sexta-feira, 6 de outubro de 2023

De novo a Justiça...


Se perguntarem a alguém o que entende por Justiça, o mais certo é que todos se sintam aptos a responder. Mas a resposta, a meu ver, não é assim tão fácil e evidente; e é bem provável que as opiniões resultem díspares e acabem por refletir um pouco o pulsar de cada um em relação ao modo como encara aquilo que acha que deve ser “o viver” dentro do tecido social.

O conceito de «Justiça», mercê da permeabilidade de várias correntes doutrinárias, tem, ao longo dos tempos, vindo a sofrer contínuas alterações – que lhe alteraram a forma e a substância - em resultado do espírito da época e das correntes de pensamento mais fortes que em cada momento vigoraram.

Tenho por assente que a crença daquilo que é justo e injusto [sem querer entrar em querelas impróprias, além de chatas e inúteis, acerca da validade e anterioridade do Direito Natural e Divino, como realidades metafísicas e superiores aos ditados humanos], não é uma constante mas algo que acompanha a evolução das mentalidades e sobretudo das novíssimas conveniências e contingências que vão surgindo e metamorfoseando-se.

A definição daquilo que é justo ou injusto, surge como uma espécie de plasticina apta a moldar-se e transfigurar-se ao sabor de realidades bem mais sórdidas do que o conceito de Bem. O resultado de tudo isto é evidente: o que dantes era considerado injusto, hoje pode ser valorado de forma oposta e vice-versa, tudo à bolina de conveniências que, muitas vezes, pouco ou nada têm a ver com uma preocupação altruísta do legislador em criar uma sociedade mais igualitária – a igualdade será, porventura, um dos paradigmas do conceito de Justiça, mas, ainda assim, também ela padece de imensas interpretações.

Este conceito, após interiorizado no tecido social, deveria presidir à feitura de qualquer normativo jurídico, para servir a finalidade de “fazer justiça”, que é, afinal, aquilo que todos nós, individualmente ou em coletivo, queremos: a consagração dos valores que temos como nossos, com os quais nos identificamos e reconhecemos, alicerçados na ideia de BEM, refletidos em normativos que devem ser cumpridos sob pena da sanção individual, imposta pelo coletivo na pessoa do Estado.

Um dos grandes objetivos que habitualmente se consideram inerentes ao Direito é a Justiça. Haverá poucas palavras com ressonância social e histórica mais majestosas, e poucas haverá também que sejam mais difíceis de analisar racionalmente e prescindindo dos estímulos emotivos que suscita.

Podemos, aliás, utilizar a aceção justo/injusto em diversos sentidos: podemos, por exemplo, dizer que uma sentença judicial é justa no sentido de que nela se aplicou a lei, sem entrar em juízos de valor sobre esta. Neste sentido justo equivale a legal, o que não é necessariamente verdade. Noutra vertente, chamamos justo um ato ou mesmo à própria lei enquanto respeita um critério básico de igualdade. Este significado é tradicional no pensamento ocidental desde Aristóteles e exprime-se no principio de que: «Os iguais devem ser tratados como iguais e os desiguais como desiguais». Nenhum Direito dito «civilizado» deixará de levar em linha de conta esta máxima anterior.

Mas, com salvaguarda dos direitos ditos inalienáveis de carácter prioritário, como sejam: o direito à vida, à propriedade privada, à liberdade de expressão e dos diferentes credos religiosos, manifestações políticas incluídas, sinto, em tese geral, um progressivo decrescendo nos arautos inerentes a todas as liberdades conquistadas - o mais das vezes com o sacrifício de milhares de vidas - e que espelham a civilização ocidental e humanista que conhecemos, onde vivemos e em que acreditamos.

A Justiça e a Segurança, encaradas tradicionalmente como traves mestras da existência do Direito, e como um corpo de normas apto a regular as relações entre sujeitos num determinado grupo social, também tem servido de álibi aos maiores abusos.

Em nome do presuntivo interesse do coletivo, saído de eleições democráticas, aquilo que se assiste paulatinamente é ao favorecimento das elites políticas e o enriquecimento progressivo e constante da classe economicamente dominante.

Ler John Rawls, ou qualquer outro filósofo político bem intencionado e iluminado por astros flamejantes, não basta. Por vezes, quiçá não seria necessário o ressurgimento de uma ação coletiva para acabar com um Direito injusto; e, caso obtivesse êxito, repor uma nova legalidade, desta feita baseada em conceitos que tivesse efetivamente a ver com a ideia de BEM.

Creio que este conceito não é de interiorização tão difícil, assim fosse possível eliminar à nascença a nossa propensão genética para o egotismo, a visão umbilical que temos da vida e o medo dos "radicalismos", das mudanças abruptas, mas seguramente eficazes. Julgamos ficar a salvo, inertes, num eterno registo de preferência por uma "paz social" podre - "eles, os políticos, são todos iguais!

O Direito do mais forte é, infelizmente, o único Direito que parece auspiciar um futuro risonho; e deixem-me rir quando oiço falar em Direito Internacional e na possibilidade de se aplicarem sanções, por incumprimento, a países que detêm um poderio militar e económico que subordina os restantes.

Talvez a manutenção da ideia peregrina de que existe Direito Internacional Público e a possibilidade de o aplicar coercivamente seja, afinal, a ideia mais risível que alguma vez o Homem fantasiou da Justiça…

Sou formado em Direito e....em desilusão, tantos os anos, as teorias, os livros, e os manuais de boas intenções que li, decorei, e que sempre esbarraram contra esta regra implacável: o mais forte (quase) sempre vence.

Por isso mesmo, para grandes males, grandes remédios e a História testemunha-nos ser sempre esse o antídoto único e eficaz. Almejar uma mudança no tecido social sem fazer uma revolução, isto é, sem mudar radicalmente a balança negativa dos desequilíbrios e injustiças flagrantes, é o mesmo que desejar que uma árvore floresça e dê frutos sem lhe podarmos os ramos podres e previamente prepararmos a terra. E, por radical que a minha opinião surja aos olhos de quem me lê, todos sabemos quão verdadeira é.

Isto é: se gritamos contra as injustiças cometidas contra nós, se nos indignamos com a corrupção que medra na classe política, se nos conformamos com a fome de muitos e a aviltante e cada vez maior riqueza de outros; se nada fazemos e continuarmos a pensar que a correção destas desconformidades esquizoides resolvem-se com eleições - mais do mesmo, temos, afinal, aquilo que merecemos. Nós somos quase onze milhões. Quantos são eles, numericamente falando?