fruto aleatório, semelhante ao resultado numérico dos dados que se lançam numa mesa de pano verde. Ninguém escolheu nascer, muito menos com um certa e determinada condição económico-social. A responsabilidade é sempre daqueles que, por uma razão ou outra, decidem trazer muitos filhos ao mundo. Não são poucos os que pensam que é à sociedade que se deve imputar o custo com a educação e a alimentação dos seus filhos e que os impostos, cobrados à população em geral, inclusive aos que decidiram não ter filhos, seja por não poderem, ou por não quererem, devem servir de almofada para as suas, quantas  vezes, imponderadas decisões. Mas o que mais custa é ver famílias milionárias, com rendimentos mensais de milhões, apresentarem-se na comunicação social, no papel de vitimas de uma pretensa discriminação a que se dizem sujeitas, desgostosas com a ingratidão com que são tratadas, apesar das mais-valias humanas que pugnam trazer ao mundo, tudo a bem da nação, constituindo associações para a exigência de benesses fiscais. E tudo isto por causa das suas pulsões, aparentadas com a apetência pela cunicultura, das quais são os únicos responsáveis. Se querem ter muitos filhos, que os sustentem e não me peçam a mim, pagador de impostos, que contribua para educar a sua prole. O que mais não faltam, neste mundo cruel e injusto, é crianças a morrer de fome. Adoptem-nos, minorem-lhes a dor, eduquem-nos, seus hipócritas! Não me façam é a mim pagar pelas vossas histéricas decisões! Benefícios fiscais para famílias numerosas? Homessa! Jamais! Se quiserem, juntem-se à Associação Portuguesa de Cunicultura e ... lutem como coelhos que são!


terça-feira, 16 de outubro de 2012

Fragmentos das memórias de um puto xarila


Às vezes penso em Almada, a cidade da minha infância e juventude, a urbe onde saboreei os primeiros gostos e desgostos da vida, o Frei Luís de Sousa, o afamado externato onde frequentei o infantário e a primeira classe; e, mais tarde, o ano propedêutico, logo substituído pelo 12º ano, numa das maiores reformas do ensino do meu tempo. Se fechar os olhos e me concentrar, consigo razoavelmente viajar no tempo e vislumbrar um puto vestido com uma bata azul, com um monograma com as letras RJ bordadas no bolso direito, um remoinho teimoso aprestado no cabelo, magrinho, baixote, enfezado, trajando calções justos e com uns caricatos sapatos de atacadores vermelhos nos pés. Esse puto xarila sou eu. Sempre a piscar os olhos, um tique que ainda hoje me habita, e a pestanejar por causa da luz insuportável do sol. Com uma mala de cabedal afivelada às costas, parece que o estou a ver a caminho da escola, acompanhado pelo batuque ritmado produzido pela caixa de madeira, onde guardava os lápis, as canetas, o compasso e as réguas, a bater contra o interior da mala. Usualmente, acertava o passo por essa batida familiar. Vivia-se o glorioso tempo das borrachas de cheiro que, além de servirem para apagar os erros, também espalhavam odores e sabiam a frutos diversos, que se cheiravam e, não raro, também se degustavam.. O tempo das batas obrigatórias e das fisgas fabricadas com elástico de avião, das criadas arregimentadas na província, imaculadamente fardadas, que iam levar os meninos ricos à escola; das crianças que não usavam sapatos, mas possuíam calosidades tão espessas, que faziam inveja aos cascos de muitos equídeos. Uma época em que os ciganos roubavam o lanche aos meninos ricos, os berlindes multicolores, as moedas que lhes conseguissem sacar dos bolsos e os piões com que se faziam habilidades impressionantes - tornei-me um especialista na arte do pião, mais do que no futebol, desporto que nunca dominei. Era essencialmente o protótipo do puto solitário. Fechado no meu pequeno mundo, diferente do não voluntarismo de um autista, criava conscientemente espaços interditos aos outros. Muito por culpa da Enid Blyton, montava casas no cimo da copa das árvores, levava para lá livros, bolachas, uma almofada, lápis e papel para escrever, tudo acessórios capazes de me entreter durante uma tarde inteira. Era o puto xarila voyeur que gostava de observar do alto dos ramos, na segurança da folhagem espessa, tudo o que se passava lá em baixo, com a granitíca certeza de nunca ser visto. E a sensação de poder que isso dava!  O puto xarila que se deleitava a desviar carreiros de formigas com um pauzinho e que observava, com um espanto continuado, a forma como elas conseguiam, em perfeita união de esforços e coordenação, transportar um gafanhoto morto, com várias dezenas de vezes o seu tamanho e peso. Também me lembro de seguir pessoas, escolhidas ao acaso, sem critério, numa qualquer rua da cidade, e anotar a sua descrição física, onde moravam, e, quantas vezes, ter de fugir a sete pés da sua fúria, sempre que era descoberto a armar-me em sombra; furtar smiles e rebuçados no Pão de Açúcar de Almada, até um dia ser apanhado em flagrante e passar pela vergonha de ser resgatado pelo pai, com um puxão de orelhas e uma séria advertência - o pai, que até era amigo pessoal do chefe da polícia!; levar um ou dois despertadores para as sessões de cinema da meia-noite, na saudosa Incrível Almadense, e, a meio da cena mais intensa - geralmente um daqueles filmes de terror série B, mais que rodados, cheios de estalinhos, tipo batata-frita, e cortes - pôr os despertadores a tocar em simultâneo,  provocando o quase desmaio de algumas espetadoras e o riso inevitável dos restantes.

Não têm fim as memórias do puto xarila e elas surgem às camadas, umas vezes em catadupa, outras por efeito de associações fruto do momento. Acabei de contar apenas aquelas que hoje me vieram no imediato à mente, numa espécie de brainstorming benigno, sem peias ou crivo, mas muitas outras, se não a maior parte, estão a marinar na minha mente, entorpecidas, até um dia...Não é verdade, puto xarila?

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Obrigado, mas não é preciso


Hoje de manha quando cheguei à rua, a opacidade da manhã envolveu-me com aquela luz especial, a luz de outono que adoça os contornos e envolve a paisagem em mistério. O céu plúmbeo, ameaçando chuva, e a chilreada inusitada dos passarinhos que pernoitam na copa das árvores, foram os primeiros registos do dia que acabava de começar. No passeio fronteiro ao prédio onde habito, os carros, com os vidros embaciados do orvalho da noite, engalanavam-se de folhas escarlates e amarelas, mas, à medida que a luz se descobria, a quietude começava a soçobrar. Todos o dias, depois de tomar café no sítio do costume, conduzo por uma espécie de avenida, uma ladeira sem bermas, com pouco mais de mil metros, bastante íngreme por sinal, que rapidamente me leva ao centro da cidade; e, não raro, cruzo-me com várias mães que levam os filhos pela mão para a escola. As bermas, como referi, são praticamente inexistentes e os carros, regra geral, transitam a velocidades pouco recomendáveis. No regresso a casa, desta vez a subir, deparo-me com um cenário idêntico: pessoas que, ou por não terem transporte próprio, ou dinheiro para o transporte público, dirigem-se a pé para casa. O caminho é penoso, uma subida bastante inclinada, especialmente para quem já vem cansado de uma jornada de trabalho extenuante, quantas vezes com crianças pela mão. É comum cruzar-me com velhinhos que fazem diariamente o mesmo trajeto e, por incrível que pareça, até já me deparei com pessoas com deficiências físicas. Este cenário não é uma visão inerente à meia estação que nos bateu de mansinho à porta, mas antes, por infelicidade, uma realidade que, de tão corriqueira, já não toca o coração de pedra dos automobilistas que seguem afanosamente no quentinho das suas casinhas de quatro rodas, embalados pelo som do rádio sintonizado na estação preferida. Não sou melhor do que ninguém: sou um ser igualmente egoísta, que pensa primeiro em si e, depois, remotamente nos outros. Enfim, sou feito da mesma massa com que se fabricam os seres imperfeitos. Isto não significa que não tenha coração, que a consciência não me roa, que não questione o direito sublime de viajar no conforto do meu popó, enquanto os menos validos seguem com sacrifício a pé, ao frio, à chuva e à mercê de um condutor menos lesto que os possa passar a ferro. O que fiz para remediar isto? Para aplacar a minha má consciência? Ofereci boleia, por mais de uma vez, a duas senhoras que subiam com crianças pela mão e também a uma velhinha e, sem exceção, todas recusaram a minha oferenda. Não apresentaram justificação para a negação. Limitaram-se a sorrir e a dizer: "obrigado, mas não é preciso". Não as censuro. A misericórdia pelos outros, por vezes, humilha, ofende, confronta-nos com a nossa própria infelicidade; e os tempos são complicados, a criminalidade lateja em cada esquina. Afinal, de boas intenções está o inferno cheio. E quem não lhes diz a eles, transeuntes incautos, que eu não sou o diabo encarnado pessoa?