quarta-feira, 29 de maio de 2019

A propósito de uma exposição



A propósito de uma exposição que decorre na ESECS, promovida pelo Museu Escolar de Marrazes, em Leiria, cujo tema é o ensino primário durante o Estado Novo - nome consignado ao regime político autoritário, autocrata e corporativista de Estado que vigorou em Portugal durante 41 anos sem interrupção, desde a aprovação da Constituição de 1933 até ao seu derrube pela Revolução de 25 de Abril de 1974 - recordei os meus tempos de escola primária.

Na 1ª classe, frequentei um externato particular, mas nos anos que se seguiram, o meu pai, num lampejo raro para um salazarista confesso, decidiu que o melhor era matricular os filhos nas escolas oficiais, para que cedo nos habituássemos a conviver com todos os extratos sociais e também com os pobrezinhos, um termo que lhe era particularmente caro.

Não existia ensino misto. Os rapazes e raparigas frequentavam escolas diferentes e havia punições severas para os alunos que fosse apanhados num estabelecimento de ensino do sexo oposto. O horário escolar era das 9h00 às 17h00 e o único recreio era à hora do almoço. As carteiras eram de madeira com os bancos pegados. Na cantina da escola ao almoço só davam a sopa e o pão, mas havia um reforço alimentar pela manhã - naquele tempo, muitas crianças iam para a escola de barriga vazia.

Todas as salas de aula tinham obrigatoriamente na parede três símbolos alinhados: uma fotografia de Salazar, outra do Presidente Américo Tomaz (símbolos de afirmação autoritária e nacionalista) e um crucifixo (o ensino era revestido de uma orientação cristã, ao abrigo de uma Concordata entre o Estado e a Igreja).

Cantava-se o hino nacional aos sábados, de pé e em sentido.

Na escola incutia-se a ordem, o respeito e a disciplina. Os professores aplicavam com muita frequência castigos corporais severos. Recordo, sem saudade, a régua e a temida palmatória, mais conhecida como a “menina dos cinco olhos”. Lembro as humilhações de castigos como as orelhas de burro. Não, raro, muitos professores primários davam largas aos seus recalcamentos e sadismo, sovando as crianças até lhes provocarem danos corporais graves. Recordo o Freitas - nunca mais soube dele - o filho do sapateiro, que ficou meio surdo, tantas as palmadas que levou nas orelhas e que lhe afetaram para sempre a capacidade auditiva. Mas a impunidade dos professores era absoluta e muitos pais encorajavam os professores a "chegarem-lhes com a roupa ao pelo".

As disciplinas dadas eram a Matemática, História, Língua Portuguesa, Geografia, Ciências e Religião e Moral. Os manuais escolares da escola primária mantiveram-se iguais durante décadas e hoje há reedições dos mesmos para quem queira recordar esses tempos de obscurantismo.

Os métodos de ensino baseavam-se na repetição, como método primário, até que o aluno tivesse decorado as matérias consideradas obrigatórias. Em caso de erro, havia uma panóplia de castigos corporais e humilhações sempre à espreita dos faltosos. Cantava-se a tabuada e tínhamos que saber, entre outras coisas, o nome de todos os rios, serras e estações de linhas de caminhos-de-ferro portugueses e das colónias ultramarinas.

Felizmente que os tempos de hoje são outros e eu já conheci os últimos estertores do salazarismo e do marcelismo.

Na minha aula de hoje na Universidade Sénior de Pataias, a última do presente ano letivo, analisámos um texto de Rubem Alves que começa com a descrição de Walt Whitman acerca do que sentiu - os sentimentos ambivalentes - quando, menino, foi pela primeira vez para a escola:

"Ao começar os meus estudos, agradou-me o passo tanto o passo inicial, a simples consciencialização dos factos, as formas, o poder do movimento, o mais pequeno inseto ou animal, os sentidos, o dom de ver, o amor - o passo inicial, torno a dizer, assustou-me tanto, agradou-me tanto, que não foi fácil para mim passar e não foi fácil seguir adiante, pois eu teria querido ficar ali a vaguear o tempo todo, cantando aquilo em cânticos extasiados..."

Falámos da importância da leitura e da responsabilidade do professor, que pode fazer a inteligência de uma criança florescer ou murchar; e dos novos métodos pedagógicos que ensinam sobretudo os alunos a formarem um espírito critico e a ter uma atitude de investigador e autoditata. E, sobretudo, da aventura e enorme prazer de que se reveste a aprendizagem de coisas novas e da educação do olhar. Um olhar diferente e abrangente, como se quer.



ESECS - Exposição do Museu Escolar

sexta-feira, 10 de maio de 2019

Onde eu moro



Há onze anos que moro nesta urbanização e há mais de uma década que assisto ao despontar da primavera nos ramos das árvores e à chegada das aves que se tinham resguardado dos rigores do inverno em paragens mais quentes. A primavera é sempre acolhida como uma época de renovação e esperança. Se não tivéssemos inverno, a primavera não seria tão agradável e se não experimentássemos algumas vezes o sabor da adversidade, a prosperidade não seria tão bem-vinda.

Durante uma década muitas coisas aconteceram por aqui. Alguns moradores são os mesmos de sempre, embora mais envelhecidos e outros há que se mudaram; e, de alguns, nunca mais soube novidade. Não deixa de ser inquietante observar o crescimento das árvores do jardim fronteiriço, em cada ano que passa, com mais folhagem e ramos mais maduros e compridos, enquanto os moradores antigos, em contra-ciclo, definham a caminho da inevitável velhice. A natureza segue inexoravelmente o seu curso e a renovação é a regra.

No prédio em frente, do outro lado da rua, instalou-se há poucos anos um casal muçulmano. São bastante discretos. Não frequentam os cafés das redondezas e apenas os vi uma única vez no supermercado. A mulher usa sempre um lenço e uma túnica. Os turbantes e túnicas usados hoje nos países árabes são quase idênticos às vestes das tribos de beduínos que viviam na região no século VI. É uma roupa que suporta os dias quentes e as noites frias do deserto. Em casa ela não usa o lenço, mas se calha vir à varanda, coisa rara, vem com ele posto.

No prédio do meu lado esquerdo, morava até há poucos anos atrás, F., um ex-colega meu. Ao que consta, agredia a mulher, num contexto de violência doméstica, mentiras e infidelidades. Ela fartou-se e pediu o divórcio. No meio profissional, as canalhices dele eram comentadas à boca fechada, até porque a mulher também é uma ex-colega de profissão. Venderam o duplex e cada um rumou a outras paragens. O apartamento esteve mais de um ano à venda até que tiveram de baixar o preço pedido e lá conseguiram despachá-lo.

As bizarrias fazem parte da vida e, de uma forma geral, todos os condomínios têm gente excêntrica. A riqueza do meu advém da sua diversidade, se não veja-se: Uma vizinha que atira pedras aos automóveis que estacionam debaixo da sua janela; outra que mandou instalar um gradeamento na porta da entrada do apartamento; outros que riem, falam em voz alta e escutam música, noite dentro; outro, que ( já cá não mora, felizmente) furava as fechaduras de todas as portas de casa, para que a mulher não se pudesse trancar quando tentava fugir das suas agressões. Enfim. A PSP era uma visita constante do condomínio, mas as coisas nos últimos tempos, fruto da renovação da vizinhança, andam muito mais calmas. Há quem pense que isto só sucede em bairros degradados, mas não é verdade.

Agradável agora é a quase chegada do verão, que trás o ruído das crianças que brincam no pequeno jardim debaixo da copa das árvores e a algazarra das pessoas que se juntam na esplanada do único café da rua, bebericando cerveja e comentando resultados desportivos. Eu estou na varanda, com o olho nos gatos, não vá algum deles dar um salto kamikaze ( dois deles já caíram, felizmente sem grandes consequências), enquanto observo discretamente a vizinha muçulmana, sem o lenço posto, que passa a ferro a roupa da família. Não consigo deixar de pensar que ela já nasceu com um destino traçado. Por motivos de religião e pudor, foi-lhe negada a autodeterminação, como os ramos das árvores que não param de engrossar, ou as aves que sempre voltam para nidificar por estas bandas, tudo sem vontade própria.