terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Corpo de nuvem



Não sei se é do teu olhar infindo de tempo e água e sede, se do teu cabelo louro e lento e longo de sedas que ignoro, se do teu cheiro leve de pétala e mares e desejos, se do imaginário toque de tua pele no preciso instante em que quase cruzámos os dedos e os afetos e os beijos – ou, ainda mais lentamente, os olhares. Sim, acho que, pelo menos, cruzámos os olhares, não?

Confesso outra vez, confesso. Confesso que apenas sei que desespero sem saber para onde olhar, em cada vez que te lembro. Sem saber, sequer, como te lembrar. A não ser nas dores. Sim, és tão linda que dóis no olhar. Sabes?

E as palavras - de que servem hoje e amanhã e depois e seja quando for, quando não são escutadas por ninguém, nem sequer pelas falésias, também elas sempre esquecidas pelos ecos e tempestades e, tal como as palavras, secretamente sussurradas à margem de ti e de teu corpo de nuvem?

Já agora – então e os sonhos, os desejos, o imaginar-te para além, muito para além de nua, quase tu, quase sede, quase pão, quase água, quase olhar? Que farei com tudo isso?
É que és linda, sabes?

Leiria - 2007



Aula de condução



Tirei a carta numa Escola de Condução em Almada, em 1979, num Volkswagen 1300 igualzinho a este. Como eu já sabia conduzir, o instrutor, logo pela manhã, despreocupado com as lições que achava desnecessárias, parava sempre o carro junto a uma tasca, longe dos circuitos habituais de aprendizagem, e tratava de se atestar.

Dizia para eu ficar caladinho e que aquilo ficava só entre os dois. E depois fumava e cantarolava alegremente, ao mesmo tempo que lançava piropos às donzelas que seguiam pelo passeio.

Era um homem bonito, com patilhas e bigode, ar de engatatão, camisa florida, com golas tipo asa delta, tudo tão na moda no final dos anos 70.

Na época, abrir o vidro do carro e lançar palavras de charme, mesmo de teor picante, às mulheres que passavam, não só era consentido como tido por um comportamento masculino normal, viril até.

Ele deixava-me conduzir até à Costa da Caparica, para ver o mar, e eu, naturalmente, ficava muito feliz. No fundo, dávamo-nos bem e éramos cúmplices. Era a minha aula extra, que ele não consentia a mais ninguém.



quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

O sentido das coisas



Na busca filosófica do sentido das coisas, creio que tenho aprendido muito mais com quem não estou de acordo do que com aqueles em quem o consentimento é fácil de mais, apesar de não enjeitar possuir uma propensão natural para o polemismo, para a contracorrente.

Um dos grandes desafios da vida é, sem dúvida, conseguir a tal capacidade de dialogar com sensibilidades díspares, com pessoas que têm formas de ver as coisas diametralmente opostas a mim.

A aproximação fraternal dos aspetos irredutíveis do outro e, em simultâneo, o não abandono das convicções mais profundas sobre a forma como encaro o viver, é um estágio de maturidade e bondade que, confesso, ainda não consegui de todo alcançar.

Quando lá chegar, se tal algum dia acontecer, sei que serei uma pessoa bastante melhor, mas até lá terei de me contentar com a miséria da minha mais que banal imperfeição. Entretanto, limito-me a viver a vida como sou capaz.





terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Ser cusca


Curiosidade é o que move o ser humano a querer saber um pouco a mais do que ele já sabe. Somos quase todos curiosos e isso dá um enorme jeito em termos de sobrevivência. Desde pequeninos usamos o que isso tem de inato para conhecermos melhor o mundo que nos rodeia, para aprendermos os sinais de perigo e os de gratificação e também para chamarmos a atenção das pessoas e estabelecermos relações.

São sempre os mais curiosos que se interessam por mais e diferentes coisas, que exploram e levam por diante empreitadas e obras que passam ao lado dos que, permanentemente, consideram que o que acontece à sua volta não lhes diz respeito.

É bom ser curioso. Mas se uma parte substancial da nossa curiosidade nos ajuda a crescer e nos serve no sentido de sermos mais e melhor, uma outra parece supérflua e até mesquinha. Prende-se a detalhes insignificantes, toma a parte pelo todo e, a partir daí, galopa na construção de histórias improváveis e maledicentes.

É essa parte da nossa curiosidade que nos faz calar para escutar a conversa da mesa ao lado entre pessoas que nunca vimos, que nos faz abrandar, quase parar, para ver se do tal acidente resultaram vítimas mortais. Interessamo-nos, disfarçadamente, por aspetos que, juramos a pés juntos, não têm interesse nenhum.

Seremos voyeurs? Cuscas? Criaturas infelizes com vidas demasiado triviais para nos comportarmos desta forma horrenda? Frequentemente polarizamos a vida e os acontecimentos em duas categorias simplistas e reducionistas: de um lado os contentinhos bem cheirosos a quem só acontecem coisas boas e, do outro, os desgraçados da sorte enredados em tragédias e cenas tristes. O que é certo é nunca nos contentamos com as partes triviais e desapaixonadas das informações que nos chegam às mãos. Precisamos sempre de apimentar a verdade com algo fascinante e indecoroso; e fazemo-lo, dizemos nós, por mera curiosidade.




terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Simplício Bocejou



A luz da tarde morre nos telhados dos prédios fronteiriços, engalanados por dezenas de antenas, que fazem vagamente lembrar os ramos de alguns quadros de Miró. Ao fundo, o Tejo, mulher vaidosa, veste-se com um rasto de luz doirada que quase toca a outra margem. Na Ponte 25 de Abril, silhuetas negras, pontos minúsculos, movem-se em direções opostas numa constância de relógio de pêndulo. No estuário do rio, são várias as embarcações que se movem no vagar do final da tarde deixando atrás de si um rasto de espuma branca na água esverdeada.

A vista da estreita varanda é o luxo maior do meu apartamento. Trata-se de um prédio pombalino de cinco pisos, com escadas de madeira que rangem como velhas cheias de ciática, forrado de azulejos cor de esmeralda, testemunha silente de milhares de histórias. Pouco a pouco, os candeeiros públicos acendem uma luz trémula, que se mistura com os fiapos dos raios de sol, a que se juntam o chiar dos carros elétricos e o matraquear corpulento dos motores diesel dos autocarros da Carris, que sobem a custo a íngreme Calçada. Sei que não tarda é noite. Estamos no inverno.

Bocejo ao mesmo tempo que coço a cabeça. Encontro-me diante do monitor luminoso do computador e pareço hipnotizado com a luminescência do écran. Não me surgem ideias e o prazo para a entrega da crónica semanal que escrevo para o jornal regional aproxima-se do fim. Mais uma falha da minha parte e é certo que arranjam outro cronista para preencher a pequena coluna que ocupo há vários anos. O redator nunca me perdoou o facto de, por duas vezes, ter utilizado textos meus, embora adaptados, mas já publicados noutros espaços, para o preenchimento da minha crónica semanal. A única exigência que o jornal me faz é a de que disserte sobre temas atuais e controversos, se possível, sem fazer desvios acentuados à linha editorial do semanário, que é manifestamente de esquerda. A temática, de resto, é da minha lavra, bem como o curso que quiser imprimir à escrita.

A liberdade de expressão é bastante apreciada pela equipa de redação, mas Elias, o redator-chefe, nunca se esquece de me relembrar que as crónicas, além de terem de ser textos curtos, devem tratar de acontecimentos corriqueiros do quotidiano; e por estarem tão extremamente conectadas ao contexto em que são produzidas, com o passar do tempo perdem sua “validade”, ou seja, ficam fora do contexto.

Elias tem um doutoramento em Comunicação Social e é respeitado entre os jornalistas que compõem a equipa do semanário. Apesar de não ter grande verve como escritor, todos reconhecem nele metodologia e precisão e uma capacidade de liderança indiscutível. Eu próprio lhe reconheço bastante mérito nesse campo.

Nunca se é totalmente livre, cogito, e basta que haja uma qualquer relação de dependência, ainda que mínima, para que o resultado da ação não dependa inteiramente de nós. O escritor, o artista, o criador, o compositor, integram profissões onde, porventura, a liberdade é sobejamente maior do que noutros ofícios. Desagrilhoados dos horários rotineiros e escrupulosos que ocupam a maioria da população ativa, os criadores recebem uma espécie de carta de alforria que os liberta, para poderem fazer nascer algo e lhe darem forma e substância. E essa espécie de espaço vital, onde o tempo e o modo são decididos pelo criador, parecem ser condições impreteríveis para que algo possa acontecer. Mas os deadlines existem, seja nos jornais ou nas revistas. Muito para além do entendimento e respeito pela condição do criador, há negócios a decorrer e as empresas movem-se segundos os objetivos que lhes estão na origem: gerar o máximo de lucro dentro daquela esfera de atividade.

Lendo várias entrevistas com Lobo Antunes, que considero o escritor mais contracorrente de todos os que integram o panorama atual da gente que escreve e publica com sucesso, parecemos ficar com a impressão de que ele é completamente livre de redigir e publicar o que lhe dá na real gana e pouco se importa com as críticas ou com o volume de vendas dos seus livros. A sua conhecida arrogância e sentido de humor cáustico assim o indicam. Mas não é de todo verdade. Antunes é bastante sensível às críticas e sofre, mais do que por nunca ter alcançado o almejado Prémio Nobel da Literatura, pelo facto dos seus livros não terem o nível de vendas de outrora. O enfant terrible das letras portuguesas, que fazia parar o país literário cada vez que saía um livro seu, que tinha milhares de exemplares vendidos e edições esgotadas em poucos dias, desapareceu. E desengane-se quem pensa que os seus livros de crónicas se vendem melhor. Quem gosta das crónicas de António Lobo Antunes vai lê-las na revista Visão e não compra o livro. E quem sou eu, Simplício, junto à vasta sombra de Lobo Antunes?

Olho de novo para o écran do computador e reparo que a página deixada em branco - ausentara-me por breves instantes para me deleitar com a vista magnífica que desfruto da pequena varanda, da mansarda que ocupo no quinto piso - apresenta agora uma série de caracteres indecifráveis: “qwedddddddddsa btyy”. Mefistófeles, o gato persa que comigo partilha a vida e a habitação, esteve a dar marradinhas no teclado e deixou impressa a sua pegada felina.

Olho para o relógio e fico assustado. São 18h00 e antes das 21h00 a crónica tem de estar pronta e revista para ser enviada por mail. No dia seguinte, sábado, sai o jornal e a minha crónica habitual ocupa uma coluna que preenche cerca de um terço de uma das páginas centrais do semanário. Penso em temas da atualidade aos quais possa acrescentar um olhar pessoal, mas tudo me parece de uma banalidade confrangedora. O pensamento apenas me fluí para devaneios sem consistência capaz de gerar um texto.

O meu nome de baptismo, Simplício, sempre foi motivo para chacotas, mas, com o passar dos anos, que também nos faz importar cada vez menos com aquilo que possam pensar de nós, habituei-me a ele e agora até gosto. Antigamente era comum os pais colocarem nomes estranhos e complexos aos filhos, enfeitados de vários sobrenomes, pois na época isso representava poder, glamour e riqueza. Tinha sido por insistência da minha mãe que o nome Simplício me havia sido posto. A minha mãe era uma fervorosa admiradora dos filmes portugueses dos anos 40 e Simplício Costa (António Silva), mais conhecido por Costa do Castelo, um homem preguiçoso mas um grande guitarrista, era de longe o seu personagem predileto. Então a sua única criaturinha tinha de ser baptizada com o nome do seu herói cinematográfico.

Sou sexagenário, embora aparente ter menos idade. Moro numa mansarda arrendada, distante do centro da cidade e todos os dias apanho o elétrico para me dirigir à Baixa. Vivo de uma magra reforma que os anos de serviço como professor me proporcionam. A escrita, paixão antiga, levou-me um dia ao jornalismo, embora nunca tivesse tido carteira profissional. Desde muito novo, comecei a enviar textos para os jornais, para algumas revistas e editores, sempre com a esperança de um dia ver um dos meus escritos publicados. E foi assim que as coisas aconteceram. De colaborador ocasional, tornei-me cronista efetivo e ganhei um espaço próprio no semanário.

Preciso de me concentrar na crónica mas sinto-me incapaz de tal exercício. Nisto o telefone toca - um trim trim que mais parece o som da campainha de uma bicicleta pasteleira, daquelas que antigamente circulavam pelas aldeias – e interrompe os sons habituais que comigo coabitam o apartamento. Atendo o telefone mas do outro lado desligam. Não raro, fazem-me isto e parece que alguém quer propositadamente perturbar-me. Já pensei em indagar junto da operadora sobre a possibilidade de detetar a autoria dos telefonemas, mas o número nunca se encontra identificado.

Algures, num dos andares abaixo do meu, escuta-se o arrastar de móveis e, mais longínquo, o choro de birra de uma criança. Quando a imaginação falha, qualquer ruído distrai-me e funciona como uma ótima desculpa para a falta de ideias. Fico levemente irritado.

Habito já há bastantes anos o piso cimeiro, que sofreu obras recentes por parte dos proprietários. A renda é coisa simbólica e de vez em quando os proprietários escrevem-me cartas com ofertas generosas para que deixe o apartamento vago. Nunca aceitei e o destino das cartas é invariavelmente o caixote do lixo. Sinto-me incapaz de enfrentar mudanças e somente o pensamento de tal cenário me apavora. A inquilina originária era a minha última companheira, falecida há quase uma década e eu herdei a condição de arrendatário.

No rés-do-chão direito mora uma velha solitária que todos dizem estar louca há muitos anos, devido ao desgosto provocado pela morte do seu único filho, em terras angolanas, na guerra ultramarina. Ninguém sabe ao certo o seu verdadeiro nome, pois, sempre que se referem a ela, dizem: “olha, lá vai a maluca!”. É comum falar sozinha até altas horas da noite, rir e barafustar com pessoas invisíveis. A sua última loucura é atirar vasos e pedras para cima dos carros que se atrevem a estacionar debaixo das suas janelas. Na polícia, as queixas amontoam-se, mas nada acontece à velha. E ela ri, ri-se de tudo. Certo é que ninguém que a conheça se atreve a estacionar o automóvel ao alcance dos seus arremessos.

O rés-do-chão esquerdo só é habitado durante o verão. A proprietária, uma viúva herdada, cujo marido enriqueceu em terras sul-africanas, passa o inverno em Cape Town e só regressa a Lisboa para passar os meses do verão. Amante do calor, recusa enfrentar o inverno português, a chuva, o frio e os dias cinzentos. Talvez por estar habituada a residir num país extremamente violento, mandou instalar uma grade de ferro, pintada de branco, na entrada da porta do seu apartamento. Não tardaram denúncias na Câmara, porque se trata de um edifício histórico e houve alterações não autorizadas. Dizem por aí, pelo que me confidenciaram no café fronteiriço, que todos julgam ser eu o delator, só porque sabem que escrevo coisas direitinhas e fui professor. Ao que parece, a denúncia também foi escrita de uma maneira muito direitinha. Uma cartinha toda composta e detalhada que chegou à Câmara Municipal. Já cá esteve o fiscal.

No primeiro andar direito mora uma família ucraniana. A mulher trabalha a dias desde que se levanta até à noitinha, enquanto o marido, que responde a toda a gente que lhe pergunta “não tem trabalha”, beberica imperiais e taças de branco na taberna do Mirmécio. Os filhos são cinco, um deles já nascido em Portugal, e a Sevtlana desunha-se mais de dez por horas por dia nas limpezas para alimentar os filhos e as beberagens do marido. Ela tem 35 anos mas aparenta ter mais de 50. No leste europeu, não é incomum o alcoolismo fazer parte dos agregados familiares e ela parece aceitar com alguma placidez o seu destino. Vejo-a sempre bem-disposta e sorridente. Aos domingos, a família passeia junta e ela agarra-se ao marido por um braço, com uma ternura maternal e conformista. São muito barulhentos, especialmente aos sábados à noite. Convidam metade da comunidade ucraniana residente na capital, embebedam-se, dançam, riem e fazem uma algazarra por mim audível no 5º andar. A polícia já foi chamada algumas vezes – não se sabe por quem – mas, tal como a maluca, que apedreja automóveis indiscriminadamente, para além das ameaças e dos pedidos de desculpa, nada acontece.

O primeiro andar esquerdo está desabitado. Dizem que um velho que ali morava morreu e o filho, seu único herdeiro, tem a casa ao abandono desde então. A casa nunca mais foi usada ou limpa e já passaram cinco anos. De vez em quando, um cheiro nauseabundo desprende-se lá de dentro e invade as escadas. Ditoches de mau gosto que circulam no tasco do Mirmécio, atribuem o odor pestilento aos restos mortais do velho, que se calhar nunca chegou a ser enterrado. Ninguém foi ao seu funeral, nem mesmo o filho. Vivia sozinho e sozinho morreu naquela casa. Dizem, entre taças de branquinho, que o velho está há cinco anos a apodrecer na cama.

No segundo andar direito mora uma professora do ensino básico, cinquentona, feia como a noite, com uns dentes dianteiros demasiado salientes que não lhe cabem dentro da boca. Mesmo com a boca fechada, os dentes ficam a morder o lábio inferior e quando coloca baton, ficam pintados de vermelho Ferrari os dentes e os lábios. Sempre que me cruzo com ela nas escadas, assusto-me com a forma como ela me sorri: a boca escancarada e os dentes em posição de abocanhar o que esteja ao seu alcance. Evito-a, até porque não simpatizo com as mesuras com que me trata e as tentativas para entabular conversação. É solteira, divorciada, ou viúva, ninguém sabe ao certo e lá no Mirmécio também se especula que ela deve ter abocanhado todos os homens da sua vida, daí estar só.

No segundo esquerdo, mora um casal de lésbicas. São ambas quarentonas e trabalham num ministério qualquer para os lados das avenidas novas. São inquilinas pacatas e não produzem ruídos desagradáveis. Cumprimentam toda a gente com cordialidade, mas mantêm recato sobre as suas vidas. Possuem dois pincheres castanhos em miniatura e todos os dias de manhã cedo levam-nos à rua, ao jardim que fica ao fundo da rua, para fazerem as necessidades. Por vezes, ao final do dia, repetem o mesmo percurso. Andam sempre juntas, seja para ir às compras ou sair a algum lado. Somente o seu ar arrapazado, o cabelo curto, a ausência de maquilhagem ou quaisquer adereços femininos, denunciam as suas preferências sexuais. Tanto quanto me lembro, nunca escutei alguém dizer mal delas.

O terceiro andar direito e o esquerdo estão ambos vazios e em obras. Consta que foram comprados por um emigrante que está em França e que se prepara para pedir balúrdios pelas futuras rendas. No quarto andar direito, mora uma violinista. É uma rapariga jovem, com cerca de 20 e poucos anos. Deve ser estudante, pois entra em casa bastante tarde e durante a manhã não se escuta qualquer ruído. Deve dormir até tarde. Todos os dias, perto da hora do almoço, oiço-a debitar escalas durante mais de duas horas. Somente depois desses exercícios consigo escutar algumas melodias. Não recebe visitas e parece ser uma jovem bastante solitária. Nunca a vi acompanhada.

O quarto andar esquerdo é habitado por um velhote que dizem ser pintor e poeta. Raramente me cruzo com ele, mas a sua figura, de uma magreza excessiva, o olhar penetrante, o nariz adunco e o cabelo totalmente branco, fazem-me lembrar o Mário Cesariny, uma das maiores vozes da nossa poesia e o principal representante do surrealismo português. Não sei o nome do inquilino do quarto esquerdo, mas imagino-o alguém como o Cesariny, que nunca teve medo da liberdade e deu de barato qualquer verniz para se apresentar aos seus contemporâneos tal qual era. Assumidamente excêntrico, provocador e homossexual.

Por último, nesta pequena mansarda, ensanduichado entre os restantes inquilinos e o telhado, moro eu. Devo ser o personagem menos interessante de todos quantos habitam este prédio, construído após o terramoto de 1755, a mando de um tirano marquês, que um dia mandou cuidar dos vivos e enterrar os mortos. Aposto que nenhum dos inquilinos alguma vez pensa em mim, ou sequer se importa em indagar quem eu sou, como vivo, quais os meus gostos, desgostos e anseios. As nossas vidas não se cruzam, exceto nas escadas do prédio. Ninguém sabe, por exemplo, que um dia dirigi uma decadente revista literária chamada Pena e que escrevo compulsivamente para tentar manter a vida nos eixos, criando projetos e rascunhando livros que nunca vou terminar. Que a escrita, para mim, mais do que uma forma honesta de ganhar uns trocos, é o modo natural que utilizo para expulsar os demónios que atormentam a minha cabeça. Não sabem que sou um homem extremamente solitário, mas que apesar de toda a solidão, busco também refúgio no humor. Que me satirizo a mim mesmo de forma cruel, quando exponho o ridículo da minha vida nas personagens que vou entretecendo ao longo das minhas histórias. Que toda a minha escrita reflete claramente um homem abandonado, talvez traído pelo seu próprio orgulho e personalidade intempestiva. Mas que lhes importaria saber isso? O que mudaria?

Vou ter de fazer das tripas coração e inventar uma treta de um texto qualquer para ser publicado como mais uma das minhas crónicas. A realidade é que o dinheiro da reforma é pouco e tudo o que vier a mais dá-me imenso jeito. Desconfio que o meu senhorio se prepara para me aumentar a renda. Já me falou nisso diversas vezes. Nos últimos tempos, na baixa lisboeta, têm surgido imensos incêndios com origem misteriosa e todos em prédios antigos, com rendas muito baixas. Não saem a bem saem a mal. Diz-se que são os proprietários que pagam a alguém para pegar fogo aos imóveis como forma de pressionar os inquilinos a saírem. A maioria dos arrendatários é idosa e paga rendas totalmente desajustadas face às condições do mercado. O alojamento local está na ordem do dia e a mira do lucro é o leit motiv, que faz com que sociedades de investimento estrangeiras cada vez mais adquiram imóveis na baixa pombalina.

Tenho medo que me peguem fogo à casa e que eu morra cremado vivo aqui dentro. “ O próprio viver é morrer, porque não temos um dia a mais na nossa vida que não tenhamos, nisso, um dia a menos nela”, escreveu Pessoa. Mas Pessoa não gostava muito de viver, ou, pelo menos, nunca se preocupou em prolongar a sua vida, com sacrifício dos vícios e de tudo o que lha abreviava. Enquanto não atravessarmos a dor da nossa própria solidão, continuaremos a nos buscar em outras metades, não forçosamente do sexo oposto. Mas, mais importante do que viver a dois é antes ser um e isso é aquilo que eu tento ser, juntamente com o meu Mefistófeles, nesta mansarda cujo teto quase nos cai em cima. Quanto à crónica para o jornal, vai mesmo isto, escrito sem conteúdo planeado, que toca a reflexão pessoal, o mexerico com a vida dos inquilinos e um pavor quase absurdo que se agiganta em mim cada dia que passa: o medo de ser queimado vivo.




sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Sismo de 1969



Eu tinha 8 anos de idade, a minha família morava na cidade de Almada e na rádio disseram que era arriscado ficar em casa. Para além de uns quadros fora do lugar e uma racha numa parede, nada de grave nos aconteceu. Eram 3 horas da madrugada e fomos para o recinto da Feira de Almada, uma porção larga de terra batida sem construções ao redor. Já lá estavam muitas dezenas de automóveis estacionados e muita gente conhecida. Os adultos ficaram conversando madrugada dentro com a multidão que entretanto se começou a formar. Lembro-me que estava frio, mas levámos mantas para nos aquecermos no banco traseiro do Fiat 850. A maioria das crianças estava de pijama e muitos adultos também. Trouxe a minha coleção de cromos e alguns livros da Enid Blyton, o resto era dispensável, caso o teto ou as paredes caíssem e tudo se perdesse.

O maior receio da população era que se tratasse de uma réplica do terramoto de 1755, com 8,7 - 9 na escala de Richter, que devastou Lisboa no século XVIII. O sul, nomeadamente o Algarve, e a região de Lisboa foram as zonas mais atingidas pelo sismo de 7,9 na escala de Richter que Portugal acolheu em 1969.

De manhã cedo, regressámos a casa e nada de especial sucedeu depois disso. Morrerão 25 pessoas no país, mas a censura abafou, como era usual, tudo o que fosse dramático e desestabilizador da ordem pública. Para a mentalidade da época, vir para a rua em pijama era considerado estar em "trajes menores" e noutras circunstâncias, não excecionais, podia dar origem a uma visita à esquadra mais próxima e aplicação de uma multa.

Na véspera eu tinha completado o meu oitavo ano de existência e ainda andava embasbacado com as prendas, mas esta foi talvez a minha primeira grande experiência de vida. Foi seguramente a minha primeira pijama party.

Sobre a felicidade



Atrevo-me a dizer que toda a gente, alguma vez na vida, já foi amada. Na infância, na adolescência, na idade adulta, no liceu, na Universidade, ou até mesmo no envelhecimento, uma mãe, um pai, uma avó, um filho, uma filha, um homem, uma mulher, alguém se cruzou ou se manteve por perto, provavelmente, e amou-nos bem. É, no mínimo, uma atitude de presunção agastada querer receitar a felicidade como quem desfolha as páginas do Pantagruel, e nele encontrar mil e uma formas de fazer bolinhos de felicidade e alegria esfuziante.
O segredo da felicidade é um segredo de Polichinelo – aquela personagem clássica da Comédia Dell’arte, das farsas napolitanas e dos teatros de marionetas. Corcunda, barulhento e quezilento, é a figura do bobo da corte, sempre desbocado, dizendo o que deve e o que não deve num tom jovial e folgazão. Os segredos de Polichinelo são por isso a fingir. São farsas dos verdadeiros segredos, que, para que o sejam, devem permanecer ocultos, escondidos, indecifráveis. Qualquer segredo partilhado, ainda que não transborde uma geografia restrita e nunca chegue à praça pública, perde o essencial da sua razão de ser. Quando se partilha um segredo, alivia-se a carga, descarrega-se o peso de se ser, ou de se julgar ser, o único que sabe ou conhece aquela coisa, que é sempre terrível e oprimente, que delata alguém ou repõe uma verdade escamoteada. Entre o peso dos que contêm e se contêm de mais e a leveza dos que deixam escorrer palavras que despem a alma, deve haver uma justa medida para o que se mostra e para o que se esconde.
A felicidade depende, em parte, de condições interiores e, em parte, de condições exteriores. Todas as pessoas que gozam de boa saúde e podem satisfazer plenamente as suas necessidades julgadas elementares, à partida, deveriam ser felizes. Acontece que as coisas não se passam bem assim. A felicidade, nos humanos, é uma coisa muito rara, ao menos como estado permanente. Os animais são felizes desde que tenham boa saúde e bastante comida. Tem-se a impressão que os seres humanos deveriam sê-lo em iguais circunstâncias, mas tal não sucede. Creio que a maior fonte da infelicidade reside no desamor, nas ideias erradas que se tem sobre o mundo, erradas éticas, errados hábitos de vida que provocam a destruição desse gosto natural e desse apetite pelas coisas realizáveis de que depende afinal toda a felicidade.

Uma das principais causas da falta de gosto pela vida é o sentimento de não ser amado, ao passo que, inversamente, o sentimento de ser amado encoraja mais do que qualquer outra coisa. Por variadas razões, um homem pode, por exemplo, considerar-se uma criatura tão horrível que julgue inadmissível alguém amá-lo; pode também ter-se acostumado na infância a receber menos afeto do que as outras crianças; e pode na realidade ser uma pessoa de que ninguém goste. Mas neste último caso a origem do mal reside provavelmente numa falta de confiança em si próprio motivada por precoces infortúnios. O homem que não se sente amado pode tomar, em consequência disso, várias atitudes. Nalguns casos, faz esforços desesperados para conquistar a afeição dos outros, às vezes até por meio de atos excecionais de bondade. Procedendo assim, no entanto, tem poucas probabilidades de êxito, pois a razão da sua bondade facilmente será compreendida pelos que dela beneficiam e a natureza humana é de tal maneira constituída que testemunha afeição com maior felicidade àqueles que parecem pedi-la menos. Portanto, o homem que se esforça por conquistar afeição por meio de ações generosas torna-se um desiludido com a experiência da ingratidão humana. Nunca lhe ocorre que a afeição que procura comprar tem muito mais valor do que os benefícios materiais que oferece em troca e, no entanto, é a consciência dessa verdade que inspira todas as suas ações. Outros homens, ao verem que não são amados, tentam vingar-se do mundo, instigando guerras e revoluções ou escrevendo com a pena molhada em fel. A grande maioria, homens como mulheres, quando sentem que não são estimados, afundam-se num tímido desespero, aliviado somente por fulgores momentâneos.

O mundo é esta amalgama, lugar confuso, onde eu vivo, contendo coisas agradáveis e desagradáveis, em desordenada sequência. É-me, contudo, irreprimível esta conta-corrente de pensamento e reflexão, sobre os fluxos que julgo serem os mais importantes nesta curta experiência de viver; este percurso aleatório – viagem de ida – onde ditados tais como: «A palavra é de prata, o silêncio é de oiro», não colhem em mim o santuário devido. Já se sabe que muito mais difícil do que abrir a boca e soltar o verbo para largar frases feitas, impressões ambivalentes, palavras entre o muito e o nenhum conteúdo é guardar silêncio. Eu encaro o silêncio como uma mera pausa comunicacional, uma forma de pontuar o discurso, de terminar um assunto e partir para outro. Perdoem-me, pois, aqueles que me lêem por ainda não ter terminado este fiar de tomadas de consciência sobre os méritos e deméritos da felicidade mas, mais do que qualquer descoberta alquímica, um dos enigmas mais felizes da vida, reside no facto de encontrarmos todos os dias pessoas a quem tudo o que há de mal parece ter acontecido e, ainda assim, mais do que sobreviventes, são alegres viventes, sôfregos de vida, de bem com ela, e, de caminho, com os outros com quem se cruzam, criaturas de histórias muito banais e acontecimentos quase casuais. São pessoas para quem o caminho do Bem é uma opção consciente. Para quem não entendeu, falo-vos dos meus heróis.

Leiria, dezembro de 2011 (texto publicado originalmente num blogue e na extinta revista "Olhares")