segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Assim de repente

Na busca filosófica do sentido das coisas, creio que tenho aprendido muito mais com quem não estou de acordo do que com aqueles em quem o consentimento é fácil de mais, apesar de não enjeitar possuir uma propensão natural para o polemismo, para a contra-corrente. Um dos grandes desafios da vida é, sem dúvida, conseguir a tal capacidade de dialogar com sensibilidades díspares, com pessoas que têm formas de ver as coisas diametralmente opostas a mim. A aproximação fraternal dos aspectos irredutíveis do outro e, em simultâneo, o não abandono das convicções mais profundas sobre a forma como encaro o viver, é um estágio de maturidade e bondade que, confesso, ainda não consegui de todo alcançar. Quando lá chegar, se tal algum dia acontecer, sei que serei uma pessoa bastante melhor, mas até lá terei de me contentar com a miséria da minha mais que banal imperfeição.*

*(Publicado no 'Madrigal', há uns tempos atrás, um pensamento que mantenho e que achei por bem republicar, mas não seja por auto-pedagogia)

domingo, 20 de novembro de 2011

Um hiato nas palavras

Fecho os olhos, deitado sobre a cama, e escrevo dentro da cabeça. As frases ligam-se por suspiros, uma respiração ofegante, sem pausas. Daí a pouco deixo-me adormecer de novo. Nos confins da casa, fica a cozinha. Oiço o barulho constante do motor do frigorífico e alguns ruídos difusos que chegam da rua de forma indecifrável. Quando acordo de novo, quero recordar as frases que houvera escrito na cabeça, mas tudo se esvaiu. Levanto-me, olho-me no espelho, ponho a água a correr e tomo um duche. Gosto de sentir a água quente cair-me sobre a cabeça, na pele, a escorrer-me por todo o corpo. Ao voltar para o quarto, reparo que a porta está entreaberta e, sustendo a respiração, entro. Vejo-a a dormir. A cabeça sobre a almofada, um emaranhado de cabelos loiros escondem-lhe o rosto. O corpo está enroscado num lençol púrpura debruado a ocre. Deixo-me encantar pela delicadeza das suas formas, pela profundeza serena do seu sono. Destapo-lhe o corpo devagarinho, meticulosamente, milímetro a milímetro, como quem conta os poros de um braço, procurando as palavras que se foram. E nada, não encontro nada. Tudo não passou de uma imagem, de uma fantasia. A cama continua desfeita e as formas que eu divisei mais não eram do que uma ilusão de óptica do meu amor por ela.

Do segredo e da felicidade


'Penso que podia modificar-me e viver com os animais, eles são tão serenos e reservados. Quando me detenho a contemplá-los demoradamente, alheios, por condição, a queixas e fadigas, não estão acordados de noite a chorar os seus pecados, não me incomodam a discutir os seus deveres para com Deus. Nenhum está descontente, nenhum endoideceu com a mania de possuir bens. Nenhum se ajoelha perante outro, nem perante antepassados que viveram milhares de anos antes dele. Nenhum é respeitável ou infeliz para o Universo inteiro.'

Walt Whitman



Atrevo-me a dizer que toda a gente, alguma vez na vida, já foi amada. Na infância, na adolescência, na idade adulta, no liceu, na Universidade, ou até mesmo no envelhecimento, uma mãe, um pai, uma avó, um filho, uma filha, um homem, uma mulher, alguém se cruzou ou se manteve por perto, provavelmente, e amou-nos bem. É, no mínimo, uma atitude de presunção agastada querer receitar a felicidade como quem desfolha as páginas do Pantagruel, e nele encontra mil e uma formas de fazer bolinhos de felicidade e alegria esfuziante.

O segredo da felicidade é um segredo de Polichinelo – aquela personagem clássica da comédia dell’arte, das farsas napolitanas e dos teatros de marionetas. Corcunda, barulhento e quezilento, é a figura do bobo da corte, sempre desbocado, dizendo o que deve e o que não deve num tom jovial e folgazão. Os segredos de Polichinelo são por isso a fingir. São farsas dos verdadeiros segredos, que, para que o sejam, devem permanecer ocultos, escondidos, indecifráveis. Qualquer segredo partilhado, ainda que não transborde uma geografia restrita e nunca chegue à praça pública, perde o essencial da sua razão de ser. Quando se partilha um segredo, alivia-se a carga, descarrega-se o peso de se ser, ou de se julgar ser, o único que sabe ou conhece aquela coisa, que é sempre terrível e oprimente, que delata alguém ou repõe uma verdade escamoteada. Entre o peso dos que contêm e se contêm de mais e a leveza dos que deixam escorrer palavras que despem a alma, deve haver uma justa medida para o que se mostra e para o que se esconde.

A felicidade depende, em parte, de condições interiores e, em parte, de condições exteriores. Todas as pessoas que gozam de boa saúde e podem satisfazer plenamente as suas necessidades julgadas elementares, à partida, deveriam ser felizes. Acontece que as coisas não se passam bem assim. A felicidade, nos humanos, é uma coisa muito rara, ao menos como estado permanente. Os animais são felizes desde que tenham boa saúde e bastante comida. Tem-se a impressão que os seres humanos deveriam sê-lo em iguais circunstâncias, mas tal não sucede.

Creio que a maior fonte da infelicidade reside no desamor, nas ideias erradas que se tem sobre o mundo, erradas éticas, errados hábitos de vida que provocam a destruição desse gosto natural e desse apetite pelas coisas realizáveis de que depende afinal toda a felicidade. Uma das principais causas da falta de gosto pela vida é o sentimento de não ser amado, ao passo que, inversamente, o sentimento de ser amado encoraja mais do que qualquer outra coisa. Por variadas razões, um homem pode, por exemplo, considerar-se uma criatura tão horrível que julgue inadmissível alguém amá-lo; pode também ter-se acostumado na infância a receber menos afecto do que as outras crianças; e pode na realidade ser uma pessoa de que ninguém goste. Mas neste último caso a origem do mal reside provavelmente numa falta de confiança em si próprio motivada por precoces infortúnios. O homem que não se sente amado pode tomar, em consequência disso, várias atitudes. Nalguns casos, faz esforços desesperados para conquistar a afeição dos outros, às vezes até por meio de actos excepcionais de bondade. Procedendo assim, no entanto, tem poucas probabilidades de êxito, pois a razão da sua bondade facilmente será compreendida pelos que dela beneficiam e a natureza humana é de tal maneira constituída que testemunha afeição com maior felicidade àqueles que parecem pedi-la menos.

Portanto, o homem que se esforça por conquistar afeição por meio de acções generosas torna-se um desiludido com a experiência da ingratidão humana. Nunca lhe ocorre que a afeição que procura comprar tem muito mais valor do que os benefícios materiais que oferece em troca e, no entanto, é a consciência dessa verdade que inspira todas as suas acções. Outros homens, ao verem que não são amados, tentam vingar-se do mundo, instigando guerras e revoluções ou escrevendo com a pena molhada em fel.. A grande maioria, homens como mulheres, quando sentem que não são estimados, afundam-se num tímido desespero, aliviado somente por fulgores momentâneos

O mundo é este lugar confuso onde eu vivo, contendo coisas agradáveis e desagradáveis, em desordenada sequência. É-me, contudo, irreprimível esta conta-corrente de pensamento e reflexão, sobre os fluxos que julgo serem os mais importantes nesta curta experiência de viver; este percurso aleatório – viagem de ida – onde ditados tais como: «A palavra é de prata, o silêncio é de oiro», não colhem em mim o santuário devido. Já se sabe que muito mais difícil do que abrir a boca e soltar o verbo para largar frases feitas, impressões ambivalentes, palavras entre o muito e o nenhum conteúdo é guardar silêncio. Eu encaro o silêncio como uma mera pausa comunicacional, uma forma de pontuar o discurso, de terminar um assunto e partir para outro. Perdoem-me, pois, aqueles que me lêem por ainda não ter terminado este fiar de tomadas de consciência sobre os méritos e deméritos da infelicidade mas, mais do que qualquer descoberta alquímica, um dos enigmas mais felizes da vida, reside no facto de encontrarmos todos os dias pessoas a quem tudo o que há de mal parece ter acontecido e, ainda assim, mais do que sobreviventes, são alegres viventes, sôfregos de vida, de bem com ela, e, de caminho, com os outros com quem se cruzam, criaturas de histórias muito banais e acontecimentos quase casuais. São pessoas para quem o caminho do Bem é uma opção consciente. Para quem não entendeu, falo-vos dos meus heróis.

domingo, 13 de novembro de 2011

Minímo

Parei de escrever. Há muito tempo que não escrevo e não passa um dia em que não me lembre da importância que essa forma de expressão tem na minha vida. Actualmente tenho ocupado o meu tempo livre com outros afazeres. Dedico-me à música, mais precisamente à prática da guitarra, ao ginásio e a uma pessoa especial. Os desertos de solidão que até há pouco tempo acrescentavam múltiplas razões à existência da minha escrita, têm sido ocupados por beatíficos oásis, que não me proporcionam menos prazer, mas que jamais poderão substituir-se a esta minha actividade, encarada como necessidade fundamental. A escrita, desde há muito, é o meu forro, a minha forma primária de catarse e de auto-entendimento; daí quase todos os meus escritos pecarem por um excesso de convencionalismo intimista, a deslizar para o diário, apesar de serem inúmeras as vezes em que os factos se confundem com a ficção. Gonzalo Torrente Ballester, autor galego das minhas referências, falecido há poucos anos atrás, escreveu algures num dos seus muitos textos de intervenção, que a pior solidão que existe é darmos conta de que as pessoas são idiotas. Obviamente que o autor se tinha em grandessíssima conta e os idiotas a que se referia seriam sempre e necessariamente os outros. Não é no entanto o meu caso. Quantas vezes, nesses desertos de solidão que atravesso, ausentes de sombras acolhedoras, me interrogo se a suposta singularidade, que já julguei possuir, não será ela senão uma vulgar forma de idiotice.