quinta-feira, 29 de março de 2012

A apologia do Mototurismo

Honda Pan European ST 1100 em "ambiente hostil" - Fonte: Internet
O moto-turista é no geral uma pessoa de espírito aberto, aventureiro e adaptável a todas as situações. Entre o viajante solitário ou aqueles que viajam em grupo, o objetivo é sempre percorrer quilómetros para conhecer profundamente todos os lugares e gentes por onde passamos. Atualmente existem no mercado várias marcas e modelos de motociclos denominadas de "Grandes Turísticas", que tornam possível cada vez mais e melhores viagens, permitindo percorrer grandes distâncias com conforto. Seja qual for o modelo ou marca tenhamos, viajar de mota é sem dúvida uma experiência única e inesquecível, que nos leva por caminhos que de outra forma nunca os conheceríamos. A grande vantagem de viajar de moto em comparação com um automóvel, é que de carro podemos apreciar a paisagem, mas de mota sentimo-nos como fazendo parte dela. Por isso, pelo menos uma vez na vida, qualquer um de nós devia experimentar fazer uma viagem de mota, nem que fosse pequena. Mas eu, claro, sou demasiado suspeito para falar destas coisas.

"O Plano de Exterminío" - Foi o frio

Fonte: Internet
"Está a correr muito bem. 3000 idosos mortos em 5 dias...é obra que se veja, 3000 idosos x 350€ (ou menos) de pensões poupa-se 1.050.000€...nada mau. Foi o frio. Não tem nada a ver com os baixos rendimentos destes idosos, nada a ver com o custos da energia com a qual se deveriam aquecer, nada a ver com a crescente inacessibilidade aos cuidados médicos, nada a ver com o alto custo dos medicamentos. Foi o frio. Matam-se 10 manhosos nas estradas por via de manobras perigosas e excessos de velocidade, saem as televisões em direto e os jornais em diferido a dar conta de tamanha catástrofe. Legisla-se a favor dos vendedores de pneus, aumentam-se as coimas, investe-se em viaturas e radares para as polícias. Morrem 3000 portugueses vítimas das condições terceiro-mundistas em que viviam, abusados por garotagem sem escrúpulos que os roubou de tudo o que tinham... e nem um pio.  
Foi o frio..."*

* Recebido por e-mail, de autoria desconhecida.


quarta-feira, 28 de março de 2012

Espelho meu


A partir de uma certa idade, parece que o processo que dita o nosso envelhecimento multiplica-se de forma geométrica; e, em cada dia que passa, quando nos olhamos no espelho, achamo-nos mais envelhecidos. Dando por adquirida a verdade de que a fonte da eterna juventude nunca passou de uma efabulação literária, temos de aceitar que o encarquilhar da face, o branquear dos cabelos, a proeminência do ventre e a perda gradual da energia, são realidades com as quais temos de lidar; e, sobretudo, encará-las como fazendo parte de um processo gradual ao qual nenhum de nós consegue escapar.

Dizem, talvez para amortecer o desânimo que nos toca, que envelhecer tem os seus encantos e que os ganhos de maturidade e experiência de vida, de certo modo, contrabalançam o que se perde em  vivacidade. O ideal seria, sim, conservarmos a juventude e a experiência, entretanto adquirida. É por isso que existem os ginásios, que se têm multiplicado como cogumelos, muito frequentados por cinquentões e cinquentonas, obstinados em não aceitar as sequelas naturais causadas pelo processo de envelhecimento.

Nada tenho contra os ginastas cinquentenários e saúdo todas as práticas em prol da saúde. Que isso fique bem claro. Acho, sim, patética, a atitude de certos figurões e figuronas, alguns bem conhecidos na nossa praça, que se pintalgam de loiro platinado, colocam perucas e capachinhos, fazem enxertos capilares, usam jeans rasgados e, acima de tudo, adoram serem edulcorados pela magia do photoshop. São pessoas que renegam infantilmente a idade que têm e nem se apercebem o quão ridículas ficam ao fazê-lo. Há várias formas de encararmos a chegada da “idade da razão”, umas mais positivas do que outras, mas ficamos quase todos com uma tremenda necessidade de nos sentirmos seguros.

A perda da beleza é, mais do que nos homens, o maior pavor das mulheres. E o que é belo, como todos os conceitos difíceis, está muitas vezes para lá do que se vê. Há quem ache que o belo tem um caráter essencial que se presume, tão indefetivelmente como tudo o que é importante, e que, por isso mesmo, diz muito mais sobre aquele que contempla do que sobre o objeto de admiração. Daí a afirmação de que a beleza está nos olhos daquele que ama. Se for assim, quer dizer, se a beleza for o sintoma de uma rendição afetiva, então entramos num outro registo valorativo em que o sensorial manda.

Mas para lá da subjetivação do que seja ou não belo, existe certamente um conceito objetivo do que seja a beleza e a fealdade; ou seja: ninguém pode, sem usar de má fé, dizer que determinada atriz, eleita popularmente como uma sex simbol, é objetivamente feia. E é no retorno da (nossa) imagem, que o espelho nos dá todos os dias pela manhã, que reside o grosso de todos os nossos pavores: “espelho meu, há alguém  mais feio do que eu?”


"Coaching" - The ultimate brain wash for public service

As ações de formação a que tenho assistido, para além de serem uma forma expedita de darem a ganhar mais uns patacos em ajudas de custo, entre outras alcavalas, aos formadores, pouco ou nada formam. São antes longos bocejos de caráter obrigatório, em forma de visitas guiadas a tópicos, com apresentação de power points cheios de setinhas e bonecada. Mas como a maioria das americanices tende a ser adoptada pelos restantes países que se arrogam de pertencer à "vanguarda da civilização", a palavra de ordem das nossas estruturas organizacionais, onde a função pública  moderna se pretende incluir,  é a adopção plena  dos últimos gritos yankee em métodos de gestão de recursos humanos. E é aqui que entra o Coaching.

O Coaching, que numa tradução mais ou menos livre quer dizer "treinamento", é um processo de ajuda que, supostamente, pretende promover o desenvolvimento das pessoas através do auto-conhecimento, conceitos, valores positivos e motivadores, em direcção a objetivos pré-estabelecidos. Assume-se como  uma filosofia baseada nas capacidades, transformações e desenvolvimento na comunicação, liderança e postura, como processos contínuos e de ações por excelência. A lógica do Coaching tende a ser privilegiada nas organizações e nas performances, pois trabalha com metas e obtenção de resultados positivos, permitindo o crescimento, mais valias, satisfação pessoal e individual, bem como de grupo, e organizacional. Segundo os seus cultores, este tipo de formação está voltada para quem quer desenvolver-se e auto conhecer-se em relação ao seu estilo e aos potenciais recursos, que ainda não conhece ou não fortaleceu.

A grande mestre em Coaching, vox populis, é uma tal Dr.ª Vânia Weissberg, de nome vagamente abrasileirado e com  reminiscências judaicas, que exibe um currículo impressionante onde se incluem valências e títulos que, julgo eu, nunca ninguém ouviu falar. Se não, veja-se: Trainer de Coaching e Programação Neurolinguística; (um título pomposo e misterioso...); Psicóloga e Coach (psicóloga e treinadora?); Master Coach pela ICI (se fosse UCI, ainda se poderia dar por adquirido que tivesse obtido um Mestrado numa Unidade de Cuidados Intensivos); Master em Programação Neurolinguística com Certificação Internacional ( alguém me diz o que isto significa?!).

A Doutora Vânia, qual pavona emplumada, exibe um tal historial de aptidões, que é capaz de esmagar qualquer iniciático formando. Não sei se a terei alguma vez pela frente, mas, se assim for, espero que ela me consiga incutir capacidades técnicas, capazes de melhorar as minhas performances profissionais, ou, porque não, pessoais, organizando o desalinho de alguns dos meus pensamentos - que, na sua  grande maioria, prendem-se com uma ideação excessiva com a contagem do tempo de serviço para a  aposentação e eventuais penalizações por antecipação da idade da reforma.

Por este andar, há-de chegar o tempo em que nós, serviçais do Estado, teremos de  marrar livros de auto-ajuda, para não falar da repescagem do velho "Método Silva", aquele bruxo do mind control, como livro de cabeceira obrigatório. Vade retro formações!


Gandhi

Fonte: Internet

Numa certa ocasião perguntaram a Mahatma Gandhi quais eram os factores que destruíam o ser humano e ele terá respondido assim: 

"A Política sem Princípios; o Prazer sem Responsabilidade; a Riqueza sem Trabalho; a Sabedoria sem Caráter; os Negócios sem Moral; a Ciência sem Humanidade e a Oração sem Caridade. A vida tem-me ensinado que as pessoas são amáveis, se eu for amável; que as pessoas são tristes, se eu estiver triste; que todos me querem bem, se eu quiser o bem deles; que todos são maus, se eu os odiar; que há rostos sorridentes, se eu lhes sorrir; que há rostos amargurados, se eu estiver amargurado; que o mundo é feliz, se eu for feliz; que as pessoas têm nojo, se eu sentir nojo; que as pessoas são gratas, se eu tiver gratidão. A vida é como um espelho: Se sorrio, o espelho devolve-me o sorriso. A atitude que tomo na vida, é a mesma que a vida tomará ante mim." *


* É mais fácil dizer do que concretizar. Existem as palavras e os atos e a distância entre eles é muitas vezes considerável. Não deixa, porém, de ser pedagógico, (re)ler as palavras, consequentes com as suas atitudes, de uma das personagens mais fabulosas do século XX. Gandhy protagonizou a verdadeira "revolução de veludo", a resistência pacifica ao opressor e provou que, afinal, o Bem pode vencer o Mal. Basta tão-somente querermos. E o querer é quase tudo.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Sobre a violência doméstica



A violência doméstica é um problema universal que atinge milhares de pessoas, mas é muitas vezes silenciada e dissimulada, seja por vergonha ou simples medo, sem que ninguém, para além do agressor e da vítima, dela tenham conhecimento direto. Quantas vezes não escutamos gritos, choros e discussões violentas, vindas de apartamentos contíguos ao nosso, e pura e simplesmente nada fazemos? "Entre o marido e a mulher ninguém mete a colher", reza o ditado. Pretende-se perpetuar em absoluto o princípio da não ingerência em tudo o que respeite ao relacionamento de um casal. Esta é a regra de oiro que todos um dia intuímos e repetimos até à exaustão. Mas, não raro, os conviventes desavindos, no dia seguinte às agressões, passeiam de mãos dadas na rua ou no shopping, e sorriem um para o outro, para todos, como se nada tivesse acontecido. E quem arrisca meter-se onde não é chamado? Quem quer passar pela situação humilhante de ser convidado a meter-se nos seus assuntos, na sua própria vida? Quem quer fomentar  laços de inimizade com vizinhos com quem tem de lidar no dia-a-dia, mais não seja através de um lacónico "bom dia!", lançado no átrio das escadas, ou na garagem, e exponenciar a escalada  dos mimos e das trocas de galhardetes, comuns em quaisquer reuniões de condomínio?

Hoje, felizmente, graças à vulgarização de associações especialmente vocacionadas para lidarem com este tipo de problemas, é cada vez maior o número de vítimas que apresentam queixa por agressões em ambiente doméstico. Ainda existe um preconceito generalizado no que ao tema concerne e o agudizar da crise económica, com o flagelo do desemprego a subir em flecha, tem vindo a fazer aumentar os casos de alcoolismo e consequente violência no seio familiar. Cada vez são mais os conviventes numa relação conjugal que, face à situação de desemprego de um deles, passam a depender economicamente do outro; e são também em maior número as uniões que ainda subsistem por mera conveniência, seja devido a compromissos e dividas comuns, ou pela impossibilidade absoluta de um deles se conseguir libertar. Muitas vezes, ele ou ela, não tem para onde ir, não quer largar os filhos, a casa, ou não tem força para romper. E o problema não se confina a um universo sócio-cultural específico. Já ninguém consegue afirmar com seriedade que só os trolhas e os brutamontes, sem instrução e cultura, gente deserdada das regras da "boa educação" e, para mais, pobre, bate nas suas mulheres. Infelizmente, são bem conhecidas  histórias de Sr.(s) Dr.(s) importante (s), músicos famosos, empresários e gente do mundo das artes e da cultura, que espancavam as suas companheiras. Há uns anos atrás, falou-se do Tallon, do Pinto da Costa, do Artur Albarran, do namorado da Margarida Marante, entre outros crápulas, agora do Paco Bandeira, mas crê-se que as histórias conhecidas são a ponta do icebergue.

Desde muito novo, interiorizei que numa mulher nem com uma flor se bate. E espero que a divina providência sempre me guarde de ter um dia uma atitude diversa. Más disposições, todos as temos; dias menos bons, também. Mas para  tudo existem limites. Limites que jamais devem ser ultrapassados. Não se entendem, separem-se! Mas que raio, bater é que não vale!

sexta-feira, 23 de março de 2012

O princípio do Eu




É um lugar comum dizermos constantemente que todas as pessoas nos decepcionam e não são poucas as vezes que caimos na brejeirisse dessa terrível generalização. Há pessoas que nos decepcionam, outras que nos surpreendem pela positiva e outras, ainda, que confirmam tudo quanto já pensávamos delas. Dizem que os amigos são para as ocasiões e eu diria que cada vez menos sei quais são as ocasiões em que se deve apelar aos amigos e quais os amigos que se prestam e têm disponibilidade para nos acudir em dadas situações. As amizades, com excepção daquelas mais antigas, que nos vêm da infância e nos acompanham ao longo da vida, acontecem-nos por zonas de interesse e ocupação, por empatias, por circunstancialismos, muitas vezes fruto dos acasos que nos surgem nos trilhos da vida. Tendemos a sentir empatia por pessoas que, julgamos, sentem o nosso pulsar, compreendem o nosso estilo de vida, as nossas percepções, possuem gostos semelhantes e objetivos que nos merecem sentido. Por vezes, até os amigos vão sendo mais conjunturais, mais fruto das circunstâncias e das necessidades práticas de alianças, consequência de tumultos comuns que fazem com que duas vidas se cruzem no amparo de uma amizade recíproca. Quando a nossa vida dá para o torto, quando os empregos falham, quando a solidão nos bate à porta, quando os divórcios ou o fim das relações amorosas acontecem e tudo se baralha dentro de nós, temos saudades dos amigos de outros tempos. É aí que escolhemos criteriosamente com quem podemos contar, de que modo e com que limites precisos e descobrimos que nem todos os amigos são para todas as ocasiões. Sem dúvida que é bom fazer amigos e faz algum tempo que não concebo novos amigos. Talvez isso seja para mim cada vez mais complicado, ou porque não tenho tempo, ou simplesmente porque não tenho vontade. Mas cada vez mais me convenço que o dia-a-dia deve forrar-se de um contínuo de pequenos acontecimentos: coisas que por vezes parecem não ter importância ou impacto, mas que vão dando cor e sentido ao fluir da nossa vida e me fazem adivinhar que ainda há afetos a precisar de partilha, pessoas que «gostam de gostar de pessoas» e que esse é, talvez, o maior desiderato da vida. Não sou constitutivamente uma pessoa sociável lato sensu, embora não me considere um ermitão, incapaz de socializar e estar em grupo. Digamos que o (meu) tempo livre é uma preciosidade rara, uma demasia que não pode ser desperdiçada com quem  eu não partilhe afetos, interesses, empatias. E, curiosamente, são as atividades passíveis de serem degustadas a solo, como a escrita, a leitura, a música, as que sempre me proporcionaram maiores prazeres. Contra estes factos, restam poucos argumentos possíveis.


quinta-feira, 22 de março de 2012

Amigos da Caneta

Houve um período da minha vida, andaria eu pelos meus catorze ou quinze anos, em que escrevia muitas cartas. Eram sobretudo cartas escritas em língua inglesa, feitas de frases simples e standartizadas. Há muitos anos atrás, muito antes da Internet ser inventada, ou sequer sonhada, existia uma organização internacional chamada "Pen Friends" que oferecia aos seus aderentes a possibilidade de se corresponderem com pessoas de todo o mundo. Creio que ainda hoje, algures lá em casa, numa caixa de sapatos, dentro de uma gaveta, terei guardada a maioria da correspondência que à época troquei com jovens de todos os cantos do mundo. Satisfaziamos as mesmas curiosidades que hoje os novos meios de comunicação nos possibilitam, com a diferença que na altura ansiávamos pela chegada do correio que trazia as almejadas cartas, em envelopes "air mail", vindas dos lugares mais díspares do planeta. Recordo que, para além de ter mantido correspondência com Pen Friends da Europa, também me correspondi com gente do Brasil, da Coreia do Sul, do Japão e do Chile. Trocávamos postais, fotos e, por vezes, "juras de amor" - soube de casos esporádicos de jovens que chegaram inclusive a conhecer-se presencialmente - tudo dentro do enquadramento caracteristíco do florescimento da adolescência. Nunca conheci em carne e osso nenhuma dessas pessoas, apesar das "juras" que por vezes se faziam e dos "apaixonamentos" long distance. A Internet com as suas salas de chat, os blogues e todas as novíssimas formas de comunicação de que actualmente dispomos, plantará um esgar de sorriso na face dos mais novos - se porventura lerem este texto -, gente que não viveu estas realidades dos anos setenta do século passado. Mas uma coisa é certa: não há nada nos dias de hoje, por maior sofisticação que possua, capaz de substituir a alegria de abrir a caixa do correio e vislumbrar uma carta vinda do outro lado do mundo. Uma carta especialmente endereçada a nós.

(escrito em meados do ano 2007)

Dia da Poesia


Ontem foi um dia dedicado à Poesia. Há tempos atrás, quando (ainda) poetava com alguma regularidade, não deixaria passar em branco esta comemoração. Deixo pois aqui, de Luís Miguel Nava, um poema das minhas  preferências, que dedico ao Dia Mundial da Poesia.


Este garoto é fácil compará-lo a um campo de relâmpagos
encarcerando um touro. Através da nudez vêem-se os
astros.
É onde o poema interioriza
a sua própria hipérbole, a paisagem.

Movem-se os tigres como câmaras na areia, prontos eles
também a deflagrarem. A manhã
espanca a praia, é impossível descrevê-la sem falar
dos fios deste poema
que a cosem com a paisagem.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Que eu (não) deambule - pelas ruas de Leiria


Na rua estava um frio glaciar. Ainda agora passara junto ao decadente Café Colonial, na Rua da Arquivo, e, contra tudo o que é costume, entrei. Trata-se de um pequeno café de bairro, velho ícone da cidade, uma reminiscência dos idos anos cinquenta, frequentado por clientes useiros, sobretudo homens.  Constatei que quase todos tinham os olhos pregados no televisor para assistir a uma partida de futebol e a vozearia era tão grande que mal conseguia fazer-me ouvir junto da empregada do balcão. Lá dentro, um fumo pesado e plúmbeo empestava o ar e provocava náuseas. De súbito, uma das equipas em campo marcou golo. O clima do estádio transbordou do televisor e veio derramar-se sobre as mesas. Os presentes, como se um reflexo condicionado se tivesse apossado deles, levantaram-se todos, enquanto ecos das explosões de alegria se soltavam no espaço  incaracteristíco do pequeno café. Um homem de semblante rude e barba de vários dias, transpirava de entusiasmo e também dos "finos", a julgar pela meia dúzia de copos vazios sobre a mesa que repartia com dois amigos. Puxou do isqueiro para acender mais um cigarro e encomendou uma rodada final para festejar a goleada recente. Nessa altura os meus olhos já lacrimejavam de dor.

Fiz um esforço para não inalar o ar rarefeito e cianidríco, paguei a embalagem de "Trident Fruit" e saí. Na rua esperava-me o mesmo frio insuportável que parecia querer entranhar-se nos ossos. Antes de me dirigir ao Mercado de Sant'Ana para jantar, detive-me numa igreja. Lá dentro as luzes bruxuleantes das velas desenhavam sombras grotescas nas paredes altas e um  cheiro intenso a incenso impregnava o ar. O contraste da sucessão de ambientes resultava fantástico. Apesar de agnóstico, nunca havia perdido o hábito de entrar em igrejas. Tudo tinha vindo paulatinamente a mudar na minha vida e o profano conquistava espaços que há muito a educação religiosa havia ocupado - mais por imposição familiar e enquadramento social do que pelo rigor de um convencimento assumido. No entanto, sentia que ainda conservava viva a matriz íntima da minha formação católica; isso não se perde facilmente. E sempre que entrava em templos, fazia-o à procura dos silêncios, do repouso e da sensibilidade que me proporcionavam a visão das talhas douradas, das madeiras ancestrais e dos cheiros a mofo e a incenso. Adorava o misticismo do lugar. Nunca possuira profundos conhecimentos de História de Arte, nem me considerava apto a discorrer sobre qualquer tipo de arte, no entanto admirava a talha barroca, sobretudo os trabalhos em folha de ouro e a cor e os reflexos da nobreza do metal, envelhecido e deteriorado pelo tempo.

Finalmente jantei. Uma refeição tudo menos ligeira para o adiantado da hora: sopa de nabiças seguida de uma omelete gigante recheada de camarões. Com o estômago tão cheio, receava que tão cedo não conseguisse deitar-me. Tinha vontade que Morfeu me visitasse e beijasse sem deixar marcas. Nessa noite queria ter sonhos de ouro como há muito não tinha, fortes e capazes de escorraçar os fantasmas das preocupações da vida e enfunar as velas da memória das coisas mais belas com que se pudesse sonhar. Cada vez mais me convencia de que tudo acontecia dentro da minha cabeça e o segredo estava no correcto manejo dos "botões". Talvez eu há muito andasse carecido de uma "afinação", por testemunhar em demasia "diálogos de silêncios" - monólogos?! - fiel depositário do registo de factos a que, no geral, os outros não davam demasiada importância.

Nessa noite, já não me importava, sequer, resignar-me à sorte que cismava em me quer traçar um destino menos benéfico. Sabia que, quando o momento  chegasse, partiria sem gritos; e até com isso seria condescendente. Tivesse eu ainda tempo para poder olhar os sitíos, interpretar a dimensão da luz, sentir o amor, sentir-me, e ensaiar poéticas possíveis para expatriar alguns dos meus pensamentos.

(escrito em Leiria, no ano de 2007, numa solitária noite de inverno)

terça-feira, 20 de março de 2012

Solitude



Uma das perturbantes circunstâncias das metrópoles e do nosso quotidiano é a solidão, que parece descer sobre as vidas de muitos de nós: os sem família, ou apartados dela, ou que viram as sua uniões afetivas um dia desfeitas;  nuns casos, ambas as coisas. A voracidade dos dias, o trânsito caótico, o trabalho desgastante, que nos consome recursos em demasia; o corre-corre de um lado para o outro, as discotecas com filas à porta e as noites a acabarem ao meio-dia; os relacionamentos fugazes, as seduções que, terminadas, reencontram o eterno vazio de que se forraram; parece que tudo isto amplia o sentido de isolamento, ao invés de conceder a esperável esperança de companhia e agradabilidade. São demasiados os que se queixam de um enorme sentimento de estarem sozinhos no meio da multidão e afirmam que é difícil encontrar alguém disponível para uma conversa amena; do quão complicado é chegar à fala com pessoas interessantes e da quase impossibilidade de desenvolver relações fortes com conhecimentos recentes. Mas a maior parte das vezes, por mais que façamos de conta que os motivos são outros, e são dos outros, basta olhar à nossa volta para ver com atenção o muro de isolamento e ostracismo que construímos no que às relações sociais respeita. E às vezes são anos e anos de deliberados distanciamentos ou de focagens excessivas, quando não obsessivas, não permitindo que alguém partilhe o bunker do relacionamento bilateral em que nos metemos. É verdade, sim, que há pessoas mais propensas a socializarem do que outras; é verdade, sim, que muitos de nós não gostamos dos conhecimentos em multidão e da possibilidade de nos podermos gabar: "tenho uma montanha de amigos". É verdade, sim, que as necessidades de isolamento e de interação divergem consoante a personalidade de cada um, mas não podemos ficar perenemente instalados nos nossos maniqueísmos do costume, querendo respostas simples e fáceis que expliquem tudo isto de uma forma linear. A personalidade de cada  um de nós é o resultado estrutural de uma construção que durou quase metade da nossa vida, daí ser quase impossível operar mudanças radicais; e a medida do que está correto, aplicada a tudo, é a dose certa de harmonia e temperança nas decisões, e na consequente acção, salvaguardado o consenso e o conflito da nossa identificação, que desejamos seja  ímpar.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Eclipse


Foto extraída da Internet


Chama-se "Eclipse" e é tão-somente o maior e mais luxuoso iate do mundo. Foi construído no estaleiro Blohm + Voss em Hamburgo o mais recente brinquedo do multimilionário russo Ramon Abramovitch. Dono do Chelsea, o 53º na lista de bilionários da "Forbes", é oriundo da vaga de novos ricos surgidos com a  Perestroika, e,  como tantos outros, foi burilado na escola das  leis do mercado,  às quais juntou práticas, por ele bem conhecidas - endémicas nos países do leste europeu -, tais como a corrupção e o tráfico de influências.

Ramon, ao que consta, fez fortuna graças a manobras de agiotagem, extorsão, tráfico de mulheres, prostituição, armas e droga, entre outras formas menos recomendáveis de fazer fortuna. Em tempos de crise e desespero, já diz o povo: enquanto uns choram, os outros fabricam os lenços.

Num planeta repleto de miséria, doença, fome e guerra, onde (ainda) existem milhões de seres-humanos sem acesso à satisfação das necessidades primárias, constroem-se estas impúdicas opulências,  num tributo ao desnível social, permissivo de que a  lei do mais forte se eternize e seja a única norma que, ao longo dos tempos, nunca conheceu revogações. Se há imutabilidades científicas, também as há no campo social: a desigualdade o egoísmo e a injustiça, creio, sempre farão parte do glossário da natureza humana.


sexta-feira, 16 de março de 2012

Maturidade



Contra tudo o que se possa esperar, por vezes vindo de mentes iluminadas, arautos das correntes libertárias da educação, impregnadas pelas leituras de Freud, Charcot e Piaget, não acho que as crianças devam ser deixadas à rédea solta, à bolina da sua criatividade e auto-orientação. Ainda que condescenda com alguma critíca ao conservadorismo das minhas opiniões, julgo que a disciplina, as regras imperativas, o não patuar com certos caprichos das crianças e dos jovens, pode ser temperado com montanhas de afecto. E é sempre esta a receita que molda um bom carácter. A questiuncula é anosa, mas sempre actual: cada macaco no seu galho. Os pais não devem demitir-se da sua autoridade e aos filhos exige-se, sempre dentro dos limites do razoável, entenda-se, respeito e obediência, As crianças irão um dia mais tarde agradecer aos adultos o facto de estes lhes terem mostrado «quem manda», quem indica os caminhos a seguir, numa altura em que ainda possuem uma maturidade nascente. Isso fá-las sentir-se seguras, equilibradas, diminui-lhes os estados de ansiedade, e prepara-as de um modo saudável para a vida adulta. Não há capital melhor para a vida de um adulto, do que ter tido uma educação repleta de bons exemplos e pais que os encham de orgulho e sejam modelos a seguir. Cada coisa a seu tempo. Sob o guarda-chuva da maturidade, estão competências como o controlo das emoções, a segurança, a responsabilidade sobre os próprios atos e capacidade de engajar pessoas. As empresas precisam de gente preparada para lidar com cenários incertos sem vacilar. E ter maturidade é uma condição fundamental para quem pretenda evoluir de forma consistente numa carreira. Os ganhos de maturidade devem ser semelhantes aos que se verificam numa maçã que frutifica numa árvore, daí a metáfora «amadurecer» constituir a imagem perfeita para exemplificar a passagem da idade juvenil para a idade adulta. Por vezes é preciso ter ultrapassado meio século de existência para que estas verdades resultem cristalinas na nossa mente, e faz parte da condição juvenil dar pouca atenção às palavras maçadoras dos mais velhos. Julgo que sempre assim será.

(Maus) sinais dos tempos


Saiu uma notícia no Diário de Notícias referindo a influência do Facebook, não só no reencontro de velhas amizades e conhecidos, mas também na destruição de muitos casamentos e relações. Como se pode ler:

"Os advogados portugueses já recebem "provas" de infidelidade retiradas do Facebook para usar em processos de divórcio litigioso. Cerca de um terço dos processos de divórcio em Portugal já usa este tipo de provas.
Nos Estados Unidos, um estudo recente da Associação Norte-Americana de Advogados Matrimoniais indica que cerca de 20% dos divórcios naquele país tem como principal fonte de provas fotografias e mensagens publicadas no Facebook."

Parece que esta rede social se está a tornar cada vez mais num dos palcos de ação da sociedade - para o bem e para o mal.






Uma promessa



Um dia, prometo, vou sair mais cedo de casa,
e tornar aos meus recreios de criança,
à certeza de que ainda é esse o mundo dos meus olhos.
E montado na "Vilar" escarlate, de selim alado,
às primeiras aguadas da manhã,
seguirei estrada fora,
sentindo o vento acariciar-me os olhos e os cabelos; 
e tornarei ao colégio da minha infância, 
para subir até à casa da árvore, 
onde, nas tardes estivais, me deleitava a observar
o mundo a acontecer lá em baixo…

quinta-feira, 15 de março de 2012

Qual o pior inicío de um romance?


No blogue "Pó dos Livros", Aqui segue-se um interessantissímo questionário, que desaconselha alguns "maus começos" para os pretendentes a escritores que queiram  iniciar-se na arte romanesca. Acho uma excelente ideia ler, escutar e, de um modo geral, tomar em consideração as palavras sábias de quem tem a escrita por oficío. Afinal, em todas as áreas do saber, é sempre preferível aprender com os melhores. Pessoalmente, sempre me dei bem com isso. E a humildade, a par da preserverança, mais do que qualquer outra virtude, é indispensável a todos quantos almejam evoluir em qualquer valência do saber. Há muito que tomo este conselho para mim próprio e não me tenho dado nada mal.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Hélio Isidoro Cassiano Marofas





Chamo-me Hélio Isidoro Cassiano Marofas. Hélios, como na mitologia grega, o olho do mundo -  filho de Hipérion,  neto de Urano e de Gaia, irmão de Eos, a Aurora, e de Selene, a Lua. Nunca gostei do meu nome. Quando me perguntam o que faço na vida nunca sei ao certo o que responder. Sou fazedor de códigos. Tirei uma licenciatura em jurisprudência há mais de trinta anos e, passados que foram mais de vinte anos de ensino público, dediquei-me a esta tarefa inglória. Actualmente é com isto que governo a minha vida: compilo legislação, recolho leis avulsas, reúno colectâneas, plagio códigos, limito-me a oferendar-lhes um preâmbulo, cujo título começa invariavelmente pelas mesmas palavras: nota do autor. O autor não pode ser a minha pessoa, como é evidente; e é aqui que começa a desonestidade intelectual e a trama da culpabilidade que se desenrola dentro de mim. Arrogo-me autor de leis arquitectadas por juristas cujas identidades se perderam no tempo, diplomas que foram mais tarde modificados por outros; gentes que labutam no anonimato de gabinetes esconsos dos ministérios e cujos nomes nunca vêm à ribalta. Tenho a ousadia de fazer editar códigos jurídicos com o meu nome impresso na capa, como se tratassem de realizações saídas da imaginação e labor de um autor de prosas. Sirvo-me indecentemente dos meus estafados pergaminhos académicos e das influências que granjeei junto das editoras da especialidade, para juntar umas patacoadas, a título de introdução, e dar a uma colectânea legislativa o privilégio de me ter como pretenso progenitor. Os meus colegas dizem-me para não me sentir assim.  Eles defendem a ideia de que até um código carece de alguma humanidade e é um beneficio que concedo à aridez das regulas dar-lhes um nome, uma paternidade. Ganho bastante dinheiro com este mecanismo fraudulento e sei de antemão que é o meu nome que vende e não a qualidade da falácia do meu trabalho – que nem existe!  
Moro só e tenho caspa abundante no cabelo. Já fiz setenta e dois anos e não tenho mulher, filhos, nem pretendentes. Sou aquilo que se pode chamar um homem desinteressante, credenciado pela mediocridade institucional de uma escola de propagadores de doutrinas alheias. Aprendi, como todos, a arte e o engenho da reformulação, de forma a dar a entender que aquilo que escrevo é algo original e não a redundância clássica do lente universitário que precisa granjear uma escola para sobreviver como tal. Actualmente estou de férias na Patagónia, planejando mentalmente um homicídio, ou talvez isso seja só um desejo insano que nunca terá concretização. Nem sempre o corpo docente de uma Universidade se anima de boas intenções. São conhecidas as rivalidades, os extremos da maledicência, a teia de intriga em que desenvolvem e encontram-se aí exemplos de baixeza sem par, mantidos sotto voce e, felizmente, ignorados pelos discentes e pelas gentes em geral. No entanto, os casos em que se resolvem por homicídio são, quero esperá-lo, bastante raros, constituindo uma excepção. Não gostava de ficar conhecido como o professor assassino mas, por outro lado, o que tenho eu a perder?

Um colega mais novo, cheio de mestrados e doutoramentos obtidos em universidades americanas, anda a arruinar-me o negócio próspero das edições. Será que ele não se apercebe que nestas coisas há monopólios, uma primazia tácita dos mais velhos face aos que ainda não chegaram às luzes da ribalta? A vingança não é uma modalidade criminosa simples. É muito subjectiva. Fundamental na vingança é que o objecto do ódio tenha a perspicácia de dar por ela. Se cremos que nos vingámos e o outro prossegue na sua vida bonançoso, indiferente, então não nos vingámos. Isto implica um conhecimento profundo do sujeito de quem pretendemos vingar-nos. Mas o que é o nosso conhecimento do outro senão um caos de interpretações, de pressupostos, de hipóteses, de mal-entendidos, pousados eles mesmos sobre uma série de omissões, máscaras, de silêncios, de vazios? É um estranho conhecimento, uma quase ignorância. Não é o medo da retaliação que me impede de me vingar dele. É antes este aspecto contingente.

Quando regressar destas férias auscultarei a minha real vontade. Para já, faltam quinze minutos para a meia-noite e não quero perder por nada deste mundo a abertura dos Jogos Pan-Americanos. Já pedi que me trouxessem uma garrafa de rum cá acima ao quarto. O reclamo luminoso do hotel está quase a fundir-se e receio que não passe desta noite. Agradeço à divina providência por isso, pois já não suporto mais a intermitência do néon abusando do interior do meu quarto noite dentro. *



*Jorge Rebelo - Barreiro19.07.2007

Fiapos de palavras ou o spleen do amor


§ Gostava de saber chorar como tu choras. Encostada ao ombro de alguém, com um olhar de menina que não chega a ser um olhar de desculpas pelo que fez, mas um olhar de certezas e de direito por chorar. Gostava de me comportar contigo como fazes comigo. Com uma ternura austera que me prende mas nem sequer desafia. Por vezes empreendes um espírito distante que me deixa completamente impotente. Nunca serei capaz de te dizer que não, se quiseres que seja sim, nem vice-versa.

§ Às vezes rio-me do que dizes. Pareces-me ingénua e irracional e pergunto-me: por quanto tempo serei capaz ou poderei continuar a sentir-me apertado, como se toda a atmosfera me comprimisse contra mim mesmo, pela tua imagem. Olho para ti e penso que te conheço tão bem, como se existisses desde sempre comigo. Que nunca poderás ter uma reacção que eu não possa prever. Apetece-me dizer-te tudo o que sei e não sei sobre ti. Porém, só posso ter a certeza de que te conheci e que os momentos passados estão assegurados. Já tinha desejado conhecer-te. Que passasses por mim e soubesses que eu não era igual aos outros. Que existia.

§ A ideia de que te atraio e conheço é cimentada cada dia que passa. Como se fosse uma parede que lentamente se vai erguendo a cada tijolo que é posto e um dia me condicionará a vista. Temo este muro apesar de continuar a construí-lo. Sei nitidamente que sou eu quem o constrói. Sei o teu nome, vigio-te os gestos, os olhares, tudo. Quando não estás, faço suposições acerca do que dirias, do que farias. Reconheço-te a voz, o andar, o toque macio da pele, a respiração, o olhar calmo, o espírito inquieto que ninguém pode adivinhar. Pergunto-me se valerá a pena aproximar-me ainda mais desta miragem. Por vezes, imagino que nas ruas da cidade há uma pessoa perigosa escondida atrás de uma esquina para me fazer mal. É assim que te imagino. És tu a pessoa perigosa.   

§ Hoje, peço à luz que me guarde e mantenha fora do alcance das sombras, pois sempre que me entrego às memórias das nossas imagens juntos, a minha pulsação abranda. Já quase não escuto o bater do coração. Talvez que um dia tudo se desmorone, mas se eu for capaz de continuar a contemplar a beleza não sucumbirei, pois ela é a única justificação irrefutável do ser. Gostaria de acelerar o decorrer do tempo, mas consigo apenas eternizar o presente. Evado-me de tudo o que este me mostra, desinteresso-me. E o presente, vazio de qualquer encanto, parece-me aborrecido. O verdadeiro amor exige intrinsecamente situar-se numa dimensão que ultrapassa os limites do tempo. E amar não é mais do que a expressão desse desejo de eternidade.

§ E, sabes, ainda que o nosso espírito se desvaneça no dia da nossa morte como uma faúlha que se liberta do fogo, teremos conhecido a eternidade durante o tempo em que sentimos o amor dentro de nós. E a eternidade de que falo, consiste tão simplesmente em aproximar-me dessa luz de vida que é a inextinguível presença do amor. Do amor por ti.*



* Escrito de um fôlego e tendo por destinatária uma figura imaginária.

Dia Internacional das Damas


Hoje quero parabenizar todas as mulheres que eu conheço, que elas tenham consciência da importância deste dia e do motivo dele e que se sintam felizes por terem um dia próprio.

Hoje é o Dia Internacional da Mulher. Não há Dia Internacional do Homem. Existe, sim, o Dia Internacional da Criança, do Idoso, dos Avós, dos Animais, da Árvore, do Livro, do Teatro, entre uma série de outros dias nacionais e internacionais que, intencionalmente, deixam de fora a comemoração da existência do macho. Os criadores destas efemérides julgaram, com uma certeza que lhes provém de fontes tidas como seguras, que o homem, por ter gozado uma existência demasiado privilegiada ao longo da História, não carece de ser enaltecido. A única ocasião em que se engalana a existência do macho é quando ele é pai. Somente os varonis que, pelo menos uma vez na vida, cometeram a proeza de procriar, são dignos de terem um dia inteiramente dedicado a si. Os outros são vistos como meros peões, sombras desfocadas das ilhargas da vida, desmerecedores de sentirem  o calor das luzes da ribalta. E esta atitude revisionista, que faz do homem eterno pagador de males que provocou, tem o efeito perverso de sedimentar a ideia de que a mulher é um ser inferior, frágil, desmerecido, que necessita de ter um dia inteiramente dedicado a si, por forma a ver as suas pretensas qualidades reconhecidas por todos. Se a mulher foi tratada ao longo da História como um ser diminuto, sempre subjugada à vontade do homem e com direitos cortados, hoje em dia, felizmente, nas sociedades ditas "civilizadas", já não é assim. No mundo ocidental a maioria dos quadros superiores são mulheres e a percentagem de universitárias, a julgar pelas estatísticas, é manifestamente superior à dos universitários. Sem desvalorizar a comemoração do Dia da Mulher - os seres mais importantes da minha vida sempre pertenceram ao género feminino -, julgo que seria mais acertado celebrar um Dia da Humanidade, onde coubessem homens e mulheres, e parar com as ideias estapafúrdias de quotas obrigatórias em lugares nos parlamentos, ou comemorações exclusivistas e sexistas, que só reavivam uma "guerra de sexos" a todos os títulos indesejável. Afinal a mulher, graças à sua ars inveniendi, sempre levou a água ao seu moinho e o ao homem  coube o papel do eterno bobo que não sabe que o é.

quarta-feira, 7 de março de 2012

Da importância dos nomes que damos às coisas

Li algures que no século XIX, não raro, da leitura de alguns títulos de escritos em prosa ou em poesia, podia-se depreender todo o conteúdo - e muitas vezes a restante leitura mais não era do que um exercicío de desalento, sem surpresas assinaláveis. Em boa verdade, nunca me tinha apercebido verdadeiramente do quão ridículo era o epíteto com que eu havia batizado este blogue - "Picarenta Escrevente" - até ao momento em que decidi tornar a este espaço há muito abandonado. Sinto-me um pouco como o filho pródigo das paisagens da Biblía, que torna à casa paterna, com uma nuance que faz toda a diferença: sempre soube que regressaria. Voltei, sim, e, por minha vontade, para ficar. Estou de regresso das guerras púnicas do facilitismo, da fogueira de vaidades que é o Facebook, da escrita mecânica, singela, sem maturação ou verve, mas que possibilita a interação à la minute. Deixei-me preguiçar. Afinal é tão mais fácil escrever meia dúzia de patacoadas sonantes, ou publicar adágios, frases e escritos de outros que mereçam o nosso apreço. Dificíl é escrever, desenvolver, ligar a mente a uma torrente de palavras, que vão fiando aos poucos a explanação do nosso pensamento num curso coerente. Mas é reconfortante voltar a mim mesmo. Sentir que não careço - nunca careci - de plateias, nem do respaldamento das minhas ideias, para escrever o que me dá na real gana. Não tenho praticamente leitores. Escrevo num espaço pouquissímo divulgado, contrariamente ao Madrigal, nem me apetece publicitar a minha escrita. Sinto-me confortável na posição que a palavra aglófona melhor designa: low profile. Baixo perfil, numa tradução literal. Discreto, pouco divulgado, como um gentio que só convida para sua casa pessoas com quem deseja ter intimidade. É nesta linha que continua a escrita neste blogue. Uma Conta Corrente com a (minha) vida, que é, em muitos aspectos, assumidamente Contra a Corrente instituída e os modelos societários a que somos obrigados a aderir, sem nada poder estipular. Se pouco ou nada faço para mudar o estado das coisas, seja por impossibilidade absoluta, seja por inércia, ao menos que a escrita continue a ser para mim a melhor forma de catarse. E por esta via ainda me vou sentindo liberto; inclusive para, caso isso me agrade, dar uma maior importância aos nomes das coisas.

Retrato-me


§ Imberbe, sem chapéu na cabeça, com o cabelo mais comprido, pareço hoje, erradamente, mais novo do que ontem.

§ Metamorfoseamo-nos, recauchutamo-nos, compomo-nos, enfim, inovamos, pois queremos parecer tudo menos aquilo que nos desagrada; e todos, sem excepção, tentamos suster a roda imparável do tempo com a leveza das nossas mãos, num gesto frustre, inútil, que não dispensamos.

Pela manhã...

Esta clivagem infernal entre criaturas que vivem eternamente nas luzes da ribalta e os condenados a viver na sombra, sempre me incomodou. Visceralmente, por razões do coração, onde cabem opções politicas e morais, entre outras, sempre me insurgi contra os poderosos e me senti mais próximo daqueles que nada têm, e cuja importância é tão diminuta que grande parte da sociedade acha-se no direito de os desprezar. Esta minha forma de sentir afirma-se com clareza sempre que me deparo com pessoas deste calibre. Os meus heróis pouco ou nada têm a ver com gente que dribla bem com uma bola nos pés ou nasceu em piscinas repletas de dinheiro. No amor em fazer bem ao próximo, na cultura, nas artes em geral, na poesia e na literatura, fermentam-se os meus heróis - aqueles que, porventura, não me importava de imitar, caso tivesse a sua verve. Infelizmente, vivemos numa época de imediatismos que atribui maior valoração a capacidades imprestáveis e à posse de bens materiais. A sede insaciável do Ter, a ânsia de subjugar o próximo, a vertigem do poder, são os paradigmas que guiam o tempo que vivemos e no qual não me sinto integrado. Talvez eu seja um romântico, um idealista, um fantasioso, como já me chamaram, com um modo de sentir consentâneo com modelos sociais hoje considerados retro, mas, mesmo assim, não abdico daquilo que me constitui e integra. Não fora isso o que seria de mim?