sexta-feira, 14 de setembro de 2018

O Reencontro


Para melhor me entender, foi-me sugerido contatar com um rapazito na casa dos oito anos, uma idade em que as memórias já são firmes, que responde pelo meu nome, no sentido de perceber o que ainda me liga a ele. Sem saber bem como o fazer presencialmente, uma vez que a máquina do tempo não passa de uma efabulação literária, pensei que através da meditação conseguiria atingir em parte os meus propósitos. E foi assim que um dia me deitei na cama, de olhos fechados, fingindo que meditava, sem qualquer treino para o fazer, apenas confiante que o silêncio e a serenidade seriam capazes de me transportar a um determinado tempo e lugar do meu passado.
Embalado por uma sonolência induzida, deixei-me enredar pela espiral do túnel do tempo, fechei os olhos e fui retrocedendo até me fixar numa certa época e lugar.

Era o ano de 1969, aquele em que os homens foram à lua, comandados por Neil Armstrong, o primeiro humano a pisar solo lunar, difundidos toda a noite, a preto e branco, pela Telefunken valvulada, que só estabilizava a imagem mercê das pancadas certeiras dadas pelo meu pai no tampo de carvalho laminado. Os Beatles ainda existiam como banda – os guedelhudos, nas palavras do meu progenitor - e Salazar já não reinava. Com Marcelo Caetano à frente do executivo, a guerra colonial prosseguia nas três frentes e a Pide mudava o nome para DGS. Nixon tomava posse como o 37º presidente dos Estados Unidos da América e a atriz Sharon Tate, juntamente com outras quatro pessoas, é assassinada na casa do realizador cinematográfico Roman Polanski, pela família Mason, naquele que na altura foi considerado um dos crimes mais bárbaros cometidos na sociedade norte-americana.

Foi neste mesmo ano que a 28 de Fevereiro ocorreu um grande sismo. Atingiu o sul do país e a região de Lisboa, mas também foi sentido no norte, sendo o último grande sismo a ocorrer em Portugal Continental, e o mais importante do século XX. Recordo a maioria das notícias, com a compreensão possível a um garoto da minha idade, embora muitas delas fossem tornadas mais brandas pela censura instituída. Tenho boas memórias da aventura que vivi durante o sismo de fevereiro. Na noite em que ocorreu o tremor de terra, como toda gente lhe chamou, face ao conselho que se escutava na rádio, a minha família, juntamente com a nossa empregada, saiu de imediato para a rua, para lugar seguro, longe de construções que pudessem ruir. Ainda éramos apenas quatro elementos, uma vez que os dois irmãos mais novos não haviam nascido.

Passámos grande parte da noite dentro do carro, a escutar as notícias, juntamente com centenas de pessoas que fizeram o mesmo. O terreiro onde tinha lugar a Feira de Almada, uma vasta área com solo arenoso, do tamanho de dois campos de futebol, sem construções nas cercanias, era a garantia suficiente de que nada nos cairia em cima. Apesar dos gritos da minha mãe para me despachar, demorei a sair de casa, pois nenhuma circunstancia me faria abandonar a Fô, a minha gata angorá de longo pêlo branco e almofadas das patas cor-de-rosa, que teimava não aparecer. Ainda arrepanhei alguns livros dos Cinco e dos Sete e a máquina fotográfica Agfa que sempre me acompanhava. Tudo o que para mim tinha um valor insubstituível trouxe comigo. O resto bem podia ruir e desaparecer. O meu mundo cabia dentro daquele Fiat 850.

Pouco passava das três da manhã, o meu pai decidiu que o perigo havia passado e regressámos a casa. Fiquei com pena de ver a desmobilização dos carros no recinto e que a aventura tivesse durado tão pouco. Não fora os quadros da sala fora do lugar e algumas rachas visíveis na pintura,quase diria que tudo não havia passado de mais uma das efabulações da minha infância, daquelas que tanto me entretinham o espírito.

Agora mesmo, desci as escadas estreitas, com degraus em mármore branco, da casa paterna, com as famosas paredes rugosas que todos os dias me faziam sangue nos dedos e nos cotovelos, sempre que subia ou descia a escada em dois degraus de uma assentada, sem desacelerar nas curvas; e encontrei-me frente ao negro e sinistro portão de ferro, com dois enormes lampiões de cada lado, ao estilo de uma mansão do século XIX, do externato Frei Luís de Sousa. Era sábado, o final de uma tarde de verão. Não havia escola, mas, com exceção do domingo, o externato fervilhava sempre com atividades. O salão e o ginásio eram frequentemente alugados para casamentos, aniversários e outros eventos. Eu era uma presença regular nos “copos de água”. Depois de os convidados terem comido e bebido em abundância, já com um grão na asa, não raro, entretinham-se a dançar. Com um invulgar à vontade, entrava no salão e, sem me fazer rogado, atirava-me aos doces e aos croquetes como se aquele fosse o último dia da minha vida. Faziam-me festas no cabelo e eu com a boca cheia de doces sorria. - Que menino tão bonitinho! Toda a gente pensava que eu era filho de um dos convidados da noiva ou do noivo. Já de barriga cheia, saia com a mesma displicência com que havia entrado e respondia sempre com um sorriso às festinhas que invariavelmente me faziam na cabeça. O meu ar de menino família, limpinho e burguês, convencia qualquer um. Nunca fui apanhado e durante bastante tempo banqueteei-me a valer. O segredo era ter descontração e jamais partilhar o bónus com alguém.

Entrando no estabelecimento escolar e virando à direita, começava uma subida íngreme, imediatamente a seguir ao Jardim de Infância, seguida de uma curva acentuada, ladeada por árvores frondosas. Ao cimo, do lado direito, o arvoredo adensava-se e sei que, com alguma probabilidade, poderia avistar-se, sentado sobre uma ramada mais forte, um rapazito
com calções de sarja, magrito, o cabelo muito cortado, com um remoinho teimoso à frente, os joelhos sempre esfolados, mas de olhar vivo e sonhador.

Não sei se conseguiria chegar ao diálogo com ele. Por natureza tímido e fechado no seu mundo interior, provavelmente não me responderia ou dificilmente trocaria palavras com um estranho, mais velho do que o seu próprio pai. Mas, ainda assim, decidi procurá-lo.

Conhecendo-o como o conheço, não errei nas minhas suposições. No cimo de um carvalho de tronco baixo e copa suficientemente ramosa para albergar gente de palmo e meio, lá estava ele sentado em cima do ramo mais grosso, uma perna para cada lado, como quem monta um cavalo, observando os carros que subiam a ladeira e estacionavam no alcatroado do campo de jogos. Reparei que tinha algo na mão. Um pau com uma corda e folhas de cana pregadas numa das pontas. A princípio estranhei o propósito do objeto, mas cedo um sorriso aflorou a minha face. Como poderia ter esquecido? Era o seu cavalo, a sua companhia dileta, a quem ele fornecia os gestos próprios do animal: o som dos relinchos, o resfolegar após longas cavalgadas, o diálogo permanente entre o cavaleiro e a sua montada. O trabalho que o petiz teve para levar o cavalo para cima da árvore, pensei.

«Jó!» – Chamei. Ele ficou assustado. Porventura estaria a pensar que eu o ia repreender por ter abusivamente entrado num colégio que ele já não frequentava, agora que estava na escola do Estado, por vontade imperativa do pai. «Jó!» – Chamei de novo o seu nome.

E quando ele olhou para mim, disse-lhe: «Eu sou tu, mas não te assustes. Não te vou fazer mal. Ainda és feliz, imaculado, e gostava que jamais deixasses a copa da árvore em que te encontras, seguro, sonhador, protegido por um mundo sagrado que é só teu. Ainda não te roubaram a infância, nem o cavalo, ao que vejo. Ainda sonhas… Eu já só consigo fechar os olhos e fingir que sonho e medito. Já não durmo de noite. Deito-me, tão-somente. Vim aqui expressamente para te ver e em especial para te dizer que jamais deves sair deste jardim. O mundo que te espera sou eu e é terrível, acredita-me. Eu sei que não me reconheces, pois eu também não me reconheço em ti. Sei que és petiz, não entendes o que te quero transmitir, mas ainda assim deixa-me falar-te. Não gostava que te transformasses em mim, mas não te prometo que o possa evitar. Sei que deves achar estranho um homem da minha idade dirigir estas palavras a uma criança. Mas acontece que eu sou, ou melhor, transformei-me, no pretérito imperfeito de ti. Gostava de poder voltar a ti. Meter-me dentro de ti e reformular-me. Poupar-te naquilo que te espera. Entendes-me? Eu sei que não, criança. Não te peço para desceres. Eu não me importo de falar cá de baixo, apesar de começar a doer-me o pescoço. Mas esta dor, comparada com outras dores maiores, é uma brincadeira muito igual às que tu fermentas todos os dias. Quando tiveres um pouco mais do dobro da idade que tens, já terás passado por tantos jardins sem rosas, onde todas as flores murcham e o sol custa a entrar, que o sorrir mais não será que uma lembrança, um esgar na tua face magra e sofrida. Lamento tanto ser eu o núncio da tua perene infelicidade, mas acontece que, malgrado a inverosimilhança que separa as nossas vidas, o nosso aspeto físico, as palavras que eu emprego e que tu te limitas a escutar sem as entenderes, eu sou tu. Ou melhor: tu hás-de ser eu. Num futuro não muito longínquo, para mal dos meus tormentos.»

Afastei-me. Deixei aquela criança com um ar aterrado, olhando freneticamente para todo o lado em busca de uma possível ajuda. Nem uma única palavra saiu da sua boca. Apenas o terror plasmado no olhar. Não fui capaz de dizer mais nada. Fica agora na tua paz. Eu vou. Pensei, mas não disse.
Era Setembro. Segui com o rodopiar dos estorninhos rente ao chão e as lágrimas a rebentarem sob os olhos. Senti-me criança outra vez, querendo correr para os braços da minha mãe. Queria que me dissessem que ia ficar tudo bem. Que o dissessem, sobretudo, a ele. Olhei somente uma última vez antes de me afastar. A criança ficava cada vez mais pequenina à medida que eu me afastava da árvore, até se transformar num pontinho ao longe, mas sei que nunca desprendeu os olhos de mim; como um gato assustado; como uma gazela perseguida.

E, por estes momentos, já eu sonhava. Um lobo solitário perseguia uma gazela solitária através de um bosque até à beira de um precipício. A gazela, hábil e conhecedora do terreno, conseguia descer lentamente pelo declive pedregoso, enquanto o lobo corria frenético à beira do precipício, olhando para baixo para a sua presa, tão perto, mas tão inatingível.

Acordei no século XXI com a cabeça enredada em lençóis suados e no medo. O coração batia-me descontrolado. Sei que havia sonhado. Estava consciente do pesadelo que me tinha acordado em sobressalto. Era óbvio que eu era a gazela do sonho. O menino que havia sobrevivido às agruras da vida, por ter ganho defesas bastantes para se defender dos lobos da floresta que é a vida. Mas essa era a parte do sonho que eu aceitava, sem margem para dúvidas, como sendo irreal. O resto era demasiado verdadeiro. O detalhe com que vi aquela criança que era eu. As roupas, o olhar, o cabelo, tudo tão familiar, até a forma tão certeira de saber onde o encontrar.

Eu fui ele até que a vida nos separou. Os elementos da natureza, seja terra, água, flores, folhas, pedras, areia, ou o simples silvo do vento, enriqueciam o comportamento de jogo livre e potenciavam o seu desenvolvimento cognitivo, emocional e físico. Mas isso foi abruptamente interrompido pela urgência com que a vida decidiu terminar a sua infância antes do tempo.
Até que a vida nos separou, eu sei que fui ele. Mas não consegui contactá-lo, falar-lhe numa linguagem que lhe fosse acessível. Apenas o assustei e deixei confuso. Fui desajeitado e patético, inepto para chegar à compreensão de uma criança com oito anos de idade; e estive tão perto de falar com o petiz que eu fui.

Somos seres pequenos e irrelevantes. É apenas o espaço que ocupamos no coração dos outros que nos emociona, que nos dá propósito, orgulho e sentido de identidade. Precisamos do amor incondicional, ilógico e irracional dos nossos pais. Precisamos que nos vejam através de lentes distorcidas por esse amor e que nos digam de todas as formas que o mero facto de estarmos vivos os enche de alegria. A conceção de adulto feliz e maturado pressupõe, em mim, a manutenção de alguns desejos e propósitos da criança que fui. Sei que o meu cavalo não era uma obra-prima, com aquelas franjas feitas de cana a imitar crinas e um cordel tosco como rédea, mas sempre que o retiro do sótão dos meus pensamentos, receio que seja maldição do destino recriar a infância na vida adulta. E depois interrogamo-nos por que motivo não somos felizes.


quarta-feira, 5 de setembro de 2018

A maltinha do Equador



Quando se pensa no Equador, o país de maior biodiversidade do mundo por unidade de área, vem no imediato à nossa mente aquele pequeno país da América do Sul, limitado a norte pela Colômbia, a leste e a sul pelo Peru e a oeste pelo oceano Pacífico, cortado a meio pela linha imaginária do equador.

O país é dominado, na sua parte central, pelos Andes, a maior cordilheira do continente americano e detém a soberania das ilhas Galápagos (património Mundial da Unesco), que distam apenas a cerca de 1 000 km do território continental, onde nasceu o evolucionismo, criado pelo britânico Charles Darwin.

Imagina-se igualmente pessoas com aspeto de Incas, os descendentes daqueles que sobreviveram aos massacres sanguinários liderados por Francisco Pizarro - foram ainda mais os que morreram face às doenças transmitidas pelos colonizadores, para as quais não possuíam anticorpos.

Atualmente, a maioria da população equatoriana é mestiça, descendente dos colonizadores espanhóis que se miscigenaram com os povos indígenas - os espanhóis e os portugueses, contrariamente aos colonizadores da Europa do Norte, por todas as terras por onde passaram, sempre deixaram a sua semente e a mistura produzida criou um povo com traços sui generis e particularmente belos.

O IPL de Leiria celebra diversos protocolos com vários países, de forma a possibilitar a aprendizagem da língua portuguesa e posterior frequência de um curso de licenciatura, a jovens oriundos de várias partes do mundo.

O refeitório da ESECS, onde frequentemente almoço, acolhe desde há poucos dias um grupo considerável de jovens equatorianos. E, à conversa com alguns deles, no meu fluente portunhol, fiquei a saber que se encontram a frequentar um curso intensivo de língua portuguesa. No final, para os que tiverem aproveitamento, será possibilitada a frequência de um curso de licenciatura no IPL de Leiria.

No meu imaginário precoce, quem sabe burilado pela leitura do Tintin nos Andes, os equatorianos fazem-se acompanhar por lhamas, trajam roupas andinas multicoloridas, ponchos largos e usam chapéus e colares ​​ao redor do pescoço; e, da sua indumentária, deve obrigatoriamente fazer parte uma flauta de pã e um adufe.

No mundo globalizado onde vivemos, não fora os traços mestiços, o tom moreno da pele e os cabelos negro azeviche, que denunciam a proveniência sul-americana, os jovens que hoje soltavam risadas no refeitório, eram assustadoramente iguais aos seus congéneres ocidentais: o mesmo corte de cabelo à Justin Bieber, as tatuagens, os piercings, os brincos, as calças rotas, as sapatilhas, o tique inexorável dos polegares, que freneticamente deslizam nos ecrãs de telemóveis...

A Aldeia Global, com a criação de uma rede de conexões, que deixam as distâncias cada vez mais curtas, facilitando as relações culturais e económicas de forma rápida e eficiente, criou modelos estereotipados de jovens que seguem afanosamente os seus ídolos, com os quais se identificam e desejam imitar.

Mas, como em tudo, há os prós e há os contras, recordando o álbum conceptual de Roger Waters "The Pros and Cons of Hitch Hiking". Esperemos que os efeitos perversos desta irrevogável globalização, a que todos pedimos boleia, sejam mitigados pelo encontro do melhor dos mundos.

Boa sorte, maltinha do Equador!