sexta-feira, 30 de junho de 2017

Pensamentos matinais



A liberdade de recomeçar é, porventura, a maior de todas as liberdades. A «capacidade Fénix» de nos reerguermos das cinzas, reunindo os cacos, o que sobejou da mobília e das loiças, pondo tudo numa maleta mal enjeitada, refazendo-nos noutro lugar, como se fora um dom de maturidade maior, ou uma mostra da mestria da nossa capacidade de adaptação e sobrevivência.

[Há, inclusive, quem tenha definido a inteligência como a especial capacidade de adaptação a cenários novos, embora pensemos que qualquer tentativa de caraterização do termo redunde numa falácia: há muitos tipos de inteligência, não sendo de todo possível subsumi-la numa definição universal e finalista.]

Igualmente forte, significando coragem, é o poder-dever de cambiar de opinião, arrepiar caminho, refletir, não fazer parte de «uma conspiração de estúpidos», acríticos, acéfalos, completamente tornados invisuais pela incapacidade de análise do self.

Fortalecemo-nos cada vez que nos capacitamos possuir esse sublime virtuosismo, que é a arte de nos reinventarmos. Sentimo-nos aptos a atravessar mares de tormentas, encapelados por ondas de contrariedades, contingências, agastamentos, saindo deles doridos, franzidos, mas capazes de endireitar os nossos amarrotados, de forma a nos apresentarmos, passadas as tormentas, quase incólumes e com um sorriso de vitória nos lábios.

Pretendemos, quantas vezes, delimitar as fronteiras entre o «correto» e o «incorreto» e – sabemo-lo bem – é impossível agradar a gregos e a troianos; movemo-nos sempre nas areias pouco seguras do relativo e do subjetivo, sem saber ao certo onde para esse paradigma chamado «verdade».

A nossa vida desenrola-se num trilho a que chamo, por comodidade, caminho principal, mas que em boa verdade, é um lugar confuso, inóspito, repleto de encruzilhadas, ruelas esconsas, algumas sem saída, percursos alternativos; e, queiramos ou não, perante o que nos vai surgindo ao longo da nossa caminhada, estamos sempre a ser confrontados com a necessidade de optar seguir por uma via ou por outra. Não há escolhas isentas de contrariedades, nem há nada capaz de escapar ao crivo da dúvida casuística. Todas as decisões condensam em si razões prós e razões contra. Estamos, pois, sempre condenados a escolher.

[Escrever serve para muitas coisas, das mais reles às mais elevadas. Como em qualquer arte, o que salva é o mesmo que nos perde. Intensificando a vida, intensifica-se a presença da morte. Mas escrever não é uma coisa que se escolha ou não fazer. E uma pessoa não escreve o que quer, mas sim o que pode. Sinto que escrevo para não morrer e vou morrendo a escrever.]









Deceção



É um lugar comum dizer constantemente que todas as pessoas nos dececionam, mas assim como há pessoas que nos causam esse estado de amargura, outras há que nos surpreendem pela positiva; e outras, ainda, que confirmam tudo quanto já pensávamos delas.

Dizem que os amigos são para as ocasiões - e eu diria que cada vez menos sei quais são as ocasiões em que se deve apelar para os amigos e quais os amigos que se prestam e têm disponibilidade para nos acudir em dadas situações.

As amizades, com exceção daquelas mais antigas, que nos vêm da infância e nos acompanham ao longo da vida, acontecem-nos por zonas de interesse e ocupação, por empatias, por circunstancialismos, muitas vezes fruto do acaso, que nos surgem no trilho da vida. Tendemos a sentir empatia por pessoas que, julgamos, sentem o nosso pulsar, compreendem o nosso estilo de vida, as nossas perceções, possuem gostos semelhantes e objetivos que nos merecem sentido. E, por vezes, até os amigos vão sendo mais conjunturais, mais fruto das circunstâncias e das necessidades práticas de alianças, consequência de tumultos comuns que fazem com que duas vidas se cruzem no amparo da amizade recíproca.

Quando a nossa vida dá para o torto, quando os empregos falham, quando a solidão nos bate à porta, quando os divórcios ou o fim das relações amorosas acontecem e tudo se baralha dentro de nós, temos saudades dos amigos de outros tempos. É aí que escolhemos criteriosamente com quem podemos contar, de que modo e com que limites precisos, e descobrimos que nem todos os amigos são para todas as ocasiões.

É bom fazer amigos. Nos últimos tempos, em virtude da minha cada vez maior presença na música e também na poesia, tenho feitos novos amigos. Nuns casos, trata-se de pessoas bastante mais novas do que eu, mas com uma forma de pensar lúcida e avisada, capaz de entender coisas que, julgava eu, só pessoas com a minha experiência de vida e maturidade conseguiriam alcançar. Noutros casos, são pessoas com idades próximas da minha, mas com vidas e saberes que me completam.

A vida tem destas coisas e nem imaginamos quão enriquecedor é permutar experiências, vivências, com personalidades diferentes.

Os mais velhos, contrariamente ao que diz a «sabedoria popular», também aprendem muito com os mais novos, especialmente quando se trata de pessoas que possuem uma mentalidade muito para além da sua idade biológica.

Gostei muito de ter feito novos amigos, pessoas que valeu a pena ter conhecido, para manter o contato e aprofundar a amizade, já que a vida tem uma duração aleatória e é demasiado preciosa para ser desperdiçada com seres sem luz e medíocres.

Cada vez mais me convenço que o dia-a-dia é feito de um contínuo destes pequenos acontecimentos: coisas que por vezes parecem não ter importância ou impacto, mas que vão dando cor e sentido ao fluir da vida e me fazem adivinhar que ainda há afetos a precisar de partilha, pessoas que gostam de gostar de pessoas e que esse é o maior desiderato da vida.

Uma conversa particular




Não é fácil exprimirmos o que sentimos em todas as circunstâncias. Não é só um problema da língua, do ser difícil, traiçoeira, complexa, contraditória, ou tudo isso e mais alguma coisa. O dizermos, o que nos vai na alma, não passa de uma velha metáfora, despida quantas vezes de espiritualismo, mas pungente na nossa necessidade de afirmarmos, permanentemente, uma existência subjetiva e, de algum modo, transcendente em relação a uma entidade que nos espreita do outro lado do espelho; e que, tantas vezes, não identificamos nem reconhecemos como sendo a destinatária dos nossos expatriados pensamentos. O que nos vai na alma, ou, dito por palavras, o que sentimos, é um caudal iníquo e contraditório em que se misturam, de forma aleatória, quando não descontrolada, sensações, pensamentos, desejos, fantasmas, fantasias, medos vagos e outras coisas de igual ambiguidade. Os sentimentos propriamente ditos, aquele fluxo que medeia entre o amor e o ódio, a alegria e a tristeza, a tranquilidade e a inquietação, o desespero e a esperança, a inveja e a gratidão, habitam-nos como uma segunda pele e dão-nos, além do mais, algum sentido de existência e de coerência. Todos sabemos algumas coisas dos nossos demónios. Eu sei que preciso de fazer uma pausa para falar com eles - uma conversa em particular, como é evidente.


quinta-feira, 22 de junho de 2017

Frio em 2004



Estou com frio, tremo de frio, mantenho-me apagado, as emoções enregeladas e só possuo um pequeno candeeiro infantil, com um abat-jour de pano-cru, azuláceo, que esvaece uma luzinha pálida que me dá um pouco de calor de lâmpada. Ele está aceso, eu não. Ele emite uma luz fraca, mas constante, sem arrependimentos; eu já anoiteci, e, há muito, deitei o meu corpo branco ao comprido sobre as bocas de respiração do metropolitano, com a cabeça encostada ao corpo negrito das crianças que se perderam dos sonhos, sentindo, nessa osmose, o verdadeiro sentido do que é anoitecer por dentro...

Vou com os desistentes, todos de mãos dadas, cantando hinos de saudade e abandono. Fiz as malas e coloquei lá dentro nada; irrevogavelmente, quedo-me nos caprichos da correnteza e deixo que sejam os acontecimentos a surpreender-me: não evito as folhas cárneas que se soltam em silêncio das árvores e planam em rodopio até repousar no chão; não acolho, nem repreendo, a vontade do vento, que é inconstante e sopra conforme lhe apetece, sem lógicas ou direções pré-definidas; não me sinto, sequer, destinatário do apito lúgubre da sirene dos bombeiros que lembra que o dia chegou ao meio;

Eu não sou um dos anunciados nem nunca me faço anunciar. Pura e simplesmente, apareço e desapareço, como uma lua desnudada de feitiços que, por vezes, se cobre, com farrapos velhos de nuvens que sobraram do repasto dos banquetes do céu. Mastigo, com dificuldade, estes pensamentos expatriados da Ópera Bufa que é a vida, aquela única que conheço e me circunda como um círculo cabalístico...

Barreiro - 2004

Empregada, procura-se!



Desde que a minha empregada ucraniana resolveu veranear por dois meses na sua terra-mãe, a minha casa está a ficar suja e em desordem. Felizmente para mim, não padeço de nenhuma desordem mental que me faça limpar compulsivamente, mas gosto de alguma higiene e o meu tempo livre para tarefas domésticas escasseia.

Consciente desse fato, decidi rever os meus parcos conhecimentos do comportamento humano, a fim de poder vislumbrar o perfil mais adequado da senhora de limpezas ideal para trabalhar em minha casa e que me possa socorrer neste momento de aflição. Procuro alguém muito especial. Uma pessoa que padeça de uma desordem mental aparentada com a Mania, que, como se sabe, caracteriza-se por uma alteração de pensamento e comportamental dirigido, em geral, para uma determinada ideia fixa e com síndrome de quadro psicótico grave.

Procuro um ser com grande agitação, loquacidade, euforia, insónia, perda do senso crítico, grandiosidade, prodigalidade, vontade imparável de trabalhar até à exaustão. Não me contento, de forma alguma, com alguém que tenha umas maniazitas, que nem são propriamente manias, no sentido restrito do termo, tais como alguns costumes exagerados ou caracterizados por alguma fixação, ou repetição exagerada de gestos, entre outras coisas. A minha busca está mesmo centrada em encontrar, o mais rápido possível, uma pessoa com Mania, encarada esta como desordem mental.

Mas o busílis da questão é que eu procuro um tipo particular de Mania. Não quero cá em casa nenhuma cleptomaníaca – já me chegaram de sobra!-, nem agorofóbicas, nem tão pouco claustrofóbicas, ou pessoas com outras Manias pouco frutuosas. Procuro, outrossim, alguém cuja Mania se possa manifestar pela repetição compulsiva das limpezas.

Sabemos que há pessoas que vivem mortificadas limpando, limpando o que muitas vezes está limpo, vendo sujidade insuportável na mais pequena poeira. A Mania das limpezas, que pode conduzir a pessoa ao extremo, de, por mais cansada que esteja, não se deitar para descansar, porque não consegue dormir sem limpar o que a sua mente doente considera menos limpo e sem cumprir os afazeres a que se propôs como necessários ao dia de trabalho doméstico, é a mulher ideal para este período negro (e sujo) da minha vida. Quero uma senhora de limpezas mercenária, que limpe e arrume constantemente, numa ansiedade sem tréguas.

Sabemos que, na mente destas pessoas, não é o exterior que está sujo, mas as profundezas da sua mente. Limpam afanosamente o exterior, porque na realidade desejam desesperadamente limpar o interior. Mas, no meu caso, tal pouco me importa. Aproveito para que, limpando a sua mente, aproveitem para me limpar afanosamente a minha casa e mato dois coelhos com uma só cajadada: possibilito que a minha empregada dê azo à concretização da sua Mania e fico com a casa num brinco.

E a minha demanda não vai cessar até que eu consiga encontrar um espécimen com esta doença – preferencialmente que peça pouco dinheiro à hora, já que eu lhe proponho um objeto para a satisfação da sua compulsão de forma graciosa.

quarta-feira, 21 de junho de 2017

O menino perdido




Durante a noite, o menino levantava-se da cama. Caminhava pela casa vazia e às vezes cismava frente às janelas que pensava terem ficado abertas. Todos os dias era o mesmo. Deixava tudo aberto porque se sentia abandonado. Era uma grande casa, repleta de quartos e corredores intermináveis. Como criança que era, erguia os olhos ao céu e à noite e escutava lá fora o pranto dos campos. Escutava os grilos e as cigarras e julgava-os gambozinos. Nessa noite o menino olhou pela janela com os olhos muito abertos e tudo era uma escuridão enorme por não se saber onde terminavam aqueles frutos tão noturnos da vida. A casa também chorava com ele. Toda aquela casa envelhecia durante o tempo e por dentro o menino agastava-se com o seu próprio silêncio. Trazia em si aquele choro das magnólias e das hortênsias, vergadas sob o seu próprio peso, que já pendem para a terra. Aquele mesmo choro dos presentes nunca oferecidos, daqueles presentes para sempre esquecidos, para sempre ausentes no amor. O menino repetia para consigo mesmo: «um dia morrerei», e voltava a repetir, «tudo isto que eu vejo é transitório, todo este nada que eu sou é absolutamente transitório». E com estes ditos, inclinava-se cada vez mais para o silêncio; e no seu coração mais cansado, a morte, terna mas petulante, aconchegava-se no seu peito como se fora o tão ansiado abraço do amor.





quarta-feira, 14 de junho de 2017

Em que estás a pensar?

Na escala de Dó M, sem sustenidos nem bemóis; no meu regresso aos textos; nas férias grandes que se aproximam e na eventualidade de viajar até à terra dos tamancos; nas viagens de mota sozinho ou acompanhado; nos músculos que me doem; na diferença entre a moral e a beleza: é que nós sabemos que a beleza existe mesmo; que uma utopia, mesmo que transporta para a dimensão pessoal, continua a ser uma utopia: uma coisa que não acontece nunca, nunca, nunca; que mesmo as boas pessoas, às vezes, vêem o sofrimento apenas como divertimento; que falo em demasia e, por isso, também escrevo em demasia; que tenho alguns anos e ainda não me sucedeu nada, capaz de me fazer feliz, que fosse verdadeiramente lógico...

sábado, 10 de junho de 2017

Diatribes às 2h50 da madrugada


Ainda que estivesse ao meu alcance, a 'sedução' é coisa que não me interessa. Etimologicamente, 'seduzir' é enganar. E eu ainda mantenho viva essa ingenuidade pateta e verídica que são os 'sentimentos'. E o amor não é apenas o estado em que se está disposto a sacrifícios. É o estado em que se está disposto a humilhações - que findam atingida que seja uma certa fasquia: a tal linha vermelha que jamais admitimos seja ultrapassada.

2014

sexta-feira, 9 de junho de 2017

Um sonho - um desejo




Por vezes só damos conta dos sonhos depois de acordarmos e vermos que eles acabaram e resta-nos aquela vontade de sonhar tê-los um pouquinho mais. Existem pessoas que são um sonho, um sonho pelo qual nós dormiríamos a vida inteira, mas o destino vem e acorda-nos, por vezes violentamente, e leva-nos aquele sonho tão bom.

Existem pessoas que são estrelas, doces luzes que enfeitam e iluminam as noites escuras das nossas vidas, mas vem o amanhecer e rouba-nos com toda a sua claridade aquela estrela tão linda.

Existem pessoas que são flores, belezas discretas que alegram o nosso caminho, mas com o tempo, as flores murcham e enchem-nos com a saudade da sua cor e do seu perfume.

Existem, finalmente, pessoas que são simplesmente amor. Um amor doce como o mel de uma flor, que desabrochou e veio até nós num sonho lindo! E ainda bem que são amor, porque as flores e os sonhos, a luz das estrelas, mais cedo ou mais tarde, terminam. O amor, quando verdadeiro, não queremos que termine nunca... *

* escrito em 2005

Dos sentimentalistas e canalha semelhante




É um lugar-comum dizer que os escritores e poetas, ou os escreventes que aspiram a algo semelhante, amam a boémia como se esta fosse uma arte digna de ser enaltecida e cultivada. Diz-se (vox populis) que os poetas necessitam respirar, a plenos pulmões, o oxigénio embriagador da liberdade, talvez porque o sonho não admite nem muros nem fronteiras. Diz-se, também, não sem uma certa leviandade, retomando talvez o imaginário dos poetas românticos do século XIX, de pince-nez e punhos de renda, que os poetas são incapazes de amar com consistência uma só pessoa.

Acho tudo um absurdo e, mais do que um mito urbano – expressão condizente com os supetões da moda que assolam a nossa língua –, é tão-somente de uma questão de genuíno preconceito que se trata. Se existem pessoas capazes de amar com intensidade e viver de forma sublime o apaixonamento, são precisamente os espíritos poéticos, pois, não raro, conseguem, melhor do que ninguém, abdicar de pensar em si mesmos em nome do sentimento que nutrem. Não será essa a melhor postura provável perante o amor?

[As pessoas que conheço mais centradas em si mesmas, os ditos "amantes da liberdade", pouco ou nada têm de poético; são, antes, seres umbilicais, racionais, feéricos, calculistas, pouco dados a compromissos duradouros, que não abdicam, por ninguém, ou coisa alguma, dos seus hábitos e vontades enraizados; e, quando o fazem, é sempre a contra-gosto, com o sentimento vago de estarem a fazer um enormíssimo frete, tudo em nome de um altruísmo emergente a que urge acudir.

Devido à forma míope como encaram o mundo que os rodeia, tendem a incutir nos outros as suas próprias paixões, por forma a poderem livremente continuar a dar satisfação aos seus gostos pessoais, já que o abdicar de si mesmos é para eles uma demasia. Mais fácil é "conquistarem" os outros para o seu universo pessoal, por forma a não perderem o hobby, e, desse modo, poderem conciliar a "partilha" sem perderem pitada do seu egocentrismo]

O gosto pelas viagens, ou a necessidade de um tipo de evasão semelhante, não deve ser confundido com a inconstância ou a incapacidade de possuir sentimentos sólidos e duradouros por alguém. Viajar é um pouco como desdobrar a vida em várias vidas, é mudar de alma como de camisa, é iludir o tédio das rotinas diárias, pois não pode haver sina mais triste do que ver todos os dias as mesmas árvores, o mesmo céu, as mesmas fisionomias. Viajar é um pouco como trilhar o destino dos rios e dos regatos: fluir sem descanso, não beijando duas vezes a mesma pedra, não banhando duas vezes as mesmas sebes floridas, correndo e cantando por montes e vales. Parece uma contradição, mas é antes uma conciliação: o melhor remédio que existe para este género de tédio que assola as nossas vidas é a mudança de ambiente, talvez porque tenhamos a ilusão, ao vermos novas paisagens, que o nosso espírito se renova, abandonando, como fardos inúteis, as mágoas e as preocupações - na verdade, a "bagagem" que nos ocupa espaço na mente e no coração, acompanha-nos sempre, ainda que viajemos para as antípodas do lugar em que nos encontramos.

Uma característica que encontro amiúde nos ditos espíritos racionais, aqueles que em público se envergonham de expressar emoções, para quem conter a manifestação dos sentimentos é trés chic; e julgam boçais, primitivos, até, todos quantos acreditam no romance e na força da paixão, é a inveja absurda das pessoas sanguíneas, mormente dos poetas e de todos quantos têm a coragem de espraiar a necessidade de amar e de se sentirem amados.

Se por um lado os acham ridículos, grotescos, primevos, dotados de um lirismo insuportável e incapazes – segundo eles – de enxergar o mundo tal qual ele é; por outro, adoravam conseguir endoidecer com uma luz primaveril, com o flauteado das aves na copa das árvores, ou com o arrulhar das ondas do mar no final de uma tarde estival.

Evitam a espontaneidade dos sentimentos como se se tratasse de um pecado, de uma volúpia proibida à sua condição de meio-monges, ações que vituperam em público, mas secretamente admiram. Não ousam, perante os outros, nem a sua reputação alguma vez lhes permitiria, dar gargalhadas insanas, manifestar tristezas pessoais, ou vibrarem de alegria. A cobardia, aliada a uma afasia sentimental e um provável vazio estético, empurra-os para a única situação possível: a tristeza calada em que tudo é silêncio e a alma que chora abafa as vozes do seu sofrer latente.

O mais das vezes, são almas forasteiras, que vagueiam sozinhas na espessura da noite, procurando a companhia sublime do amor. Não devemos descuidar dos seus infortúnios, nem tampouco nos sentirmos ofendidos quando escarnecem de nós. Afinal são eles quem precisa da nossa ajuda.*

* Escrito algures em 2006 (Um desabafo em carne viva)

quarta-feira, 7 de junho de 2017

O Síndrome do Corno Retroativo




Em 1973, um grupo de homens assaltou uma dependência do Kreditbank em Estocolmo e fez reféns os empregados do banco. O sequestro durou seis dias. Uma vez resgatadas, as vítimas mostraram uma estranha simpatia e empatia pelos seus raptores. Essa reação psicológica correu mundo com o nome de Síndrome de Estocolmo.

Tudo isto tem sido lembrado a propósito de um caso relativamente recente, passado com a austríaca Natascha Kampusch, raptada e fechada num quarto entre os dez e os dezoito anos e que, depois da sua fuga e do subsequente suicídio do raptor, demonstrou sentimentos bastante compreensivos para com o mesmo. Este síndrome não é mais que uma resposta psicológica que encontramos em situações mais quotidianas, como a violência doméstica, exercida quer a nível físico, quer a nível emocional, sobre muitas mulheres, que posteriormente não só se mostram capazes de desculpar o seu agressor, como também se convencem que a agressão pode afinal ser 'uma prova de afeto'.

São muitos os comportamentos de índole patológica que ganharam o nome de algo a que se ligaram ou do cientista que os catalogou.

O chamado Síndrome de Asperger, transtorno de Asperger ou desordem de Asperger, é uma síndrome do espetro autista, diferenciando-se do autismo clássico por não comportar nenhum atraso ou retardamento global no desenvolvimento cognitivo ou da linguagem do indivíduo. Alguns sintomas deste síndrome são: dificuldade de interação social, falta de empatia, interpretação muito literal da linguagem, dificuldade com mudanças, perseveração em comportamentos estereotipados. No entanto, isso pode ser conciliado com um desenvolvimento cognitivo normal ou alto.

O Síndrome de Tourette, talvez o mais estranho dos catalogados, é uma doença que provoca tiques e obriga a dizer palavrões.

Os portadores do Síndrome de Savant são um mistério que fascina e intriga a ciência. Donos de uma memória extraordinária, são capazes de decorar livros inteiros depois de uma única leitura ou tocar uma música na perfeição após a primeira audição. Possuem ao mesmo tempo sérios défices de desenvolvimento, como uma grande dificuldade para falar e se relacionar socialmente. O mais famoso savant do mundo, o americano Kim Peek, que inspirou o director Barry Levinson a fazer o filme Rain Man, aprendeu a ler aos dois anos de idade e, hoje, já adulto, sabe de cor mais de 7.500 livros.

São muitos os síndromes e com certeza não conseguiria enumerá-los na totalidade, quer por desconhecimento dos mesmos, quer por falta de tempo ou de interesse textual. Acho, no entanto, uma injustiça que a possibilidade de conferir epítetos a certos tipos de comportamentos, identificáveis como síndromes, seja apanágio das doutas inteligências, homens da ciência que os identificaram, ou dos lugares onde esses mesmos comportamentos tiveram lugar. Estivado por um espírito criativo, amante confesso dos neologismos, dos barroquismos, e dos lupanares da linguagem, decidi apelidar um comportamento estereotipado, comum entre certos amantes, que confundem relacionamento com posse, amor com fusão e paixão com delírio de ciume, de 'Síndrome do Corno Retroativo'.

O Síndrome do Corno Retroativo, catalogado por mim, como mais uma qualquer doença do foro patológico, caracteriza-se por um ciume intenso, a raiar o absurdo, por quaisquer tipo de relações amorosas havidas com a pessoa com a qual se tem uma relação presente. Essa postura ridícula, excessiva e obsessiva, é capaz de corroer rapidamente relações e fomentar intolerâncias. Parece, no entanto, que certo tipo de pessoas estão condenadas ao ciúme e que a história da sua vida se desenrola na permanente superação desse sentimento que as visita com uma regularidade mais do que desejável. Essas mentes doentias, sofrem por serem ciumentas, porque têm medo que esse sentimento fira o outro, e porque sabem que se deixam submeter a uma imensa banalidade e prova da sua baixa estima.

O doente padecendo do Síndrome do Corno Retroativo, não tolera telefonemas de pessoas que passaram pela vida do seu/sua parceiro, ainda que seja para falar de coisas triviais, mas necessárias, tais como assuntos relacionados com um filho comum. Não tolera ver fotografias de antigos namorados/as, ainda que amarelecidas pelo tempo. Não tolera conversas sobre assuntos amorosos do passado dos seus atuais amantes, e é capaz de abrir cartas que não lhe são dirigidas, rebuscar telemóveis à procura de chamadas recebidas ou efetuadas, ou de eventuais mensagens, persegue e vigia o companheiro, e não lhe admite, sequer, que tenha amigos do sexo oposto.

Temos ciumes sempre por más razões. Ou por medo de perdermos o amor, a consideração ou simplesmente a atenção de alguém; por não sermos suficientemente bons para prender a nós as pessoas. Este ciúme auto-infligido pelos que padecem do Síndrome do Corno Retroativo, assenta sempre numa insegurança básica, numa angústia de quem sente sobre si o desabar do mundo, só de pensar que o 'objeto' do seu amor já foi possuído por outrem. O doente sente-se um corno eterno e irremediável e não encontra forma de se ver livre das 'hastes' que tanto o perturbam. A bem dizer, não há nada que o convença, nem que consiga entrar dentro dos seus neurónios, de que os 'outros' fazem parte do passado e que inevitavelmente todos nós temos uma história de vida, que não podemos nem devemos renegar. A criatura padecendo desta patologia até sofre com a não virgindade do seu parceiro/a e destrói tudo com delírios insuportáveis.

Ainda que nos faça cair o queixo de espanto, é certo que há por aí muitos gentios a sofrer do Síndrome do Corno Retroativo, ávidos por infernizar quem ingenuamente se lhes submete. E se num primeiro momento, o seu ciume expresso e reivindicativo, até que parece valorizar o outro, até lhe concede um estatuto de desejabilidade intensa e impensada que sabe bem, rapidamente se percebe que esse outro não conta muito, não é amado mas possuído, não tem espaço de afirmação próprio, mas antes se usa para expelir angústias que não lhe dizem respeito. Por estas e por outras, há muito que aprendi a detetar pessoas portadoras desta patologia e a melhor forma de as evitar, mas ninguém, onde eu me incluo, está livre de errar de novo. E por vezes o que apetece é mesmo uma postura trivial de não compromisso, capaz de evitar encontros de terceiro grau com portadores deste síndrome.

O ciume e a possessividade são ingredientes, se em quantidades aceitáveis, inerentes a qualquer relação amorosa, mas quando a patologia se instala, é o inferno que entra na vida de cada um de nós.

Todos certamente já provocámos e sofremos por ciume, desconfiança injustificada e irracional, mas temos de fazer um esforço por não descambar na patologia. Afinal, sofrer às mãos de uma pessoa povoada por esse tipo de patologia, é um pouco como deixar o inferno tomar conta da nossa vida e abdicar daquilo que mais nos integra: a nossa liberdade e auto-estima.*

* escrito em 2008 e publicado em blogues e num pasquim.

terça-feira, 6 de junho de 2017

Os Indiferentes




Indiferente é todo aquele para quem tudo nem é bom nem mau e, para onde quer que vá, arrasta sempre consigo o despautério do prefixo de negação. Não manifesta preferências: é apático, insensível, por leveza e comodidade, ao contrário do indiferentismo. Esse sim, ao menos, acolhe o "ser indiferente" como uma alternativa consciente, uma escola da qual é pupilo voluntarioso.

Indiferentes aos problemas da solidão e do desejo de evasão, que domina a vida de três quartas partes das pessoas, o seu pensamento, a sua inquietação, estamos todos! Ninguém pode sozinho acolher a noite quando ela cai, assim como é impossível travar o rodar inexorável do tempo, o caminhar para a morte que nos espera implacável, em dia e hora incertos; o envelhecimento, o esboroamento dos acontecimentos mais felizes, os erros crassos irrevogáveis; a passagem das linhas que nunca deveriam ter sido transpostas.

Indiferente ficará, por certo, o incauto leitor deste purgante ligeiro, laxante de consciências mais pesadas do que o ar...

Indiferentes, todos nós:

Ao rio, que é o mesmo de há muitos anos, e está hoje mais quedo do que nunca; ao tráfego marítimo; às gaivotas que piam sem cessar; às nuvens que ora escondem o sol, ora o destapam; aos autocarros que baforam nuvens pretas de diesel queimado; aos transeuntes que estugam o passo e mantêm a cabeça baixa enquanto caminham para algum lado; aos carteiristas que deitam olhares profissionais às malas das turistas incautas... [uma banda composta por rapazolas ingleses, trajando camisa branca e calça preta, de cabelo palha, e borbulhas a florir em botão nos rostos colegiais, propõe, para o final da tarde, encher a praça que mais intimidade tem com o Tejo, com acordes soprados por instrumentos doirados que reluzem ao sol, transportando o néctar do som, depois de depurado por curvas caprichosas, para os sentidos de quem por lá passa e se detém com a firme vontade de os escutar.]

À regularidade simétrica com que os carros rolam na avenida; ao marejar da chuva leve da primavera nas folhas altas das árvores; ao som distante da cigarra que canta monocórdica algures no restolho; ao, quase impercetível, orfeão das rãs no lago fronteiriço; aos namorados que passam entrelaçados e trocam juras de amor eterno; à miudagem que bate com paus nas folhas de zinco que ladeiam e protegem a obra... [o guarda-nocturno continua imóvel no seu posto, frente à televisão, sem esboçar um único movimento, como se estivesse sob o efeito de uma hipnose que o tivesse congelado naquela posição].

As horas passam, o dia vai morrendo, o sol esconde-se, a escuridão toma conta de tudo e, às tenras horas da alvorada, os primeiros operários revisitam a obra: os entulhos da véspera, os sacos de cimento vazios caídos no mesmo chão, as areias que não foram mexidas, a não ser pelos gatos noturnos; os andaimes que não soçobraram com os humores do vento.

O guarda-noturno sai, passa por entre um grupo de operários de olhar extinto.

Indiferentes à gaivota que, já há algum tempo, paira sobre as águas do lago e, de repente, sem piedade ou hesitação, mergulha em voo picado sobre um dos patinhos bebés - esses que nasceram há dias e se julgam sob a proteção da mãe - e, sem preâmbulos, com duas ou três bicadas, mata o indefeso e engole-o de uma vez só. E, como se não bastasse, e não estivesse já saciada, passado instantes, repete o mesmo procedimento, desta vez com um ganso recém-nascido que tenta em desespero, subir para a margem.

Em redor, as pessoas serenas e continuam a falar umas com as outras, em amena cavaqueira, como se nada de extraordinário se tivesse passado. Foi apenas a natureza que pronunciou os seus ditames, sem mácula ou cor de pecado. A vida (a nossa, claro!) prosseguiu sem os hiatos destes momentos.

Indiferentes, aos farrapos de carne e pelo grudados no alcatrão quente, os automobilistas não diminuem a marcha, antes fazem pequenos desvios para não experimentarem o desagrado de sentir o baque das rodas dilacerarem o que resta do gato morto, horas atrás, por um camião demasiado indolente para desviar o curso da colisão fatal; e nem as coroas de flores que, amiúde, ornam, como memoriais de tragédias recentes, os separadores centrais, desencorajam a velocidade estonteante dos corredores da morte que se anuncia sobre rodas. Desviam o olhar do desagrado, aumentam o volume do rádio, assobiam músicas de acorde fácil, refastelam as costas no assento dos banco, fingem que o seu mundo é um aparte; nada daquilo lhes respeita, por princípio, por uma questão de sobrevivência.

Indiferentes, aos indigentes que se aninham uns contra os outros, sob cobertores de odores nauseabundos, junto à estação dos barcos: a bagagem aligeirada, uns poucos sacos de plástico de uma qualquer grande superfície; algumas caixas de cartão espalmadas; os pés nus, negros da fuligem da vida, tocando ao de leve garrafas de vinho esvaziadas na véspera, exalando a miséria de uma vida à sombra do desejo; os cabelos pegajosos, indomáveis a quaisquer escovas, fedendo a gado lanígero em dia de feira. Os passantes que se movem com o cuidado exagerado de não pisar algum corpo mais saliente. Desistentes, pensam eles. "Derrotados não são os que perderam mas os que, de alguma forma, desistiram de lutar". É esta a receita mágica, a aquiescência, que alivia a mente e impede ulteriores interrogações que provocam má disposição gástrica: o limiar da miséria da vida de uns, por oposição à opulência extrema de outros.

Indiferentes, à dor dos candidatos a passageiros que penam tempos infinitos nas filas apinhadas, quantas vezes à chuva, ao frio, à mercê dos elementos, os condutores dos autocarros passam, displicentes, com o rodado dos veículos nas poças de água que bordejam as paragens. Se algum passageiro de última hora implora que lhe abram a porta, o mais das vezes, viram a cara para o lado, assobiam para o ar para afastar à má consciência, e arrancam com a fúria de um deus alado, contentes com a sua atitude, gratos pela sensação de poder que lhes transmite o facto de poderem, com esse gesto, decidir a boa ou má sorte de alguém: "Deixa-me entrar?" "Não, não deixo, viesse mais cedo!".

A indiferença consciente é tão intrinsecamente humana que, antes de parecer uma deformação ética, uma povoação de egoísmo, mais se assemelha a uma das características, senão porventura à maior, da condição de sobrevivência individual da espécie de que fazemos parte. A escolha reside em ser ou não ser indiferente, como em Shakespeare. É óbvio que a opção tomada nunca será indiferente.*

*escrito em Lisboa, algures em 2005

segunda-feira, 5 de junho de 2017

O intelectual




Não sei quantas vezes já me interroguei sobre o verdadeiro alcance e significado do vocábulo «intelectual», sem que tenha chegado a alguma conclusão satisfatória...

Um intelectual, para o senso comum das pessoas, é alguém votado ao estudo profundo das coisas e artilhado de uma grande cultura; mas, não raro, já ouvi a expressão ser empregue com um sentido pejorativo: «Estás armado em intelectual?»; «Aquele tem a mania que é intelectual!...»; como se gostar da leitura e do saber, alimentos essenciais do espírito, fosse sinónimo de presunção, pecado, ostentação, vaidade e algo de que nos devamos envergonhar e esconder dos que nos rodeiam, como se fossemos portadores da peçonha.

O intelecto ou a inteligência - e julgo que esta noção é pacificamente aceite por todos – é a capacidade de adaptação e domínio de novas situações, a possibilidade de “fuga” ao determinismo biológico, ultrapassando a limitação das respostas meramente reflexas que são mais próprias dos animaizinhos. Nós reunimos as duas opções e é bom que façamos uso delas.

O conhecimento, então, resulta de uma dialética bem diagnosticada: o sinalagma sujeito/ objeto.

Enquanto a função do sujeito consiste em apreender o objeto tornando-o presente a si próprio, a função do objeto é meramente passiva: deixa-se apreender dando conteúdo ao que é apreendido pelo sujeito.

A experiência de cada um mostra que há para o homem dois modos ou graus de conhecimento: o conhecimento sensível, singular e concreto, e o conhecimento intelectual, universal e abstrato; e toda a Teoria do Conhecimento, que estudámos nas velhas lições de Filosofia, valora exatamente a análise da experiência, o que implica a decomposição desta nos seus elementos: sensação, intuição e pensamento.

Mas toda esta verborreia não elucida ninguém, incluindo eu próprio, sobre o que afinal vem a ser um intelectual.

Um intelectual pode ser, efetivamente, alguém dotado de um grande afã de sapiência e, por essa via, dotado de uma cultura superior – que dista da mediania; ou pode ser alguém que abomina as vias-sacras do futebol, dos tunnings e dos turbos, das revistas de informática, das discotecas com “muitas gajas” e, como consequência (dessa negação), resultar num ermitão voltado para as leituras e consagrado a essas únicas iguarias que lhe alimentam o apetite voraz pelo saber. Essa seria, na minha ótica o melhor sinónimo para aquela palavra (quase) intraduzível do francês, mas que tanto significado comporta: o verdadeiro emerdeur.

Ou, num notável registo de ecletismo, um intelectual pode ser ambas as coisas.

São estes últimos, em boa verdade, os mais bem aceites e tolerados pelas claques que «abominam intelectuais» - o mais das vezes por não o serem e sentirem-se inferiorizados por via desse facto - pois estes ecléticos conseguem conjugar vernáculo, palavreado apócrifo,”bojardas” plenas de graça, tudo mesclado com uma erudição de se lhe tirar o chapéu. E como dignos representantes desta Escola de Feitores das Letras, que agradam a gregos e a troianos, temos as figuras paradigmáticas do Miguel Esteves Cardoso, do Pedro Paixão, do Ricardo Araújo, entre outros figurões – a maltinha da “massa cinzenta” – a que se quer juntar um tal Rui Zink - esse ápex da escrita que também se quer fazer passar por maluco, mas que escreve tão mal, desajeitadamente e sem graça, que, a não ser como apoderado e lacaio, não lhe vislumbro grande futuro nas letras.

Um intelectual – e tenho de forçar uma definição – é alguém que gosta com intensidade de coisas que deleitam o espírito, mais ou tanto do que os sentidos, e sente um apelo irreprimível pela auto formação de um astral criativo, pleno de curiosidades satisfeitas, que fazem do sonho um ato de permanência. E nós, que nos candidatamos a estas aparências, enriquecemo-nos deste modo: tanto com as denegações quanto com as confirmações que as nossas aquisições nos despertam. E assim se vive em sintonia com o que nos forra e nos se assemelha.

quinta-feira, 1 de junho de 2017

Corte e Cose





«Corte e Cose» é uma das muitas firmas dos franchisings que por aí abundam e integram-se no nosso quotidiano como a visão habituada de mais um nome sugestivo.

As novas formas de intervenção, emergentes dos atuais modos de fazer negócios, habituaram-nos à ideia da firma-conceito, e da força que dele se desprende, como sendo, talvez, uma das melhores formas de publicitação existentes: algo que fica a soar bem no ouvido e na mente de todos nós.

«Corte e Cose», sugere-me a ideia de uma reparação ou, pelo menos, de uma intervenção com resultados positivos – algo que carece ser intervencionado e cujo efeito final resulta num valor acrescentado, e numa melhoria evidente sobre a matéria inicial apresentada.

Escolhi este nome pela sugestão que ele provocou em mim em face ao assunto de que me proponho falar.

Mas não é sobre o franchising que quero dissertar, nem tão pouco sobre as suas técnicas e sucessos comprovados no mundo empresarial moderno. Tomei de empréstimo a firma com outros propósitos.

Pareceu-me que, distorcendo um pouco o nome, poderia obter um epíteto muito aplicável às relações que se estabelecem através da Internet – a novíssima forma de comunicação do nosso tempo, que põe em contacto estranhos que, de outro modo, e segundo todas as probabilidades, nunca teriam qualquer chance de chegar ao conhecimento mútuo.

Numa sociedade impregnada de valores que obtêm sustento na riqueza material obtida, na ostentação e nas relações de subordinação - onde, preferencialmente, devemos ser o subordinador e não o subordinado – no seio da pirâmide social, o tempo para os afetos é risível e tem uma margem escassa para existir.

Longe vão os tempos em que a sociabilidade era coisa fácil, as pessoas travavam conhecimento por força das circunstâncias, numa forma de viver comezinha e doce, que, em leveza, nos guiava e nos fazia felizes.


Hoje, nesta era de ferocidade e heroísmo ao contrário – «tempus fugit» – «perder tempo» com relacionamentos que não tenham por fim, ainda que mediato, um proveito qualquer a nível ascensional-material, é, na mente de muita gente, um empreendimento de todo impensável. Alguns, certamente por infelicidade de expressão, chamam a isto «adaptação».

[Talvez seja eu quem esteja desadaptado, e que nunca tenha conseguido moldar-me com firmeza a esta fabriqueta de viver, dentro da qual me resta existir, e pouco ou nada possa mudar a não ser escrever, até que a impaciência resultante deste estado de coisas me tolde a mente por completo e ganhe o sibilar do meu silêncio.]

O novo meio de comunicação possibilitou aquilo que a voragem dos tempos modernos consumiu: a reaproximação entre as pessoas, o recuperar dos diálogos, a permuta de afetos, a preocupação com as trivialidades do quotidiano dos outros, a exposição das alegrias e das tristezas; enfim, o modo relacional normal entre seres humanos, embutido dos ingredientes de que se lhes reconhece a marca. Tudo isto se as relações entre as pessoas saírem da luminosidade branca do ecrã e se consumarem presencialmente.

Virá o dia em que alguém – se é que já não o tenha feito – escreverá com profundidade sobre este assunto, de uma forma relacional, cientifica, sistemática e desapaixonada, pois restam-me poucas dúvidas que a Internet, se bem utilizada, é o potencial de comunicação mais fabuloso que alguma vez o homem logrou conceber.

A técnica, infelizmente, não molda o comportamento humano, nem possui a magia suficiente para o transformar em algo diferente.

«Corte e Cose», o nome do conhecido franchising, que batiza muitas lojas de arranjos rápidos em superfícies comerciais, aplicado às relações humanas que se formam no universo «on line», sofre uma alteração inevitável. Melhor será chamar-lhe «Cose e Rasga».

São conhecimentos que se travam de modo fortuito, aleatório, e que crescem à velocidade da curiosidade e da empatia que floresce, mas que, o mais das vezes, estão condenados à duração do curso cintilante de uma estrela cadente no astral infinito de uma noite de Verão. E estes lampejos de contato, que alimentam os passatempos de gente fútil e néscia, escondida por detrás das máscaras da cobardia e do anonimato, causam-me um desgosto profundo.

Talvez eu exista forrado de uma ingenuidade de filigrana, muito próxima do infantilismo, mas ainda prezo os relacionamentos que escolho para alicerçar, e deposito neles a esperança e a vontade de fazê-los crescer como fonte geradora de felicidade, aprendizagem e crescimento pessoal.

Exasperam-me os modernos partidários do «Cose e Rasga», que utilizam a «comunicação netiana» à laia de passatempo ligeiro, para preenchimento do vácuo crónico da sua sórdida existência.

Apelo ao fim deste ciclo infernal, este fogo-fátuo de afetos, que consiste no fingimento consciente do encetar de relações que, à partida, sabe-se que durarão até à quebra do encanto e da novidade, e dissolvem-se fáceis, como um bocejo, na hora da despedida.

Já nos bastam a desumanização trazida pelo nosso quotidiano grupal, e não vale a pena cair no ciclo infernal que é iniciar uma construção com materiais sem consistência e, passados alguns momentos, longe que vai a novidade, fazê-la ruir e repetir o procedimento numa voragem próxima da insanidade.

É este hoje o meu desabafo, trazido pelo desalento: «Corta e Cose», de preferência com reforço nas costuras, pois que as relações de amizade valem oiro!

(escrito algures em 2006)

O amor verdadeiro




As ilusões são talvez tão inumeráveis como as relações dos os homens entre si, ou dos homens com as coisas. E quando a ilusão desaparece, quer dizer, quando nós vemos o ser ou o facto tal como ele existe fora de nós, experimentamos um sentimento bizarro, complicado em metade pelas saudades do «fantasma» desaparecido, em metade pela surpresa agradável ante o novo, ante os factos reais e a reposição da clareza e da verdade, muitas vezes só depois de desnudarmos o véu das irrealidades que nos impossibilitavam de ver com clareza.

Se existe um fenómeno evidente, trivial, sempre idêntico e de tal natureza que a respeito dele é impossível estarmos enganados, é o amor maternal. É tão impossível imaginar uma mãe destituída de amor maternal como a luz sem calor, como um sol frio, que não seja no sentido da antítese poética.

Ainda há pouco fui comprar um jornal, eu que faz tanto tempo não comprava jornais. Apanhava-os ali, acolá, espalhados pelas mesas dos cafés e dessa forma me abeirava das notícias. Sentei-me num banco de jardim sentindo na face a brisa suave da manhã e deleitei os olhos a observar a doçura com que uma mãe brincava com os seus filhos; os beijos e as ternurazitas que lhes dava, o brilho que se escapulia dos seus olhos, a incondicionalidade daquele amor ali à minha frente. À nossa volta doidejavam pássaros e as corolas das flores pareciam cálices que exalavam explosões de odores e cores e tudo aquilo me pareceu fazer sentido como se fora um «ensemble» musical reunindo os ingredientes da beleza nas proporções certas.

Recordei que, em tempos, conheci alguém que, na minha licenciosa fantasia, enchia a atmosfera que me circundava de ideais, cujos olhos espalhavam o anseio da grandeza, da beleza, da glória, e de tudo o que me fazia acreditar na imortalidade desse amor. Mas essa pessoa não era quem eu julgava ser: era uma vez mais um fruto das partidas de Delfos das minhas perenes ilusões, algo que eu fantasiara, ou desejara que fosse real.

Hoje dia primaveril lindíssimo, cobertos os pensamentos acerca dela com os mantos da certeza, da realidade, e da consciência aguda da verdade, sinto-me mais conforme comigo mesmo e guardo-me para o dia em que apareça vinda dos meus turvados sonhos, envolta em tules odoríferos, a princesa que se assemelhe em tudo um pouco à minha ilusão.

O tempo e o amor marcaram-me com as suas garras e ensinaram-me cruelmente o que cada minuto e cada beijo nos roubam em juventude e em frescura. E estou tão certo, como esta manhã soalheira, em que o ar treme ao tocar na água do lago, de que algures, num cantinho escondido, por entre os áureos véus das nuvens, num país distante, numa terra sagrada, aqui perto de mim, ou nalgum lugar naufragado nas brumas do meu desejo, dormita a musa que se assemelha na verdade à felicidade engendrada pela minha ilusão.

Estas linhas, escritas no conforto da minha sala forrada de silêncios, são uma forma de me refugiar da tarde e procurar trazer à tona algumas palavras, sem outro fito que não seja o de manifestar a insurreição do meu olhar perante estas coisas que, por muito que se afastem, regressam sempre ao burel da minha escrita, escrita que é um pouco o cinzel com que esculpo a minha vida.