quarta-feira, 31 de maio de 2017

A ti




Gostava de saber chorar como tu choras. Encostada ao ombro de alguém, com um olhar de menina que não chega a ser um olhar de desculpas pelo que fez, mas um olhar de certezas e de direito por chorar. Gostava de me comportar contigo como fazes comigo. Com uma ternura austera que me prende mas nem sequer desafia.

Por vezes empreendes um espírito distante que me deixa completamente impotente. Nunca serei capaz de te dizer que não, se quiseres que seja sim, nem vice-versa. Às vezes rio-me do que dizes. Pareces-me ingénua e irracional e pergunto-me, por quanto tempo serei capaz ou poderei continuar a sentir-me apertado, como se toda a atmosfera me comprimisse contra mim mesmo pela tua imagem.

Olho para ti e penso que te conheço tão bem, como se existisses desde sempre comigo. Que nunca poderás ter uma reação que eu não possa prever. Apetece-me dizer-te tudo o que sei e não sei sobre ti. Porém, só posso ter a certeza de que te conheci e que os momentos passados estão assegurados. Já tinha desejado conhecer-te. Que passasses por mim e soubesses que eu não era igual aos outros - Que existia!

A ideia de que te conheço é cimentada cada dia que passa. Como se fosse uma parede que lentamente se vai erguendo a cada tijolo que é posto e um dia me condicionará a vista. Temo este muro apesar de continuar a construí-lo. Sei nitidamente que sou eu quem o constrói.

Sei o teu nome, vigio-te os gestos, os olhares, tudo. Quando não estás, faço suposições acerca do que dirias, do que farias. Reconheço-te a voz, o andar, o toque macio da pele, a respiração, o olhar calmo, o espírito inquieto que ninguém pode adivinhar. Pergunto-me se valerá a pena aproximar-me ainda mais desta miragem. 
Por vezes imagino que nas ruas da cidade há uma pessoa perigosa escondida atrás de uma esquina para me fazer mal. É assim que te imagino. És tu a pessoa perigosa.

Em cada paixão há frascos de veneno que são postos em copos com água e que nos é dada a beber quando menos esperamos. E depois perguntamos porque é que não segurámos um pouco mais a sede? Porque existem erros de sincronização entre o racional e o prático?

Eu queria ser uma criatura inteligente, criada a partir do e para o cérebro. Para a idealização e concretização das ideias. Lamento não o poder ser. Queria ser envolvido pelo teu olhar cúmplice, pelos teus braços, sentir-te o hálito quente e ficar assim pacientemente para a eternidade. Sacrificar tudo. Nunca mais sentir a humidade do inverno nem o calor excessivo do verão.

És sobretudo, penso agora, a minha maior dúvida, tudo aquilo que gostaria de resolver. Procurar-te naquilo que me mostras e acabar por te descobrir naquilo que inventei.

Gostaria de ficar a noite toda a escrever acerca de ti e para ti. Venerar-te mais. E fico triste pela incapacidade de o fazer, de o poder fazer, ainda que parcialmente nestas folhas. Só queria que, antes de fechar o caderno, batesses na porta: entra, diria eu, e me abraçasses como se abraça um menino, com a maior ternura que possa existir.

Mas as ilusões são comédias demasiado duras. É angustiante sentir-se que uma pessoa apenas nos dá a caridade de mantermos um sonho, perpetuá-lo, até que chegue a altura de o desfrutar.

Esperas pacientemente pela velhice. Eu gostaria de ser eternamente jovem. Poder cá estar quando tudo for diferente e fascinante. O passado é isso mesmo, só passado, só fascina os incapazes. Esses terão sempre medo do futuro porque não gostam de incertezas. Eu estou sempre à espera do futuro, sempre com os olhos postos naquilo que há-de vir. Eu queria viver no futuro porque nada me fascina daquilo que conheço. Estou sempre a querer andar depressa, de tal modo que às vezes me sinto obrigado a recuar para não sair do contexto.

Acaba por ser uma necessidade saber que não se está só. E que ainda avistamos os outros ao longe, mesmo que sejam apenas pequenos pontos quase a confundir-se com a linha do horizonte.

Queria falar contigo. Dizer-te como gosto de ti e como é tão fácil gostar. Seria tão difícil magoar-te. Mas não digo nada. Não o faço. Todas as palavras pareceriam fazer parte de um discurso ensaiado à entrada de um palco. E és tu quem prepara todo o processo da representação, com olhos e gestos cúmplices que parecem enlevar a sedução ou fascínio que me reservas.

E eu confio-me a esse espetáculo quase exuberante que me preparas. Assumo o meu papel de ator que nunca representa, nem sequer conhece o papel que lhe cabe, que inventa a cena e o cenário. Crio e destruo situações efémeras, como um arrepio que passa. Depois, em silêncio, dedico-te tudo. Cartas, poemas, textos, pensamentos. É quase uma vingança que guardo no lado mais obscuro e ao mesmo tempo mais nobre de génio. Por pouco que seja.*

*(texto publicado em 2006, numa separata do jornal do Barreiro e num pasquim literário da época, de que já não recordo o nome. Trata-se de um escrito puramente ficcional, em jeito de prosa poética, género, à data, tanto do meu agrado, e nunca serviu de missiva para nenhum destinatário em concreto)

Querido Diário!



Estou demasiado atarefado a fazer a mala. Parto hoje para Leiria, sabias? Vamos nos ver menos vezes, mas não quero que fiques triste. Às vezes, como sabes, o silêncio doira a saudade e aumenta o desejo do reencontro. Além disso, tu tens ciência de que a minha vida é agora mais lá para aqueles lados, onde o Lis serpenteia à sombra dos esgares de um castelo altaneiro. Volto agora para as tarefas do meu quotidiano banal, mas não quero que penses que te abandono; isso nunca! Tu sabes, eu sei, que vou como as aves, mas sempre regresso, mais não seja quando a saudade for tão forte que me impeça de continuar sem ti. Quero sair de casa antes do cair da noite, pois esperanço ainda ver os estorninhos na estrada. Não têm conta a esta hora, em revoadas sucessivas sobre as árvores. Depois o sol acalma e, lá para o fim da tarde, como é usual, uma sombra mole escorre para o alcatrão aquecido da estrada. Logo, mais tarde, quando a noite se sentar à minha beira e me sussurrar aos ouvidos, quero estar recolhido com os meus pensamentos em ti. Nessa hora aflitiva, a luz de mim mesmo é tudo o que trago comigo, porque também eu sou pequenino e tenho medo do escuro....*


Até sempre

(* Excerto de uma passagem de um diário - escrito em maio de 2006, faz agora sete anos, num final de tarde semelhante ao de hoje, em vésperas de vir trabalhar e morar em Leiria)









sábado, 27 de maio de 2017

Dos meus heróis



Há pessoas que estão sempre a afiar as garras e que julgam que a melhor defesa é (sempre) o ataque. Bater antes de ser batido. Marcar desde logo território e partir para o combate numa posição de vantagem. Deixar o adversário knock out sem que ele tenha, sequer, a possibilidade de esboçar um gesto de defesa.

É a politíca da "terra queimada", no que às relações pessoais respeita.

As guerras sempre começaram por ser pequenas escaramuças que degeneraram numa escalada sem fim à vista. Não são mais do que uma representação superlativada dos conflitos interpessoais.

Neste mundo egótico em que a regra maior é sobreviver, ter outro comportamento pode, muitas vezes, levar-nos à auto-aniquilação, ou à morte consentida. Ser bom, ter um comportamento altruista, implica aceitar à partida a ideia de perda, de sofrimento e possuir uma capacidade infinita para amortizar injustiças. É dar sem esperar retorno. É aceitar o sacrifício. É conseguir ser o melhor Ser do mundo e arvorar-se da qualidade maior que é a bondade. É mais fácil ser culto, interessante, esteta, filósofo, ensaista, poeta, diseur, whatever, do que ser genuinamente bom.

Essas boas pessoas são as melhores do mundo e são as únicas que invejo e mais admiro.

quinta-feira, 25 de maio de 2017

À beira do Lis



Alguém me disse, com um ar muito convicto, que estas bolinhas de algodão em rama que andam por aí a esvoaçar sem rumo e fazem imensos rodopios antes de assentarem no chão, desprendem-se aos milhares dos enormes plátanos que bordejam o Lis e provocam alergias. Eu não sei se isso é verdade, mas acredito que assim seja. O que é certo é que a primavera regressou com força e desde que comecei a escrevinhar estas linhas os pardalitos ainda não largaram a minha janela. Por mero deleite, costumo deixar uns miolos de pão, ou bolachas, em cima do parapeito da varanda, pois sei que mais tarde ou mais cedo eles acabam por aparecer. Sinto um gozo soberbo quando no final da tarde escuto os chilreios destas avezinhas trémulas e gorduchas que dão saltinhos para a esquerda e para a direita rodando sobre si.

Mas será que era disto que eu queria falar? Da primavera, dos oráculos que, um pouco por toda a parte, conseguimos ver anunciar a passagem da meia estação com uma luz que faz as cores do mundo resplandecerem no contraste com o azul do céu? Talvez, sim. Este tempo positiva-me...

No próximo fim-de-semana espera-me uma tarefa árdua: fazer por esquecer recordações, papéis diversos, fotografias, por vezes mesmo pequenas coisas escritas e guardá-las algures no fundo de uma gaveta ou na parte de trás de uma estante mais elevada e de difícil acesso, ou porventura, mais assertivamente, deitar tudo no lixo. Sei que há uma página da minha vida, pesada como chumbo, que quero virar. As outras laudas, as que inevitavelmente lhe seguem, estão em branco e cabe-me a mim preenchê-las com os tais momentos que careço: prestações positivas e a felicidade de uma vida fresca.

Há muito que abandonei o zapping doentio que em definitivo se incorporou nos tiques domésticos de quem se senta na sala depois do jantar. Os meus entretenimentos passam pela leitura, pela escrita, pela música ou pelos passeios pela cidade vazia, depois da acalmia do trânsito e recuperar o prazer de olhar os prédios, as janelas, os telhados, as cores de todas as coisas. E assim, por vezes, vou escorregando de ideia em ideia, afinando planos e contingências que careço solucionar dentro de mim.

Quem me lê, por certo, já se apercebeu desta minha veia diarista, epistolar – em mim recorrente - e talvez que o meu olhar sobre a vida e os seus enfeites abram alas a que alguém me explique melhor o porquê de tantas coisas, as respostas que eu não tenho, ou, se tenho, já nem sei onde as guardei.




terça-feira, 23 de maio de 2017

O Macedo da Travessa da Glória




Não há dia que me desloque à Baixa lisboeta, com algum algum tempo livre, que não visite o Macedo da Travessa da Glória. Tanto quanto recordo, há quase quarenta anos que frequento os principais alfarrabistas da cidade, desde os mais finórios, da Rua do Alecrim - e, nesses, era só mesmo para ver os livros e admirar as suas lombadas gravadas a oiro, bem como as gravuras antigas, os mapas e as fotografias de época, pois os preços praticados eram-me interditos -, onde, não raro, encontrava escritores de vulto e nomes sonantes da nossa cultura, passando pelos alfarrábios do Bairro Alto, do Chiado, da Trindade e do Príncipe Real. E se no início o que me movia era a impossibilidade económica de comprar livros novos, restando-me como única opção o livro usado, ou manuseado, como eufemisticamente alguns prosaicos os gostam de apelidar, aquilo que começou como uma falta de alternativa, foi-se paulatinamente transformando num gosto e mais tarde num vício. Mas foram sempre os alfarrabistas modestos, aqueles cujo comércio são os livros manuseados, e não as preciosidades literárias, ou as edições raras e de luxo, que recolheram as minhas preferências. E ainda hoje assim é, pois, mais do que a eventual beleza da capa e da contracapa do livro, que não desprezo, o que me mais me importa é mesmo o conteúdo da obra.

Apesar de ter perdido grande parte das minhas capacidades olfativas e, com isso, algum do espólio desse repositório de memórias formidável, cada vez que entro na tabanca pombalina do Macedo, reconheço de imediato odores que sempre me foram familiares: a humidade entranhada nas paredes, o bafio mesclado com os cheiros indescritíveis que se desprendem das estantes esconsas, onde livros, que há mais de um século não veem a luz do sol, jazem amontoados uns sobre os outros. Um ambiente deveras impróprio para quem sofre de algum tipo de alergia ou renite, onde uma amálgama de odores, que se mesclam generosamente com os cheiros das frituras e dos vinhos, das casas de pasto que convivem paredes meias com o sebo do Macedo, entram sem parcimónia pela livraria, criando uma atmosfera olfativa de tal ordem que, ainda que me vendassem os olhos, quase podia jurar conseguir adivinhar que me encontrava dentro do estabelecimento do alfarrabista da Travessa da Glória.

O Macedo, tripeiro de gema, há muito radicado em Lisboa, vivendo para os lados da Almirante Reis, mas conservando uma inconfundível pronúncia do norte, é um homem esguio, seco, de rosto encovado e varicoso, chupado por uma vida de cigarros e tacinhas, de cuja boca sobressaem dentes escassos, de um amarelo acastanhado. Não raro, quando se emociona, pois está sempre a opinar sobre tudo e o que era antigo é que era bom, espicha perdigotos, que se lhe depositam no canto da boca, mas dos quais rapidamente se livra, passando a manga da camisola pela boca.

O livreiro ainda mantém aquele ar de 'pintas dos anos 50': desafiador, irónico, fadista, amante de ditoches, falador incansável e armado com a sempiterna unharra multiusos do dedo mindinho, com que amiúde coça o interior dos ouvidos, adereço que sempre lhe conheci. Cada vez que me vê, todo ele é uma festa. Mima-me com o epíteto de "doutor" no começo de cada frase. Oiço-lhe as histórias de sempre, que aliás conheço de cor: A viagem ao Brasil, nos anos 60, e as peripécias no Rio de Janeiro com as brasileiras; a sua infância na Ribeira; os banhos no Douro, como os meninos do Anikibobó do Manoel de Oliveira; a vida boa que já teve; as inúmeras amantes que passaram pelo seu leito; a mulher, que é uma santa e tudo lhe tem aturado e desculpado. Julga-se, acima de tudo, um literato, porque vende livros há muitos anos e conhece títulos como ninguém. Faz questão em discutir comigo algumas leituras - diz que já não lê há uns anos porque as cataratas, entretanto, comeram-lhe os olhos - e fica radiante quando se apercebe que eu conheço alguns dos muito livros de que fala. A mulher tem uma venda de peixe no Mercado do Rego, mas só quer saber de telenovelas.

O primitivo arrendatário do estabelecimento está cego, internado num lar, e agora é ele que tem de continuar sozinho à frente do negócio. A renda, antiquíssima, felizmente, é simbólica, pois o dinheiro que intelectualmente ganha mal dá para o tabaco, para umas quantas tacitas de verde e para comer qualquer coisinha. E o prédio, com cerca de trezentos anos, estala de podre. Mas que fazer? Os herdeiros do senhorio recusam-se a fazer obras e já lhe fizeram saber que até iam a Fátima a pé se ele algum dia resolvesse sair dali.

O Macedo sempre acreditou em mim, esperava ainda ver o meu canudo de senhor doutor. Dizia ser eu um jovem diferente dos outros e nunca o consegui convencer do seu erro. Falávamos de ópera e ele trauteava as árias de Caruso; falávamos do Camilo e do Zola e da enorme fortuna que ele teria se os livros de sebo que tinha em stock fossem libras de oiro. E ele ria-se sempre e cofiava o bigode amarelecido - que entretanto estranhamente fez desaparecer - com a ponta da unharra do dedo mindinho.

«Muita saúde para si e para os seus, Sr. Macedo, e obrigado por me aconselhar sempre "boas leituras". "Apareça sempre, doutor, nem que não compre nada, nem que seja para me visitar, pois enquanto nos virmos um ao outro, ainda que poucas vezes por ano, é sinal de que ambos estamos vivos.»

Até sempre, Macedo! *

* Escrito numa mesa de café em Lisboa faz alguns anos.

Dos segredos




Para mim, uma deliciosa ocupação é deixar amadurecer um segredo e sentir o prazer inebriante de saboreá-lo a sós; mas quantas vezes a degustação desse prazer me entristece e me atira para o devaneio. O esquecimento é a melhor cortina de seda que me ocorre diante de um segredo, mas traz sempre consigo a dolorosa responsabilidade de não o poder esquecer. Guardo alguns segredos. Às vezes sinto-me, inclusive, uma espécie de repositório de segredos: uns meus, outros de pessoas que me são, ou, em algum momento, foram chegadas. Não me refiro, naturalmente, à informação que está por detrás das passwords, essa hipérbole atual, mais própria de uma criação de polichinelos, burocratas caídos em absoluta desgraça.

Nasci com o eclodir da guerra colonial e pertenço à geração dos iniciados nos primeiros cadernos de caligrafia e amestrados nos alfabetos por ditados, cópias e redações. Leio páginas de livros melhor do que comandos eletrónicos e senti algumas dificuldades em acompanhar o galopante avanço das novíssimas tecnologias. Fui treinado para descobrir sinónimos em dicionários, definições em enciclopédias, ensaios de erudição em almanaques. Sou de um tempo em que todas essas coisas se julgavam ferramentas de sobrevivência para o futuro que pudesse acontecer. E afinal, descubro-me ensarilhado entre aptidões, que me diziam ser obrigatórias, e este novo mundo de instrumentos visionários, que apenas as histórias de ficção científica me permitiam imaginar. De repente, depois de pequenas e impercetíveis metamorfoses, encontro-me dentro dessa ficção, na vida real de todos os meus dias. Passa-me pela cabeça o tempo que perdi a decorar tabuadas, nomes de rios, serras, linhas de caminho-de-ferro, declinações e fórmulas químicas. Mal eu sabia que havia de chegar a altura em que tudo isso seria absolutamente desnecessário para a prática comum da civilidade.

Hoje em dia quase tudo se resume ao preenchimento de campos informáticos e ao domínio das ditas aplicações, que tendem a estender a sua fervorosa ditadura a todos os campos da atividade humana. O neologismo «info-excluídos» entrou no léxico da competição laboral e quem não dominar com desenvoltura os ficheiros zipados, os scanners, os downloads e toda a panóplia dessas novas ferramentas, resta-lhe deixar-se ultrapassar pela voragem dos mais novos que, sequiosos de vencer e conquistar, vêm em passo de corrida ansiosos por provar que podem destronar os mais velhos das suas ciências rotineiras e caídas em desuso.

A minha capacidade para arrecadar passwords está perto de atingir o limite do suportável: é o código do alarme da repartição; são as palavras-chave para ter acesso às diferentes aplicações informáticas; a senha para iniciar o computador no ambiente de trabalho; o código do cofre; a senha para ter acesso ao telefone! Se a isto somarem as senhas que tenho para uso pessoal, desde o Multibanco, aos blogues onde escrevo, passando pelas diversas caixas de correio eletrónico, verifico facilmente que vivo num mundo de segredos onde se, porventura, me esquecer de alguma das palavras mágicas – os diversos abracadabras que se me colam como sanguessugas indispensáveis – fico ao relento de quase todas as dinâmicas que atualmente compõem as facetas da minha vida.

Apetecia-me ensaiar um regresso às origens, no sentido mais enfático da expressão, e tornar a um tempo em que imperava a rotina dos momentos comezinhos. Sinto vontade de me estender numa cama, acompanhado de uma sanduíche de marmelada e um copo de leite com Nesquick, e reler todos os livros da Enid Blyton, a começar pelas aventuras dos Sete, e deixar-me de segredos para sempre que não fossem as maravilhas que esses tempos – que não voltam mais – efabularam a minha mente de preciosidades imensas. Esses, sim, eram os verdadeiros segredos guardados por pontes que conduziam diretamente ao sonho e à felicidade.

segunda-feira, 22 de maio de 2017

Veneza e o amor




Amo viajar e Veneza será sempre para mim a lua que se lança da Ponte dos Suspiros; a gôndola que desliza pelas linhas da noite no canal azulado; o gondoleiro que canta indiferente, de tão habituado que está a que nos remos se reflitam as estrelas; a festa junto da água, cheia de luzes de todas as cores, de onde às vezes saí a silhueta do Pierrot, que se reflete engrandecido no silêncio do palácio de mármore. E, sobretudo, a maravilha dos teus olhos e a porcelana do teu corpo submergidas na minha grande emoção. Não é extraordinário sermos semelhantes? Conhecendo a minha pessoa, conhecendo-te, porque és como eu? Toda a fonte de delicadezas e sentimentos, que não se podem definir porque são alma, e que estão dentro de mim, equivalem à mesma que tu tens. É por isso que nos compreendemos tão bem. Por este motivo, os nossos pedidos são nulos, porque as nossas vontades estão sempre satisfeitas. Assim, sem nada dizeres, compreendi que estavas triste, porque essa mágoa também era minha.


Porém, nada pode deter-me no caminho que eu mesmo tracei. Caminho onde o horizonte é de um azul tão profundo como o fundo do teu coração. Nestes momentos, sinto-me superior a todos. O fim deste caminho és tu. Eu vou para ti, sem hesitações, com a segurança do homem forte, e espero que me recebas num amplexo pleno de ternuras. Quando penso em tudo isto, fecho os olhos e as palavras rolam dentro de mim, como um sonho transformado em vocábulos. No entanto, nunca vi nos teus olhos a mais pequena teia de aranha, onde os pensamentos ficassem presos. Mas descobri, outrossim, nuvens de tristeza. Eu, às vezes, brinco com a tristeza e com a dor. Deixa-me divagar um pouco mais, amor, não me demoro. Prometo! Por pouco vento que faça, fecho os olhos e percebo o ténue ruído da flor das amendoeiras. É nessas alturas que te vejo e aspiro o teu perfume, mesmo sem saber quem tu és...*

* Prosa poética - Barreiro 2006

Primeiras impressões sobre a cidade de Leiria



Estou em Leiria há cerca de 15 dias. Habito um apartamento modesto que divido com uns engenheiros de formação recente, rapazes novíssimos, boa gente. Da urbe, só conhecia vagamente a entrada principal que, no momento, está tomada pelas obras do «Polis». O centro histórico, com as suas ruelas antigas e casarões fidalgos, encontra-se demasiado entaipado para se poder adivinhar o que vai surgir por detrás desses biombos cinzentos que tudo desfeiam. Toda a cidade parece suspensa na expetativa que a recuperação dos imóveis degradados lhe devolva o brilho e a dignidade de outrora.

Leiria é uma cidade em expansão. A «Nova Leiria», como os leirienses lhe chamam, é uma espécie de Restelo cá da terra. Construída sobre terrenos rústicos, outrora de lavoura, convertidos em lotes urbanos – o dinheiro fala mais alto – onde pontificam apartamentos moderníssimos com tipologias diversas, oferece aos mais abastados todo o conforto moderno. Por lá, exultam duplex, penthouses, ares condicionados, aquecimentos centrais, lareiras, vídeos de porta, aspiradores centrais, garagens com portões automáticos, e toda a gama de paramentos que os consumistas acham necessários à sua nova condição de novo-rico, ou neo-individado. Para muitos, infelizmente, é essa a condição sublime da felicidade, talvez a única que conheçam.

No meio de densa vegetação, dominando por completo, num ângulo de 360 graus, uma cidade originária que dele fez o núcleo de polarização, surge, lindíssimo, o castelo altaneiro. É em especial à noite, visto da Praça Rodrigues Lobo, mercê de uma iluminação suave, amarelejada, que lhe realça ainda mais a beleza, que perco, incansável, o meu olhar no recorte da sua silhueta.

O Liz serpenteia ao longo de toda a parte baixa da cidade, tornando aprazíveis as margens frondosas, bordejadas por álamos e choupos, que derramam os seus braços sobre as águas, onde casais trocam carícias enquanto se deliciam olhando os gansos, os cisnes, os patos, que se deixam ir em inocência e languidez ao sabor da corrente.

Encontro em Leiria uma cidade típica de província, embora já demasiado evoluída para poder merecer o epíteto pejorativo com que, o mais das vezes com injustiça, os lisboetas brindam as cidades dessacralizadas de grandes superfícies comerciais e obras de regime magnificentes.

A pequenez do meio ressalta quando me apercebo que os seus habitantes, não raro, se tratam pelo nome próprio, quando são clientes nas lojas, nos cafés, nas repartições públicas. Trata-se de uma cidade pouco populosa, por comparação às urbes que rodeiam Lisboa, compostas de aglutinados sem fim.

Há 16 anos atrás, por força de circunstâncias algo semelhantes, morei no Baixo Alentejo, em Santiago do Cacém, mas Leiria, sem dúvida, é incomensuravelmente mais evoluída, menos fechada nos seus ritos, menos preconceituosa.

A noite já desceu sobre a Praça Principal, que faz lembrar uma Calle Mayor em tamanho minúsculo. Do poeta plagiador de Camões, jaz a um canto a sua estátua, sóbria, de uma discrição quase irritante. No cimo, o castelo «Korrodi», sobrevoado por errantes bandos de andorinhas, surge iluminado de graça suave, no introito de mais um final de dia. Pelas ruelas da antiga Judiaria, magotes de jovens tenrinhos, estudantes dos inúmeros estabelecimentos de ensino superior que cercam a cidade, demandam a zona histórica à procura dos bares e da felicidade de mais uma noite de folia. Não tarda, o resto de Leiria, a parte menos jovem, vai dormir, e eu também. *

* Primeiras impressões sobre a cidade de Leiria. 
Leiria - Junho de 2006

domingo, 21 de maio de 2017

Na praia




Prezo muito a doce penitência dos pescadores solitários, fiéis, sempre, junto à sua cana, vigiando o dançar periclitante da linha, como pastores vigilantes de um rebanho de peixes, num prado eterno feito de mar. De quando em quando, desviam os olhos do horizonte e rodam o carreto de nylon verde, ensaiam um lançamento longo, mais junto às rochas negras forradas de algas, em águas mais afortunadas, onde os cardumes se alimentam.

As canas estão fincadas na areia, em suportes próprios. São artes antigas, instrumentos pontiagudos que vão adelgaçando à medida que se aproximam da extremidade. Do lugar donde as vejo, sempre que o vento clama mais forte os seus caprichos, curvam-se com graciosidade, como bicos de tucano. Ao seu lado, muito perto, baldes vulgares, repletos de água do mar, servem de depósito a peixes que já não nadam: jazem argênteos, no fundo, numa quietude de impressionante morte fresca, mas a vibração da água, por breves momentos, parece que os vivifica; mas é mentira.

Sigo sempre no sentido contrário à zona dos chapéus-de-sol, caminhando contra a luz. Fujo das áreas concessionadas, das barracas «Olá», laranja e escarlate; das cadeiras «Pepsi» azul noite. Raspo-me das areias movediças da mundanidade, pelejada de gentes, pauzinhos de gelado, caricas, beatas de cigarros e beatas da vida. Quero-me na praia onde não pontificam os vestígios humanos – não quero «ser-humano» – na língua da areia onde o mar suserano, em frenesim, sem parcimónia, traga despojos de presenças alienígenas (a mim).

Tenho a caneta bem fincada na areia, um pouco acima da linha da vazante, abrigada da rebentação. É uma caneta cinzenta, paper-mate, uma flexigrip ultra, chiquérrima, aborrachada, daquelas que não magoam os dedos, mas, por vezes, magoam a alma. Ela é muito mais pequena do que as canas que observo em meu redor.

Os pescadores distam a alguns metros de mim. Estão dispostos ao longo da praia, em espaços intervalados, cinquenta metros distantes uns dos outros. A minha flexigrip não verga na ponta quando a brisa entorna mais densa. As canas sim.

Aguardo a chegada dos advérbios frescos, de olhar esbugalhado; das frases coragem; dos parágrafos comestíveis, dispostos a disputar-me o domínio, mas eles não vêm. De tempos a tempos, olho para a ponta esférica e aguçada da minha flexgrip. Um raro movimento, um estremecer por breve que seja, enchem-me o coração de esperança e brilho azuláceo. Agora o silêncio. O som do mar. O piar absurdo de uma gaivota que se afasta. As franjas brancas das ondas, ao longe, que aparecem e desaparecem. Um navio a fingir, no horizonte.

[Sempre quis ter uns óculos de sol da cor da felicidade, pois já tenho um chapéu da cor do mar. O mar existe?]

Passaram por mim duas mulheres com os corpos densamente povoados de desejos. Os pescadores não pestanejaram. Permaneceram quedos, os olhos postos no horizonte brilhante. Esperam. Desenleiam as linhas das canas como quem desembaraça os escolhos da vida. Os chumbos estão pendurados no nylon verde como pêndulos de relógios de cuco antigos – O Pêndulo de Foucault não é de chumbo.

Cheira-me a abandono e sinto arrepios de luz pela espinha acima. A felicidade é um acontecimento. Dizem-me que não a devo procurar mas sim esperar. Às vezes canso-me.

A minha flexigrip continua hirta, espetada na areia como um soldado perfilado na parada, mas a borracha que a envolve parece ter amolecido. Começa a desfazer-se, pingando gotículas de talento derramado que o mar depressa engole. Os veraneantes, lá longe, parecem vultos pré-fabricados. Movem-se em constância: para lá, para cá, para lá, para cá.

Os pescadores são agora sombras recortadas na contraluz e, com o dedo indicador, acompanho o recorte da silhueta de cada um deles, que me cabe na palma da mão. Os peixes – ainda aguardam por eles – de quando em quando, deixam-se morrer para viverem, ainda que por instantes, dentro de nós. Nós vivemos. Eles não.

Coloco o meu estetoscópio de sonhos e ausculto o pulsar das emoções que me rodeiam. Tomo o pulso à vida, paciente, e peço-lhe com delicadeza que abra a boca e faça: «Ah!». Vi a língua da vida! Ena! Que sensação! De seguida, agarro na minha máquina de fotografar ilusões e proponho-me captar momentos genuínos – um completo desastre! Fico-me pela película da memória. Apetece-me fugir.

Guardo a minha flexigrip, ou o que resta dela. Torno a casa com o mesmo peso com que cheguei. Concentro-me no regresso ao trivial, que é onde a maior parte das coisas se movem e estão à vista de todos. Basta-me sacudir toda esta areia de perseverança, que me incomoda, colocar a pequena mochila às costas e pôr no semblante o sorriso que sempre guardo para os momentos em que me quero parecer com os outros.

Não me despeço dos pescadores, nem do mar, nem do céu, ou da areia. Parto sem olhar para trás, pois sei que as despedidas deixam-me sempre angustiado. Um dia voltarei e, dessa vez, trarei uma cana a sério, muito isco, balde, e tudo o que é necessário para pescar. Por ora, só quero tornar a casa com os pés calçados de subtilezas, antes que cheguem as parábolas da noite e me perguntem o que é feito da minha farta pescaria.



Leiria - escrito no verão de 2006

quinta-feira, 18 de maio de 2017

Olhar de menina



Gostava de saber chorar como tu choras encostada ao ombro de alguém, com um olhar de menina que não chega a ser um olhar de desculpas pelo que fez, mas um olhar de certezas e de direito por chorar. Gostava de me comportar contigo como fazes comigo. Com uma ternura austera que me prende mas nem sequer desafia.

Por vezes empreendes um espírito distante que me deixa completamente impotente. Nunca serei capaz de te dizer que não, se quiseres que seja sim, nem vice-versa.

Às vezes rio-me do que dizes. Pareces-me ingénua e irracional e pergunto-me, por quanto tempo serei capaz ou poderei continuar a sentir-me apertado, como se toda a atmosfera me comprimisse contra mim mesmo pela tua imagem.

Olho para ti e penso que te conheço tão bem, como se existisses desde sempre comigo. Que nunca poderás ter uma reação que eu não possa prever.

Apetece-me dizer-te tudo o que sei e não sei sobre ti...

Porém, só posso ter a certeza de que te conheci e que os momentos passados estão assegurados. Já tinha desejado conhecer-te. Que passasses por mim e soubesses que eu não era igual aos outros. Que existia.

A ideia de que te atraio e conheço é cimentada cada dia que passa. Como se fosse uma parede que lentamente se vai erguendo a cada tijolo que é posto e um dia me condicionará a vista. Temo este muro apesar de continuar a construí-lo. Sei nitidamente que sou eu quem o constrói.

Sei o teu nome, vigio-te os gestos, os olhares, tudo. Quando não estás faço suposições acerca do que dirias, do que farias. Reconheço-te a voz, o andar, o toque macio da pele, a respiração, o olhar calmo, o espírito inquieto que ninguém pode adivinhar. Pergunto-me se valerá a pena aproximar-me ainda mais desta miragem.

Por vezes imagino que nas ruas da cidade há uma pessoa perigosa escondida atrás de uma esquina para me fazer mal. É assim que te imagino. És tu a pessoa perigosa.

Em cada paixão há frascos de veneno que são postos em copos com água, que nos é dada a beber quando menos esperamos. E depois perguntamos, porque é que não segurámos um pouco mais a sede? Porque existem erros de sincronização entre o racional e o prático?

Eu queria ser uma criatura inteligente, criada a partir do e para o cérebro. Para a idealização e celebrização das ideias. Lamento não o poder ser. Queria ser envolvido pelo teu olhar cúmplice, pelos teus braços, sentir-te o hálito quente e ficar assim pacientemente para a eternidade. Sacrificar tudo. Nunca mais sentir a humidade do inverno nem o calor excessivo do verão.

És sobretudo, penso agora, a minha maior dúvida, tudo aquilo que gostaria de resolver. Procurar-te naquilo que me mostras e acabar por te descobrir naquilo que inventei.

Consideras que o pior defeito que tens é suportar a solidão. A enorme capacidade de não teres pessoas contigo. Orgulhas-te de ser humilde. Eu orgulho-me de me fazer e conseguir rodear de pessoas, quando preciso disso.

Gostaria de ficar a noite toda a escrever acerca de ti e para ti. Venerar-te mais. E fico triste pela incapacidade de o fazer, de o poder fazer, ainda que parcialmente nestas folhas. Só queria que antes de fechar o caderno batesses na porta - entra, diria eu - e me abraçasses como se abraça um menino, com a maior ternura que possa existir.

Mas as ilusões são comédias demasiado duras. É angustiante sentir-se que uma pessoa apenas nos dá a caridade de mantermos um sonho, perpetuá-lo, até que chegue a altura de o desfrutar.

Esperas pacientemente pela velhice. Eu gostaria de ser eternamente jovem. Poder cá estar quando tudo for diferente e fascinante. O passado é isso mesmo, só passado, só fascina os incapazes. Esses terão sempre medo do futuro porque não gostam de incertezas. Eu estou sempre à espera do futuro, sempre com os olhos postos naquilo que há-de vir. Eu queria viver no futuro porque nada me fascina daquilo que conheço. Estou sempre a querer andar depressa, de tal modo que às vezes me sinto obrigado a recuar para não sair do contexto.

Acaba por ser uma necessidade saber que não se está só. E que ainda avistamos os outros ao longe, mesmo que sejam apenas pequenos pontos quase a confundir-se com a linha do horizonte.

Queria falar contigo. Dizer-te como gosto de ti e como é tão fácil gostar. Seria tão difícil magoar-te. Mas não digo nada. Não o faço. Todas as palavras pareceriam fazer parte de um discurso ensaiado à entrada de um palco. E és tu quem prepara todo o processo da representação, com olhos e gestos cúmplices que parecem enlevar a sedução ou fascínio que me reservas. E eu confio-me a esse espetáculo quase exuberante que me preparas. Assumo o meu papel de ator que nunca representa, nem sequer conhece o papel que lhe cabe, que inventa a cena e o cenário. Crio e destruo situações efémeras, como um arrepio que passa. Depois, em silêncio, dedico-te tudo: cartas, poemas, desenhos. É quase uma vingança que guardo no lado mais obscuro e ao mesmo tempo mais nobre do génio. Por pouco que eu o seja.

quarta-feira, 17 de maio de 2017

Doce fantasia


O teu rosto era imaterial como o de uma virgem de Frei Angélico. De joelhos, em frente do altar do teu leito, oferecer-te-ia o sacrifício do meu amor. Nua do peso da carne, minha alma beberia delicadamente o néctar das tuas escondidas lágrimas. Não te assustes, querida. Aonde nos conduziria o vendaval do medo? Lembro-me do tempo em que o nosso amor arrulhava melodias azuis e róseas no silêncio dos nossos corações, ainda maravilhados do nosso encontro. Agora, a tua face, como a dos anjos e das virgens, reflete a ausência de carne. Não te assustes, querida, com as pequenas aves que andam sempre aos pulinhos na minha varanda. Elas gostam da minha casa, não sei porquê. Juro-te que, um dia, os teus olhos serão novamente iluminados pela jóia da vida e na ramagem azul-pérola do nosso amor florescerão, mais puros ainda, os nossos beijos. Quanto mais desenganos vejo no mundo das realidades, mais sublimes sinto as tuas mãos, a tua cara e o teu pensamento. Parece que do mundo que tinha imaginado, ficaste só tu; como se fosses tu este mundo e o resto somente quimeras. E este mundo que sobeja para mim, e que és tu, tornou-se superior ao que eu poderia imaginar. Somos duas malvas-rosas num jarro, adormecidos num estranho torpor, como agonizantes silêncios de cor. Já só sinto, cada vez mais ténue, a tua respiração ofegando dentro de mim. Sei que a tua pessoa está algures no cetim do firmamento e, por vezes, brinda-me com a sua presença através dos raios da lua prateada que odoram o beiral da minha janela. E, na minha varanda perfumada da tua luz, o meu olhar, de um salto, pousa em ti, beijando-te o rosto e as mãos. Parece que ainda sinto os lábios húmidos da delícia dos teus beijos. Doce fantasia!

Memórias de um puto xarila




Às vezes penso em Almada, a cidade da minha infância e juventude, a urbe onde saboreei os primeiros gostos e desgostos da vida, o Frei Luís de Sousa, o afamado externato onde frequentei o infantário e a primeira classe; e, mais tarde, o ano propedêutico, logo substituído pelo 12º ano, numa das maiores reformas do ensino do meu tempo.

Se fechar os olhos e me concentrar, consigo razoavelmente viajar no tempo e vislumbrar um puto vestido com uma bata azul, com um monograma com as letras RJ bordadas no bolso direito, um remoinho teimoso aprestado no cabelo, magrinho, baixote, enfezado, trajando calções justos e com uns caricatos sapatos de atacadores vermelhos nos pés. Esse puto xarila sou eu. Sempre a piscar os olhos, um tique que ainda hoje me habita, e a pestanejar por causa da luz insuportável do sol.

Com uma mala de cabedal afivelada às costas, parece que o estou a ver a caminho da escola, acompanhado pelo batuque ritmado produzido pela caixa de madeira, onde guardava os lápis, as canetas, o compasso e as réguas, a soar contra o interior da mala. Usualmente, acertava o passo por essa batida familiar.

Vivia-se o glorioso tempo das borrachas de cheiro que, além de servirem para apagar os erros, também espalhavam odores e sabiam a frutos diversos, que se cheiravam e, não raro, também se degustavam. Era o tempo das batas obrigatórias e das fisgas fabricadas com elástico de avião, das criadas arregimentadas na província, imaculadamente fardadas, que iam levar os meninos ricos à escola; das crianças que não usavam sapatos, mas possuíam calosidades tão espessas, que faziam inveja aos cascos de muitos equídeos. Uma época em que os ciganos roubavam o lanche aos meninos ricos, os berlindes multicolores, as moedas que lhes conseguissem sacar dos bolsos e os piões com que se faziam habilidades impressionantes - tornei-me um especialista na arte do pião, mais do que no futebol, desporto que nunca dominei. Era essencialmente o protótipo do puto solitário, fechado no meu pequeno mundo onde, diferente do não voluntarismo de um autista, criava conscientemente espaços interditos aos outros.

Muito por culpa da Enid Blyton, montava casas no cimo da copa das árvores, levava para lá livros, bolachas, uma almofada, lápis e papel para escrever, tudo acessórios capazes de me entreter durante uma tarde inteira. Era o puto xarila voyeur que gostava de observar do alto dos ramos, na segurança da folhagem espessa, tudo o que se passava lá em baixo, com a granítica certeza de nunca ser visto. E a sensação de poder que isso dava! O puto xarila que se deleitava a desviar carreiros de formigas com um pauzinho e que observava, com um espanto continuado, a forma como elas conseguiam, em perfeita união de esforços e coordenação, transportar um gafanhoto morto, com várias dezenas de vezes o seu tamanho e peso.

Também me lembro de seguir pessoas, escolhidas ao acaso, sem critério, numa qualquer rua da cidade e anotar a sua descrição física, onde moravam, e, quantas vezes, ter de fugir a sete pés da sua fúria, sempre que era descoberto a armar-me em sombra; furtar smiles e rebuçados no Pão de Açúcar de Almada, até um dia ser apanhado em flagrante e passar pela vergonha de ser resgatado pelo pai, com um puxão de orelhas e uma séria advertência - o pai, que até era amigo pessoal do chefe da polícia!; levar um ou dois despertadores para as sessões de cinema da meia-noite, na saudosa Incrível Almadense, e a meio da cena mais intensa - geralmente um daqueles filmes de terror série B, mais que rodados, cheios de estalinhos, tipo batata-frita e cortes - pôr os despertadores a tocar em simultâneo, provocando o quase desmaio de algumas espetadoras e o riso inevitável dos restantes.

Não têm fim as memórias do puto xarila e elas surgem às camadas, umas vezes em catadupa, outras por efeito de associações fruto do momento. Acabei de contar apenas aquelas que hoje me vieram no imediato à mente, numa espécie de brainstorming, sem peias ou crivo, mas muitas outras, se não a maior parte, estão a marinar na minha mente, entorpecidas, até um dia conhecerem a luz do dia...Não é verdade, puto xarila?

sábado, 13 de maio de 2017

Nostalgia



Sempre que vejo retratos, quando sinto cheiros - embora eu já quase tenha perdido o odor de outrora - quando relembro uma ou outra voz peculiar, quando fecho os olhos e deixo o meu pensamento vaguear, tenho saudades de tudo o que de positivo marcou a minha vida.

Sinto saudades de amigos, que nunca mais vi; de pessoas que nunca mais encontrei; sinto saudades da minha infância; sinto saudades do presente que não aproveito de todo, do futuro que, se idealizado, provavelmente não será do modo que eu penso que irá ser. Sinto saudades dos que se foram e de quem não me despedi, daqueles que não tiveram como me dizer adeus.

Sinto saudades de tantas coisas boas...

Sinto saudades de uma gata angorá, com quem convivi durante nove anos e que gostava de mim incondicionalmente, como só os animais são capazes; dos livros que li e me fizeram viajar por paragens longínquas sem sair do mesmo lugar; das músicas que ouvi e que me fizeram sonhar; das coisas que vivi e que deixei passar, sem as ter gozado na sua plenitude, por incúria, imaturidade desperdício puro.

Se sinto assim tantas saudades é sinal de que (ainda) me sinto integral e vivo. É porque esperanço reincidir em muitos momentos felizes, pese embora já não forrados com o imaginário próprio de uma idade nefelibata.

Mas a vida pulsa-me nas veias, porque, se nós quisermos, ela é um permanente acontecer, traga-nos ela o que nos trouxer. Depreciamos o mau e superlativamos o bom; e viver torna-se o máximo! Chama-se a isto equilíbrio, 'keep the balance', como dizem os psis.

Até que me provem o contrário, não conheço coisa melhor do que viver!

(excerto de um longo texto escrito há cerca de 10 anos, algures no Barreiro)

O apanágio do escrevente sobrevivo




Durante imenso tempo ficou incapaz de escrever uma linha que fosse. Começava a escrevinhar e logo parava. Tentou pensar em algo que lhe desse prazer contar, resolver-se por um tema que o aliciasse, agarrar uma trivialidade do quotidiano, um mexerico que fosse, e explorá-lo como se tratasse de um filão inesgotável, mas parecia não haver nada que lhe despertasse a vontade de acender um texto. Sentia, com uma intensidade nunca antes experimentada, o horror da lauda em branco e as ideias não lhe fluíam. Eram mais as frases que apagava do que aquelas que conseguia manter; e, mesmo essas, não duravam muito, pois começava a modificá-las a tal ponto que acabava também por as erradicar, sem que chegassem a ser luz duradoura com consistência suficiente para alumiar um escrito.

Via-se como o pianista que se lhe entorpeceram os dedos e já não consegue fazer soar notas nas teclas, teimando deitar culpas ao piano que não presta, ao assento que é desconfortável, a um ruído exterior que lhe abala a concentração. Então, abandonava-se durante minutos, que lhe pareciam laivos de eternidade, vagueando o olhar no ecrã em branco, até que a luminosidade sem matizes lhe fazia perder as forças para continuar.

Depois, apagava tudo o que luzisse em seu redor, despia-se, metia-se na cama, envolto num cordame de lençóis de sonhos, e tentava dormir embalado por músicas que escolhia por soltarem halos de inocência e serenidade.

A tristeza surgia-lhe logo pela manhã, pontual, incontornável. A princípio era uma coisa tímida, sorrateira, ensonada, mas de seguida, já mais afoita, entrava com à vontade e pujança triunfal nas caves da sua alma, agora exausta por excesso de vacuidades. Escrever em público sobre o sofrimento que o assolava afigurava-se-lhe um pecado de exibicionismo moral e hesitava entre fazê-lo ou quedar-se para sempre no silêncio.

Pensou mudar de vida, dedicar-se à especulação imobiliária, ao comércio de antiguidades, ao negócio livreiro; enfim, a qualquer coisa que servisse para o convencer de que o néctar da sua imaginação se tinha esgotado. Porém, não consegui e voltou a escrever. E desta vez escreveu sobre a lua, personificação de muitos dos seus caprichos, astro que amiúde o olhava através da janela, depois de descer sem ruído da escadaria de nuvens e sussurrava-lhe: «Gosto de ti, criança!»

sexta-feira, 12 de maio de 2017

Hélio Isidoro Catalão Marofas




Chamo-me Hélio Isidoro Cassiano Marofas. Nunca gostei do meu nome. Quando me perguntam o que faço na vida nunca sei ao certo o que responder. Sou fazedor de códigos. Tirei uma licenciatura em jurisprudência há mais de trinta anos e, passados que foram mais de vinte anos de ensino público, dediquei-me a esta tarefa inglória. Atualmente é com isto que governo a minha vida: compilo legislação, recolho leis avulsas, reúno coletâneas, plagio códigos e limito-me a oferendar-lhes um preâmbulo cujo título começa invariavelmente pelas mesmas palavras: nota do autor. O autor não pode ser a minha pessoa, como é evidente; e é aqui que começa a desonestidade inteletual e a trama da culpabilidade que se desenrola dentro de mim.

Arrogo-me autor de leis arquitetadas por juristas cujas identidades se perdem no tempo, diplomas que foram mais tarde modificados por outros; gentes que labutam no anonimato nos gabinetes esconsos dos ministérios e cujos nomes nunca vêm à ribalta. Tenho a ousadia de fazer editar códigos jurídicos com o meu nome impresso na capa, como se tratassem de realizações saídas da imaginação e labor de um autor de prosas. Sirvo-me indecentemente dos meus estafados pergaminhos académicos e das influências que granjeei junto das editoras da especialidade, para juntar umas patacoadas, a título de intróito, e dar a uma coletânea legislativa o privilégio de me ter como seu pretenso progenitor.

Os meus colegas dizem-me para não me sentir assim. Dizem eles que até um código carece de alguma humanidade e é um beneficio que se concede à aridez das regulas dar-lhes um nome, uma paternidade. Ganho bastante dinheiro com este mecanismo fraudulento e sei de antemão que é o meu nome que vende e não a qualidade da falácia do meu trabalho – que nem existe!

Moro só e tenho caspa abundante no cabelo. Já fiz sessenta e dois anos e não tenho mulher, filhos, nem pretendentes a uma coisa ou outra. Sou aquilo que se pode chamar um homem desinteressante, credenciado pela mediocridade institucional de uma escola de propaladores de doutrinas alheias. Aprendi, como todos, a arte e o engenho da reformulação, a dar a entender que aquilo que escrevo é algo original e não a redundância clássica do lente universitário que precisa inaugurar uma escola para sobreviver como tal.

Atualmente estou de férias na Patagónia, planejando mentalmente um homicídio, ou talvez isso seja só um desejo insano que nunca terá concretização. Nem sempre o corpo docente de uma Universidade se anima de boas intenções. São conhecidas as rivalidades, os extremos da maledicência, a teia da intriga em que se desenvolvem e encontram-se aí exemplos de baixeza sem par, mantidos sotto voce, felizmente ignorados pelos discentes e pela gente em geral. No entanto, os casos em que se resolvem por homicídio são, quero acreditar nisso, bastante raros, constituindo uma exceção. Não gostava de ficar conhecido como o professor assassino mas, por outro lado, o que tenho eu a perder?

Um colega mais novo, cheio de mestrados e doutoramentos obtidos em universidades americanas, anda a arruinar-me o negócio próspero das edições. Será que ele não se apercebe que nestas coisas há monopólios, uma primazia tácita dos mais velhos face aos que ainda não chegaram às luzes da ribalta e à maturidade de um final de carreira?

A vingança não é uma modalidade criminosa simples. É muito subjetiva. Fundamental na vingança é que o objeto do ódio tenha a perspicácia de dar por ela. Se cremos que nos vingámos e o outro prossegue na sua vida bonaçoso, indiferente, então não nos vingámos. Isto implica um conhecimento profundo do sujeito de quem pretendemos vingar-nos. Mas o que é o nosso conhecimento do outro senão um caos de interpretações, de pressupostos, de hipóteses, de mal-entendidos, pousados eles mesmos sobre uma série de omissões, máscaras, de silêncios, de vazios? É um estranho conhecimento, uma quase ignorância. Não é o medo da retaliação que me impede de me vingar dele. É antes este aspeto contingente.

Quando regressar destas férias auscultarei a minha real vontade. Para já, faltam quinze minutos para a meia-noite e não quero perder por nada deste mundo a abertura dos Jogos Pan-Americanos. Já pedi que me trouxessem uma garrafa de rum cá acima ao quarto. O reclamo luminoso do hotel está quase a fundir-se e receio que não passe desta noite. Agradeço à divina providência que tal suceda, pois já não suporto mais a intermitência do néon abusando da paz interior do meu quarto noite dentro.*





* Buenos Aires - ficção escrita em 2006


A epístola que encontrei escrita no rasto de uma estrela cadente




Peço à luz que me guarde e me mantenha fora do alcance das sombras, pois sempre que me entrego às memórias das nossas imagens juntos a minha pulsação abranda. Já quase não escuto o bater do meu coração. Talvez que um dia tudo se desmorone, mas se eu for capaz de continuar a contemplar a beleza e a viver na esperança do amor, não sucumbirei, pois são as únicas justificações irrefutáveis do ser.

Gostaria de acelerar o decorrer do tempo mas consigo apenas eternizar o presente. Evado-me de tudo o que este me mostra, desinteresso-me. E o presente, vazio de qualquer encanto, parece-me aborrecido. O verdadeiro amor exige intrinsecamente situar-se numa dimensão que ultrapassa os limites do tempo. E amar não é mais do que a expressão desse desejo de eternidade.


Ainda que o nosso espírito se desvaneça no dia da nossa morte como uma faúlha que se liberta do fogo, teremos, ainda assim, conhecido a eternidade durante o tempo em que sentimos o amor dentro de nós. E a eternidade de que falo consiste tão simplesmente em aproximar-me dessa luz de vida que é a inextinguível presença do amor...por ti.




* Barreiro - 2000

quinta-feira, 11 de maio de 2017

Uma conversa particular


Não é fácil exprimirmos o que sentimos em todas as circunstâncias. Não é só um problema da língua, do ser difícil, traiçoeira, complexa, contraditória, ou tudo isso e mais alguma coisa. O dizermos, o que nos vai na alma, não passa de uma velha metáfora, despida quantas vezes de espiritualismo, mas pungente na nossa necessidade de afirmarmos, permanentemente, uma existência subjetiva e, de algum modo, transcendente em relação a uma entidade que nos espreita do outro lado do espelho; e que, tantas vezes, não identificamos nem reconhecemos como sendo a destinatária dos nossos expatriados pensamentos. O que nos vai na alma, ou, dito por palavras, o que sentimos, é um caudal iníquo e contraditório em que se misturam, de forma aleatória, quando não descontrolada, sensações, pensamentos, desejos, fantasmas, fantasias, medos vagos e outras coisas de igual ambiguidade. Os sentimentos propriamente ditos, aquele fluxo que medeia entre o amor e o ódio, a alegria e a tristeza, a tranquilidade e a inquietação, o desespero e a esperança, a inveja e a gratidão, habitam-nos como uma segunda pele e dão-nos, além do mais, algum sentido de existência e de coerência. Todos sabemos algumas coisas dos nossos demónios. Eu sei que preciso de fazer uma pausa para falar com eles - uma conversa em particular, como é evidente.

segunda-feira, 8 de maio de 2017

Pensamento à lá minute


Se acreditássemos piamente em tudo que se diz na imprensa escrita, na rádio e nos canais televisivos, viveríamos hoje em abrigos nucleares, não saberíamos que o sol continua a brilhar no planeta, crentes que estávamos que o mundo que conhecemos já tinha acabado de vez. Por mais pessimistas que sejam as previsões macro-económicas, por piores que sejam as estatísticas de crescimento económico, os cenários de aumento das desigualdades, da precariedade e do desemprego, que significado terá tudo isso perante a eminência da morte? Se retirarmos os óculos de fantasiar e olharmos para as coisas como elas são, logo veremos que o outono é o prenúncio do inverno e este, por sua vez, é o prenúncio da primavera. E, tal como as estações, toda a natureza das coisas obedece a esta fatalidade cíclica. Normal é que passada a tempestade venha a bonança e que depois da vida venha a morte. Para quê tanta preocupação se a vida é uma vela ao vento que se apaga com um sopro menos suave? Creio que uma das nossas maiores fatalidades é a de julgarmos que somos eternos, daí não conseguirmos enxergar a relatividade das coisas. Seriamos muito mais solidários, com um coração mais piedoso, se alguém conseguisse incutir-nos na cabeça, de uma vez por todas, que esta coisa de viver é uma passagem só de ida, com duração aleatória e sem bis no final.

(escrito algures num tempo que já não recordo)

domingo, 7 de maio de 2017

Derrames




Esta noite reservou-me uma experiência inolvidável, não porque tenha acontecido algo espantoso ou memorável e muito menos pela originalidade da situação. Mas foi o simples facto de estar ciente de que nunca antes o fizera, que me levou a sorrir interiormente perante o cliché da situação: a sensação forte de estar a bisar cenas cinematográficas e o quão ridículo de toda a representação. 

Cada vez mais, adoro rir de mim mesmo e divertir-me, inclusive com os pequenos ridículos que me integram; descobrir as minhas mais do que demasiadas imperfeições e trazê-las à luz quente do dia, cumprimentando-as com elegância e deferência, como se pelo simples facto delas existirem nenhum mal pudesse daí advir. 

As minhas metas de vida, no presente, são mais modestas, mas seguramente mais precisas e próximas da realidade possível. Já que a maior parte do nosso sofrimento advém da frustração de expetativas que criámos, com vista ao alcance de determinados objetivos que, posteriormente, se revelaram impossíveis de ser atingidos, há que abandonar a inflexibilidade como matriz e encarar, de uma vez por todas, a necessidade de ter um plano B ou C, fazendo da regeneração e da mutação fontes inesgotáveis de energia vital – possuir uma espécie de exército de reserva, apto a entrar em ação se as contingências assim o exigirem.

Muito a propósito, recordo Alberto Morávia, um dos romancistas que mais doirou o meu alvorecer como leitor e em especial um dos seus mais emblemáticos romances: "Le Ambizione Sbagliati".

Sempre me senti fascinado pela densidade psicológica dos personagens moravianos, num conflito latente, transversal com a mesquinhez, a ambição desmedida, o sarcasmo e tudo o que de mais sórdido há na natureza humana.

Também se cresce com as leituras, embora hoje seja para mim evidente que a experiência pessoal, mais do que a livresca, é a grande mestra. Desde que aprendi quão salutar é aceitar-me com as minhas enormes limitações, confesso, atirei às sortes do vento mais de metade das minhas misérias, vergonhas e complexos e já não vivo, nem quero mais, no limbo de desejos insanos que estou ciente não os poder materializar. Hoje sei, de fonte segura, pela lucidez que jorra, cada vez mais forte da torneira da minha experiência, que, pior que tudo, uma vez alcançados os objetivos a que nos propusemos, guindados pelas fasquias elevadas da nossa refinada vontade, não tarda, tudo se reinicia e a insaciedade reapodera-se de nós. Porque não determo-nos um pouco para "jogarmos" com os brinquedos que já possuímos, explorando-lhes as capacidades e aproveitando ao máximo as áreas mais soalheiras do quintal da nossa vida? O contentamento por vezes reside em coisas tão singelas, tão ao nosso alcance, que gastamos energias preciosas na busca incessante de "outras coisas", quando afinal temos bem pertinho de nós tudo quanto precisamos. Apenas carecemos dar mais valor e atenção ao que nos rodeia, porque a vida é efémera, porque o dom de ser nela participante é um bónus diário que nos é ofertado.

A experiência inolvidável que acima referi e que acabou por ficar por explicar, pois, uma vez mais, perdi-me na impudente tarefa de me arvorar o Deão da minha própria alma e enveredar por pensamentos sem regresso possível, não representa afinal nada de especial. Estava eu querendo dizer que levei o meu note book para cama – confesso que não foi muito difícil convencê-lo, pois acho, inclusive, que os computadores portáteis foram, de algum modo, concebidos para este tipo de licenciosidades –, abri-o sobre o cobertor mais grosso que me protege, o celebérrimo "Sogno Allegro" 200x240, 90% algodão - um agasalho transalpino que tem por logótipo um cartoon representando um casal com um ar demasiado intra-uterino, simultaneamente ensonado e feliz, trajando um pijama verde alface, chinelos no mesmo tom, a fazer pose frente a uma luazinha amarela em quarto minguante - e, umas vezes deitado de lado, outras de costas, com o computador sobre os joelhos; depois, já sentado na cama, apenas com dois almofadões a aliviarem-me as costas, lá consegui escrevinhar algumas coisas.

Já não sinto a atroz bigorna de uma tonelada e meia sobre a cabeça. Estou aqui para durar – e que seja a duração a escolher o tempo e o modo - mais intensamente do que muita gente que já se finou e ainda vagueia por aí como espetros ou representações do nada - quiçá não terão recebido a guia de marcha para outras paragens, mais aparentadas com o cinzentismo e conformismo biológico com que encaram a dádiva que é a vida.

Leiria - 2014

Amas-me porquê?



"Amo-te porque sim. Porque os teus olhos parecem dois favos de mel; porque as tuas mãos são ternas e quentes; porque os teus cabelos são macios como fios de seda; porque o teu sorriso é lindo e cativante; porque, na fímbria do teu olhar, e em ti em geral, descubro sempre coisas que me fascinam."

"E és sempre assim complicado a explicar o porquê de amares alguém, isto é, tens sempre que dar grandes explicações e não és capaz de dizer apenas: amo-te porque simplesmente gosto de ti?"

"Não, e acho que já faz parte da minha natureza, esta forma insurreta de complicar coisas convencionalmente simples e derramar palavras como se fossem jorros de água a brotarem de uma nascente.”

“És poeta?”

“Não. Porque perguntas?"

"É que a forma como te expressas…parece que tens muitas palavras dentro de ti que tens necessidade de as trazer cá para fora. Gostava de saber chorar como tu choras. Eu sou muito dominada do ponto de vista emocional. Acho que não choro desde criança."

"Mas, e se eu fosse poeta, tal mudaria alguma coisa? Gostavas que me comportasse contigo como fazes comigo. Com uma ternura austera que me prende mas nem sequer desafia? Às vezes rio-me do que dizes. Pareces-me ingénua e irracional e pergunto-me por quanto tempo serei capaz ou poderei continuar a sentir-me apertado, como se toda a atmosfera me comprimisse contra mim mesmo, pela tua imagem, pelo teu egocentrismo, pela forma como encaras o mundo: é ele que gira à tua volta e não tu que gravitas em torno dele."

"Cada pessoa é única e eu sou como sou, assim como tu és como és. O que interessa, ao cabo e ao resto, é que cada um de nós seja feliz na sua forma peculiar de ser.”

"Nisso tens razão. Fiquemos então por aqui..." 

sábado, 6 de maio de 2017

Edelweiss




Ontem, em Leiria, passou por mim uma mulher. Tinha os olhos perfeitamente azuis, como dois lagos profundos, os ossos da cara largos, os lábios desenhados e vivos, com um andar desengonçado e um indisfarçável ar germânico. Presumo que fosse alemã ou austríaca.

Recordei uma das minhas primeiras viagens feita há bastantes anos à Áustria. Em Salzburg, armado em saloio, fui visitar, entre outras maravilhas, o Palácio da família Von Trappen – um percurso lindíssimo pela montanha – e, tal como todos os camaradas turistas, engoli todas as historietas que a guia local, que falava um péssimo castelhano, entendeu contar – o meu alemão é deplorável e datado.

Edelweiss, sim é esse nome que tinha em mente, é uma flor que se pode encontrar no alto das montanhas e Alpes da Suíça, da França, da Áustria e da Itália. Desenvolve-se de modo espantoso nos cumes mais elevados da montanha e o seu nome significa "branco precioso", pois trata-se de uma linda flor em formato de estrela.

Dizem que quando se quer presentear alguém com algo que signifique amor ou amizade eterna, oferece-se uma flor de Edelweiss a essa pessoa, a flor eterna. Diz-se, também, que a sua duração, depois de seca, é superior a cem anos.

Tenho uma Edelweiss, dentro de uma caixa de vidro, adquirida há cerca de 18 anos numa loja de lembranças, em Salzburg, na Áustria, e, realmente, não noto que tenha ocorrido qualquer mudança na sua morfologia desde então. Hoje, mesmo, li – facto que desconhecia em absoluto – que a dita flor já é considerada Património da Humanidade, pela sua raridade e carga simbólica que encerra. Sei que a Edelweiss inspirou poetas um pouco por todo o mundo e uma das composições mais lindas e intemporais é essa que leva o nome da flor: "Edelweiss" - tão bela e emocionante quanto a flor. A música é da autoria de Richard Rodgers e Oscar Hammestein, e é realmente maravilhosa. Pertence ao musical The Sound of Music, de 1959, interpretada por Christopher Plummer, que todos quantos pertencem à minha geração recordam - " Música no Coração" e em "brasileiro", o nome mais foleiro com se podia batizar um dos filmes mais premiados de sempre: "A Noviça Rebelde".

Nem sei porque me saiu este lampejo de escrita às 06h00 da manhã...

Terapias - a alternativa




Se há algo que me conforta sempre que estou debruçado no varandim que dá para o interior de mim, são os momentos em que fecho os olhos e deixo-me invadir pela música. Os temas imemoriais de Mozart, Bach, Vivaldi, Puccini, Gershwin, Tchaikovsky, entre vários autores que tanto admiro, têm esse especial condão de transformar em leveza as máculas mais pesadas que infernizam a minha tranquilidade. A música clássica tem essa mágica: azula os negrumes que por vezes me assombram, com rasgos de felicidade que invadem e restauram a frescura e o esplendor vital que careço sentir.

O choro clamoroso dos violinos, os violoncelos, os cravos, as harpas, conseguem, ainda que por momentos, transportar-me até perto da amostragem do ideal de “mais belo” – a estética elevada à excelência – que há muito persigo como a meta daquilo que julgo ser a felicidade suprema: uma espécie de concórdia harmoniosa, de convergência universal, onde a mediocridade cede lugar à qualidade e o aperfeiçoamento é exemplo a seguir.

Esta musicoterapia, que augura boas sensações, pouco tem de inovador. Há muito que se apontam as propriedades benéficas da audição de certas músicas no espírito humano e também no comportamento animal. Basta relembrar-nos das experiências obtidas em vacarias no que respeita à qualidade e aumento do leite produzidos. A diminuição do stress faz com que as vacas produzam mais e melhor leite e já há explorações pecuárias, em certos países da União Europeia, onde é comum entrar numa vacaria ao som de uma Rapsódia de Rachmaninov ou da Ave Maria de Schubert.

Já se fala da hipoterapia, ou da capacidade dos equídeos favorecerem a cura de certas maleitas do espírito e de doenças do foro cognitivo em crianças, a par talassoterapia e da oftalmoterapia, entre tantas outras técnicas inovadoras e revolucionárias.

Mas todas têm um objetivo comum: o coadjuvarem os tratamentos conducentes ao bem-estar e à descompressão, provocados pela violência antinatural da sociedade moderna, perfeita na criação de criaturas autómatos, monstros desprovidos de criatividade ou capacidade de autodeterminação.

Nós, ou alguns de nós, onde eu me incluo, não estamos impermeabilizados contra a violência extrema que representa a obrigação de desempenhos quotidianos que pouco ou nada tenham a ver com as nossas formas naturais de expressão. E é por vezes esse choque de contrários, esse dilacerar de vontades – ato de violência reiterada que nos obriga a fazer algo completamente desajustado da nossa vocação natural - a fonte mais ignóbil dos nossos maiores padecimentos.

[Nunca fazer cedências totais às provações (incontornáveis) impostas ao EU, mas, pelo contrário, preservar intata, custe o que custar, a capacidade de expressão do «ser genuíno» - aquilo que vale!]

É esta, porventura, a condição de coerência que julgo ser necessária para a sobrevivência nesta sociedade poluta, que esmaga com regras ditosas que não escolhemos, mas que, para o bem e para o mal, é nela que habitamos e é a ela que temos de nos adaptar ou... ensandecer.

É à música, que amiúde oiço e me diviniza, como um astro luminoso grafado com a maiúscula de Sol, que devo esta homenagem: uma núbil estrela da beleza, esmaltando de oiro e calor de aconchego o fiar dos dias menos azuis, que teimam, por vezes, anuviar os momentos em que a contrariedade em mim prevalece.*



* Uma janela com vista para o mundo - Leiria- 2013

sexta-feira, 5 de maio de 2017

Tempus fugit


Ocupamos de tal maneira o tempo que passamos na vida, que ficamos com a sensação de que ele não chega para nada. Nunca temos tempo suficiente para fazer tudo aquilo que queremos. No entanto, quando ousamos parar um pouco, talvez, no fundo de nós, algo nos pergunte: Para quê esta pressa, esta necessidade de fazer tantas coisas? O que é que, afinal, isso me traz de importante?; e, sobretudo, onde é que acaba por me levar? 

Uma das grandes preocupações do nosso "estilo de vida moderno" é não perder tempo. Aproveitar ao máximo todos os minutos. Chegar a tempo, ganhar tempo, mesmo sem saber de quê nem para quê. Quando não havia eletricidade, aquilo que fazíamos era mais comandado pela luz do sol do que por outras pressões exteriores ou obrigações a cumprir - embora muitas das criações mais geniais da literatura universal tenham sido escritas à luz de candelabros de velas ou de lamparinas de azeite. Mas é um facto que o dia era mais vivido enquanto tal, e a noite mais sentida como noite. E pela existência dessa dicotomia recortada, desses tempos opostos e complementares, tal permitia-nos descansar e ganhar um maior equilíbrio.

Acontece que o tempo não se perde nem se ganha, ele simplesmente passa e a única coisa que nos convida é que o aproveitemos, não no sentido de fazer o maior número de coisas possíveis, mas de o gozar nas atividades que maior prazer nos proporcionem.

Deleitar-nos com detalhe numa atividade, fica muitas vezes prejudicado pelo afã de querermos fazer muitas coisas. E às vezes esta necessidade frenética de nos mantermos sempre ocupados, mais não é do que uma forma sub-consciente de anestesiarmos pensamentos, infelicidades, ausências, e/ou colmatarmos carências de outra ordem. O melhor que temos a fazer é aproveitarmos para dar um novo rumo à nossa vida, esquecendo, ainda que por instantes, que ela é finita, e concebendo os nossos sonhos como concretizações ainda capazes de ter lugar na réstia do tempo. Mas para tal é necessário apelar à coragem, à incomodidade, pois sem estes atributos a funcionarem em pleno não conseguimos mudar seja o que for.






quinta-feira, 4 de maio de 2017

O que é o amor?




Quantas vezes já alguém terá tentado definir o que seja o amor? Acho que não devem ter conta os ensaios escritos para a definição correta do vocábulo, e muito menos as tentativas para explicar o conceito. Por isso, perante reflexões bem mais aprofundadas que já foram proferidas sobre o assunto, não tenho a veleidade de me achar capaz de ser o arauto de uma interpretação mágica, finalistica, nem tão pouco pretendo com estas palavras inovar no que já foi dito por tantos ao longo dos tempos. Trata-se tão-somente das minhas preleções sobre o tema - um assunto que me é muito caro - e talvez seja isso o que me importa.

Amar uma mulher é um dos sentires que me faz mais feliz. Não tenho dúvidas sobre isso e, se algum dia as tive, com o avanço da idade, da experiência que tenho acumulado com o rolar dos anos, cada vez me convenço mais da certeza desta afirmação. É, porventura, das poucas certezas que nesta idade ventruda alicercei como uma certeza inabalável: o amor é redentor.

Ainda há pouco tempo - uma afirmação que me era muito grata e que creio ser da minha lavra genuína, escrita em algum dos muitos textos que por aí vou deixando espalhados, pois não recordo de a ter lido onde quer que fosse - dizia eu a algumas pessoas com quem entabulava conversas mais profundas, que não sabia ao certo o que queria da vida, mas de uma coisa estava sempre certo: sabia sempre com clareza enunciar aquilo que não queria fazer, que não queria que me sucedesse, os caminhos que não queria trilhar.

Acabava por ser uma postura algo redutora, pois há coisas que não queremos, por julgarmos que elas são fonte de infelicidade e acabamos por descobrir que, afinal, elas são potenciadoras de alegrias que nem suspeitávamos vir a poder sentir.

A certeza da relatividade das coisas, o abandono de posições demasiado extremadas, uma tolerância maior que nos surge sem ser anunciada, tudo são sinais de sapiência e maturidade, ganhos com o rolar da idade.

Hoje, acho que estou em condições de poder afirmar, com segurança e convição, que quero dar e receber amor e que essa permuta é a permissa irrevogável da minha condição de homem feliz e criatura maiúscula. Mais do que tudo, sem descurar a boa saúde, a satisfação das necessidades que considero essenciais, sei que sem amor - amar e ser amado, entenda-se - sou um ser amputado, uma espécie de planta sem nutrientes, que vai murchando de dia para dia e sobrevive por mero desígnio do acaso, à sorte da misericórdia de umas gotas de água que mal lhe chegam ao caule.

Para mim, os dias felizes são azuis. Claro que isto não passa de uma opinião. Haverá quem defenda os dias plúmbeos, com maciços de núvens baixas a ameaçar que o céu nos vai mesmo cair em cima da cabeça. E haverá, seguramente, quem se renda aos dias chuvosos e escorregadios que transformam as casas aquecidas em portos de abrigo seguros e tranquilizantes. Para mim, insisto, os dias felizes são os dias azuis; e espero por eles, choro por eles, ou vou à procura deles onde quer que eles estejam, às vezes bem longe de mim...

Há muitos géneros de amor. Acho que nisso todos estamos de acordo e, de uma forma geral, sabemos distingui-los. Mas, referindo-me mais em concreto ao clássico amor entre dois seres humanos, quando será possível termos a certeza de que o sentimento que nos assola é de amor e não de outra coisa qualquer, partindo do pressuposto que já sabemos o que ele é e, em consequência, conseguimos reconhecê-lo? A dúvida corróis-nos e ensaiamos definições de amor, paixão, química, deslumbre, com a mesma necessidade do rótulo que o analista tem de conferir aos seus pacientes.

O amor é um sentimento muito forte. Talvez seja o sentir mais intenso de que somos capazes, embora haja quem diga que o ódio ainda consegue reverberações maiores. Sobre este último não me pronuncio, pois acho que nunca odiei alguém, ou se tal aconteceu não durou mais que instantes. Quando me magoam imenso, é sempre a indiferença que se encarrega de me apaziguar, pois tenho o condão de «liquidar» as pessoas que me são hostis, ignorando-as e fazendo com que se mantenham longe ou desapareçam do meu horizonte visual e do meu pensamento. Desprezo, afasia, indiferença, são estados de alma que aprendi a gerir com mestria e sei que o tempo encarra-se de transformar a minha dor presente nalgum destes sentires, ou em todos em simultâneo.

Querer muito uma pessoa, desejá-la sexualmente, sentir uma ternura e uma vontade irreprimíveis de estar perto dela; ter vontade de lhe fazer bem; preocupar-se com o seu bem-estar; com tudo quanto lhe diga respeito; admirá-la; possuir uma vontade de partilha quase integral; gostar das suas virtudes - e até dos defeitos - é, quem sabe, um estado muito próximo daquilo que entendemos ser o amor; e muitos de nós, felizmente, já o experienciaram.

Sem querer, ensaiei uma definição, embora algo tosca, daquilo que é suposto ser o sentimento de amor entre um homem e uma mulher, ou entre dois homens e duas mulheres, que a diferença não existe, e confessei a importância que esse preenchimento tem para mim.

Amar é sublime. É, talvez, o sentido da vida que muitos procuram no lugar errado e, por vezes, está tão ao alcance de cada um de nós. Basta ser bom.