sexta-feira, 31 de março de 2017

O principio do prazer

Há momentos em que as palavras não passam de ruídos inúteis e nem merecem ser escritas. Mas é aí que entra o prazer; como por exemplo o prazer de escrever; ainda que seja para dizer quase nada. Há quem pense que existe, de uma forma geral, uma grande simplicidade nos humanos, e que estes orientam o seu funcionamento e o seu esforço para obter prazer a qualquer custo. Prazeres imediatos como aqueles que os sentidos proporcionam: o comer, o beber, o dormir, o ter relações sexuais - todo um conjunto de processos que os sistemas biológicos utilizam para se manterem em homeostasia. Depois, conclui-se que alguns humanos têm o gosto do detalhe, quando não da complicação. Esses prazeres sensoriais que passam pelo odor, pelo paladar, pelo som, pelo tátil e pelo visual não são necessariamente grandes prazeres em si mesmos. Costumam mesmo rodear-se de rituais complicados que não só acrescentam sentido como parece que, em alguns casos, são o próprio sentido. O prazer é pessoal e intransmissível, e há prazeres que são mais bem vistos do que outros. Mas os melhores prazeres são, sem dúvida, os diferidos, mediados pela capacidade de realização, de controlo e de adiamento, por contraposição aos outros, os instantâneos, que se obtêm com facilidade e se esquecem com rapidez. Felizmente que as fontes e os objetos dos prazeres vão mudando, garantindo a todos uma descoberta permanente daquilo que são, do que realmente gostam e o que lhes dá genuino e descomprometido gozo. O prazer, tal como muitas outras coisas, entra na girândola da vida e vai ganhando novas formas, novos ideais, outras valorações. O prazer é, talvez, a razão de ser maior da nossa existência - o leit motiv -, isto se o quisermos conotar com a essência da felicidade, o que não seria de todo desprovido.


Por mera curiosidade

Curiosidade é o que move o ser humano a querer saber um pouco a mais do que ele já sabe. Somos quase todos curiosos e isso dá um enorme jeito em termos de sobrevivência. Desde pequeninos usamos o que isso tem de inato para conhecermos melhor o mundo que nos rodeia, para aprendermos os sinais de perigo e os de gratificação e também para chamarmos a atenção das pessoas e estabelecermos relações. São sempre os mais curiosos que se interessam por mais e diferentes coisas, que exploram e levam por diante empreitadas e obras que passam ao lado dos que, permanentemente, consideram que o que acontece à sua volta não lhes diz respeito. É bom ser curioso. Mas se uma parte substancial da nossa curiosidade nos ajuda a crescer e nos serve no sentido de sermos mais e melhor, uma outra parece supérflua e até mesquinha. Prende-se a detalhes insignificantes, toma a parte pelo todo e, a partir daí, galopa na construção de histórias improváveis e maledicentes. É essa parte da nossa curiosidade que nos faz calar para escutar a conversa da mesa ao lado entre pessoas que nunca vimos, que nos faz abrandar, quase parar, para ver se do tal acidente resultaram vítimas mortais. Interessamo-nos, disfarçadamente, por aspetos que, juramos a pés juntos, não têm interesse nenhum. Seremos voyeurs? Cuscas? Criaturas infelizes com vidas demasiado triviais para nos comportarmos desta forma horrenda? Frequentemente polarizamos a vida e os acontecimentos em duas categorias simplistas e reducionistas: de um lado os contentinhos bem cheirosos a quem só acontecem coisas boas; do outro, os desgraçados da sorte enredados em tragédias e cenas tristes. O que é certo é nunca nos contentamos com as partes triviais e desapaixonadas das informações que nos chegam às mãos. Precisamos sempre de apimentar a verdade com algo fascinante e indecoroso; e fazemo-lo, dizemos nós, por mera curiosidade.


quinta-feira, 30 de março de 2017

O prazer de ler

Eu sou um bibliófilo assumido e um leitor compulsivo. Adoro livros, tenho que ler quase todos os dias e tenho uma biblioteca grande que aumenta sempre e sempre. Acho a maior tristeza ver uma casa sem livros. Não posso falar simplesmente do meu gosto pela leitura, porque em matéria de livros o meu caso é muito mais grave: é um amor que vem desde a infância, que me tem acompanhado a vida inteira e é incurável. Não se trata, portanto, de um interesse periférico, e o prazer que me tem proporcionado faz com que eu procure, permanentemente, levar mais pessoas a desfrutá-lo. Daí aproveitar qualquer oportunidade para inocular o vírus do amor aos livros em todos os potenciais leitores.

O prazer que um livro pode proporcionar tem múltiplos aspetos e abre horizontes ilimitados, no entanto ainda é mais fácil promover a leitura na infância do que na juventude ou na idade adulta, uma vez que a televisão e a Internet absorveram a maior parte do tempo vago das pessoas. É uma pena, pois a concentração provocada pela leitura, desperta muito mais a imaginação e a criatividade do que a imagem fugaz de um ecrã ou as informações facilitadoras da web. O que quero dizer é que tanto a televisão como a Internet têm o inconveniente de vir como pratos feitos, não exigindo criação, reflexão ou análise, ao passo que um livro pode desencadear um processo mental bem menos efémero, indo muito além de mero instrumento imediato de informação.

Se o livro, antes da televisão e do computador, atingia um número limitado de pessoas, o facto é bem mais preocupante nos nossos dias, mas um esforço em favor da leitura ainda pode dar bons frutos. O livro transmite pensamentos, traduz emoções, estimula a imaginação e o sonho, permite que as nossas vivências quotidianas se transformem num mundo cheio de encantos e seduções, dando à vida um sentido intelectual e espiritual de inestimável valor. O romance, a poesia, o drama e a comédia, permitem ao leitor identificar-se com personagens ideais, amparar as suas angústias e inquietações. Poder-se-ia dizer que tudo isso também pode ser proporcionado pela televisão, mas a imagem dos modernos meios de comunicação é fugidia, ao passo que o livro, companheiro de todas as horas, tem uma facilidade de acesso e de uso insuperáveis. Reconheço que o perigo da obsessão existe e deve ser combatido, mas os livros e os outros meios de comunicação não são, necessariamente, excludentes e o prazer da leitura deveria ser proclamado por todos os meios e modos, especialmente pelos media, que com isso pagariam boa parte de seus pecados. 

A minha experiência em matéria de leitura, começou cedo. O que não consegui, nem quis, foi estabelecer uma leitura metódica, com objetivos determinados. Fui sempre um leitor indisciplinado, achando que o livro foi feito para nós e não nós para o livro. Portanto, sempre me bastou, para ler uma obra, que ela me interessasse, sem me preocupar se era importante ou não. Com isso, perdi certamente muito tempo lendo coisas de que nem sequer me lembro, mas não lamento pois na hora, provavelmente, senti prazer e consolidei o hábito da leitura. 

Nunca consegui acompanhar a opinião de Thomas Mann, quando dizia que a leitura dos bons livros deveria ser proibida, porque existem os ótimos. Em primeiro lugar porque o conceito de ótimo é muito relativo, e depois porque há muitas outras razões para se ler um livro, além da sua qualidade literária intrínseca. 

É claro que há limites que não se conseguem transpor. O principal é o tempo. Por mais que se leia, não se consegue ler tudo e uma certa seletividade se impõe. Mas cada um deve fazer as suas próprias escolhas, procurando não se ater a critérios rígidos, nem se considerar culpado por ocasionais desvios, passando de Flaubert a Astérix ou de Shakespeare a Stephen King. O mundo da leitura deve ser um mundo de liberdade intelectual. 


2010 - Publicado no "O Mirante"



segunda-feira, 27 de março de 2017

Liberdade de escrita



Por vezes, quando compramos uma revista, ou lemos determinados blogues, é por vontade de saber da vida literária de pessoas que julgamos interessantes e porque faz parte da nossa essência termos uma certa curiosidade.

Há blogues com inegável valor literário, outros com representações fotográficas, cinematográficas e de arte espantosos, ou com belíssimas seleções musicais. Outros há que afloram as clivagens, o consenso e o conflito, com nítida vocação política, sem esquecer os blogues onde o bom humor impera. Enfim, há blogues com temáticas para todos os gostos. Mas são inegavelmente os blogues com vocação intimista que atraem mais a atenção do leitor comum.


Felizmente, ainda há quem aprecie uma "boa conversa", ainda que em forma de monólogo, que seja uma partilha de ideias, ou uma exposição mais ou menos reservada de universos pessoais que, num dado momento, se partilham com gosto.

Nestes tempos vorazes, tomados pelo pragmatismo, em que falar se vai espartilhando à necessidade de dar e receber informações, parece quase um exercício de infantilidade perdermos tempo lendo, ou escrevendo coisas, que fujam à lógica feroz desse ditame. E esta é a atitude de muita gente perante a leitura e a escrita: não perder tempo com "textos minimalistas" onde a subjetividade impere, pois somente interessa o texto formativo.



Com a democratização da possibilidade de publicar textos, proporcionada pelas novas tecnologias, a blogosfera e as redes sociais, tornaram-se espaços onde todos os que escrevem, ou querem ter algum tipo de intervenção, tal como publicitar vídeos ou textos alheios, encontram o seu lugar. E ainda bem que assim é, em prol de todas as idiossincrasias.

domingo, 26 de março de 2017

A verdade essencial

Tempos houve em que a verdade era mais que o antónimo da mentira. Já se acreditou, inclusive, que a verdade era uma espécie de quinta essência, um âmago de sentido, que justificava uma busca grandiosa, que tornava o caminho da vida num percurso de aperfeiçoamento e crescimento em direcção a uma qualquer transcendência que faria de todos nós seres maiores e melhores. Acontece que, nesta época feérica em que vivemos, o desgaste do conceito atinge tais proporções que uma mentira, se dita vezes sem conta, acaba por se tornar verdade. 

Nos nossos dias, deixou de ser preciso dizer a verdade e as elites que nos governam, aqueles que têm nas suas mãos o poder de escolher os desígnios e as políticas que nos vão reger, são os que em primeiro lugar nunca dizem a verdade. Passámos a encarar as mentiras de um alto governante, de um deputado, de alguém com responsabilidades sociais intensas, como algo natural, normalíssimo até. Já não acreditamos em intenções vitalícias e é (quase) lícito prometer uma coisa agora e no dia seguinte quebrar o compromisso assumido. E esta falência da verdade é correlativa à emergência da disfuncionalidade aflitiva dos órgãos de cúpula que nos regem, que toleramos e com os quais nos habituámos a viver, não desperdiçando mais do que um simples encolher de ombros quando alguém nos pergunta se, ao menos, nos questionamos: "O que hei-de eu fazer?". Lírico eu? Talvez, mas a História prova-nos que só as revoluções conseguem operar as rupturas necessárias para extirpar os cancros do tecido social. Se assim é, venham elas!


sábado, 25 de março de 2017

A sedução



A sedução tem muito que se lhe diga. Isto de alguém ser capaz de se fazer amar, desejar, querer, sem mais nem porquê, não é de todo um dado fácil de digerir. A capacidade de uns tantos, poucos, se fazerem amar é uma imensa mais-valia. Quem possuir o dom de exercer fascínio sobre os outros, capaz de os amaciar o suficiente para ficarem vulneráveis a influências e alterações de comportamento, é definitivamente um sedutor. Mas a relação entre o sedutor e o seduzido (atrais-me, mas não tens força para me prender) não é tão eficaz como quando está presente a 'química'. E, mais importante do que a 'arte da sedução', que alguns prosaicos se gabam dominar, é sobretudo a 'química mútua', como correntemente agora se apelida a chama da paixão, que aproxima verdadeiramente duas pessoas.


Sem 'química', sem aquela atração mútua inexplicável, aquele bater mais forte do coração quando se pensa em determinada pessoa, aquele gostar inexplicável, ilógico - um gostar com o coração, esvaecida que ficou toda a racionalidade -, o que parece que espanta pela raridade e fascina pela perfeição, torna-se, no momento seguinte ao deslumbramento, uma enorme trivialidade. 

A cultura do amor tornou-se, na nossa sociedade, um ingrediente fundamental para a nossa felicidade. Grande parte da nossa vida afetiva, enquanto adultos, é dedicada à relação amorosa. Rompemos relações estáveis, porque deixamos de amar, para, passado algum tempo, voltarmos a amar. Mesmo as pessoas com necessidade de lutos maiores, mesmo os mais desiludidos, que juram a pés juntos não querer mais ninguém e que se bastam com o culto narciso da sua pessoa, um dia sucumbem à lógica da 'química'. Uma vez tocados pela 'química', a menos que sejamos seres abjetos, patologicamente insensíveis, todos sucumbimos.

O amor é o que sentimos pelo outro, mas também o que o outro sente que nós sentimos. Não há muitas racionalidades que consigam explicar o porquê de gostarmos de alguém. E a prova disso é, não raro, acontecer gostarmos de pessoas que 'racionalmente' não seriam as mais indicadas para entregarmos as chaves do nosso coração. Não admira que os grandes sedutores sejam habitualmente tão infelizes. Seduzir, essa capacidade fantástica, pode resultar no imediato, mas sem a poção mágica da 'química', capaz de aliar corações, tudo pode não passar de um fogo fátuo de sentimentos. E o que todos almejamos é chegar ao cume, ao vibrátil: o amor, como referente universal de todos os sentidos. Tudo o resto são sucedâneos, vertigens de quem espera pelo fundamental.


quarta-feira, 22 de março de 2017

Solitude

Uma das perturbantes circunstâncias das metrópoles e do nosso quotidiano é a solidão que parece descer sobre as vidas de muitos de nós: os sem família, ou apartados dela, ou que viram as sua uniões afetivas um dia desfeitas; nuns casos, ambas as coisas. A voracidade dos dias, o trânsito caótico o trabalho desgastante, e que nos consome recursos em demasia, o corre-corre de um lado para o outro, as discotecas com filas à porta e as noites a acabarem ao meio-dia, os relacionamentos fugazes, as seduções que, terminadas, encontram o eterno vazio de que se forraram, parece que tudo isto amplia o sentido de isolamento, ao invés de conceder a esperável esperança de companhia e agradabilidade. 

São demasiados os que se queixam de um enorme sentimento de estarem sozinhos no meio da multidão e afirmam que é difícil encontrar alguém disponível para uma conversa amena; do quão complicado é chegar à fala com pessoas interessantes e da quase impossibilidade de desenvolver relações fortes com conhecimentos recentes. Mas, a maior parte das vezes, por mais que façamos de conta que os motivos são outros, e são dos outros, basta olhar à nossa volta para ver com atenção o muro de isolamento e ostracismo que construímos no que às relações sociais respeita. E às vezes são anos e anos de deliberados distanciamentos ou então de focagens excessivas, quando não obsessivas, numa única relação, não permitindo que alguém partilhe o bunker do relacionamento bilateral em que nos metemos. 

É verdade, sim, que há pessoas mais propensas a socializarem do que outras; é verdade, sim, que muitos de nós não gostam dos conhecimentos em multidão e da possibilidade de se poderem gabar: "tenho uma montanha de amigos"; é verdade, sim, que as necessidades de isolamento e de interação divergem consoante a personalidade de cada um, mas não podemos eternamente ficar instalados nos nossos maniqueísmos do costume, querendo respostas simples e fáceis que expliquem tudo isto de uma forma linear. A personalidade de cada um de nós é o resultado estrutural de uma construção que durou quase metade da nossa vida, daí ser quase impossível operar mudanças radicais; e a medida do que está correto, aplicada a tudo, é a dose qb, a harmonia e temperança nas decisões e na consequente ação, salvaguardado o consenso e conflito da nossa identificação, que se quer ímpar.

Leiria - 2009





segunda-feira, 20 de março de 2017

Gostar ou não



«Gostar ou não, eis a questão. Como é que se define o amor? Como podemos saber se o que sentimos por esta ou aquela pessoa é mesmo amor e não qualquer outro estado intermédio ou subproduto do sentimento em questão? O amor está tão na moda que as pessoas o procuram e desejam como um bem de primeira necessidade. O amor é a água do coração; sentimos que simplesmente não podemos sobreviver sem ele. E de cada vez que a vida nos obriga a atravessar desertos amorosos, enchemos os cantis de distrações e paliativos, alguns destrutivos (droga, álcool, excessos vários), outros mais construtivos (meditação, desporto, viagens, amigos) até que um oásis de afecto se desenha no horizonte.

É claro que o oásis pode ser uma miragem, mas isso só saberemos quando lá chegarmos. Há oásis que parecem enormes e se revelam exíguos, outros que pensamos serem desinteressantes e se transformam em lugares bestiais, outros que são confortáveis, porém aborrecidos, e outros ainda que se assemelham a um jogo de PlayStation2, cheios de desafios e de aventuras onde é preciso manter sempre a concentração para conseguir vencer obstáculos e passar ao próximo nível.

As boas histórias são feitas de obstáculos, da mesma forma que o amor também se constrói na adversidade? Desconfio sempre das histórias amorosas em que tudo é sempre muito difícil. O amor é um mistério insondável, mas tem os seus sinais inequívocos e na verdade não existe o amor per si, existem provas de amor. Quem não o mostra é porque não o tem e, se não o tem, não vale a pena tentar fazer omeletas sem ovos.

As relações amorosas que começam com grandes dificuldades porque ele nem sempre está disponível ou ela é frequentemente assaltada de dúvidas não medram; ou a coisa flui ou emperra e, como diz o ditado, o que nasce torto tarde ou nunca se endireita.

O que acontece é que às vezes estamos tão carentes que interpretamos sinais de desamor como prenúncio de amor, dando ao outro o benefício da dúvida. No amor não há dúvidas quanto à natureza do amor. Podem existir outras, do estilo ‘gosto dela, mas não gramo a família nem como molho de tomate’ ou ‘ele é adorável, mas vou ter de lhe comprar boxers novos porque odeio aqueles slips que ele usa’, mas não pomos em causa o amor que sentimos.

Citando o Fernando Alvim numa das suas recentes crónicas, quando se gosta de alguém temos sempre rede, nunca falha a bateria, nunca nada nos impede de nos vermos e nem de nos encontrarmos no meio de uma multidão de gente.

Quando se gosta de alguém, ouvimos sempre o telefone, a campainha da porta, lemos sempre a mensagem que nos deixaram no vidro embaciado do carro desse Inverno rigoroso. Quando se gosta de alguém – e estou a escrever para os que gostam – vamos para o local do acidente com a carta amigável, vamos ter com ela ao corredor do hospital ver como estão os pais, chamamos os bombeiros para abrirem a porta, mas nada, nada nos impede de estar juntos, porque nada nem ninguém é mais importante do que nós.Um dos sinais inequívocos do amor é exactamente essa terceira entidade, o Nós, a consciência de que o Eu e o Outro formam algo que nos diferencia do resto do mundo. E o tempo que temos na nossa vida para Nós.»

(texto de Margarida Rebelo Pinto)

[Gostar ou não gostar da Margarida Rebelo Pinto, eis a questão. Eu gosto da sua escrita. Acho que a Margarida escreve bem, é uma mulher inteligente e, sem dúvida, percebe muito sobre o amor. Os seus detratores, muitos deles nunca a leram ou apenas o fizeram transversalmente; ou, pura e simplesmente, alinham na caçada intelectualóide que alguns parvalhões - ansiosos por algum protagonismo e sedentos de afirmação - lhe movem; porque fica sempre bem dizer mal da "escrita light" da Margarida.

A MRP é um sucesso de vendas. Não há dúvidas de que é uma escritora comercial, sem pretensões a grandes agastamentos filosóficos nem constantes demonstrações de erudição - vejam-se as crónicas de Pedro Mexia, Rui Zink, Mário Viegas, P. Coutinho, MEC, entre outros, arregimentados num grupo que, em em surdina, se revê nos cânones propalados pela nova direita iluminada de Portugal e nunca dispensam o recurso, quase psicótico, às demonstrações de grandíssima erudição anglófona, embrulhada na posse de uma cultura atual e ímpar.

Alguns desses cronistas, que eu leio e muito admiro, porque escrevem milhões de vezes melhor do que eu, valeriam o dobro se lhes restasse um nadinha mais de humildade e menos sobranceria. A vaidade e o narcisismo, quando assumem extremos, para além de perigosos são pouco salutares e acabam por nos fazer cair na falácia de nos julgarmos perto da perfeição.

Na arte de escrever tudo se passa como no velho Oeste: aparece sempre alguém que escreve melhor do que aquele que se julga a "prima donna" das letras e quando dispara é a matar.

Gosto de ler a Margarida, sobretudo as suas crónicas e o seu blogue. Ela escreve muito bem. É lúcida e fala do amor e dos relacionamentos entre as pessoas com um capital de saber que só quem já amou é capaz de entender e tão facilmente explicitá-lo.

Este seu texto, que tomei a liberdade de publicar no meu blogue sem o seu consentimento, mas devidamente referenciado, expressa, de forma simples e sublime, a súmula daquilo que eu penso sobre as relações amorosas entre as pessoas. Por me ter sentido tão sintonizado com as suas palavras, pela leveza e clareza do texto, não resisti a partilhá-lo convosco. Espero que gostem tanto dele como eu.]

Leiria - 2007



domingo, 19 de março de 2017

O Segredo

Uma deliciosa ocupação é deixar amadurecer um segredo e sentir o prazer inebriante de saboreá-lo a sós. Mas quantas vezes a degustação desse prazer me entristece e me atira para o devaneio. O esquecimento é a melhor cortina de seda que me ocorre diante de um segredo, mas traz sempre consigo a dolorosa responsabilidade de não o poder esquecer. É verdade que guardo alguns segredos. Às vezes sinto-me uma espécie de repositório de segredos: uns meus, outros de pessoas que me são, ou, em algum momento, foram chegadas. Não me refiro naturalmente à informação que está por detrás das passwords, essa hipérbole criada por esta nova geração de polichinelos burocratas, caídos na absoluta tentação do proselitismo pragmático.

Nasci com o eclodir da guerra colonial e pertenço à insigne geração dos iniciados nos primeiros cadernos de caligrafia e amestrados nos alfabetos por ditados, cópias e redações. Leio páginas de livros melhor do que comandos eletrónicos e senti algumas dificuldades em acompanhar o galopante avanço das novíssimas tecnologias. Fui treinado para descobrir sinónimos em dicionários, definições em enciclopédias, ensaios de erudição em almanaques. Sou de um tempo em que todas essas coisas se julgavam ferramentas de sobrevivência para o futuro que pudesse acontecer.

Hoje, descubro-me ensardinhado entre aptidões, que me diziam ser obrigatórias e indispensáveis, e este novo mundo de instrumentos visionários, que apenas as histórias de ficção científica me permitiam imaginar. De repente, depois de pequenas e imperceptíveis metamorfoses, encontro-me dentro dessa ficção. Passa-me muitas vezes pela cabeça o tempo que perdi a decorar tabuadas, nomes de rios, serras, linhas de caminho-de-ferro, declinações e fórmulas químicas. Mal eu sabia que havia de chegar a altura em que tudo isso seria absolutamente desnecessário para a prática comum da civilidade. Hoje em dia quase tudo se resume ao preenchimento de campos e ao domínio de  aplicações informáticas, que tendem a estender a sua fervorosa ditadura a toda a atividade humana. O neologismo «info-excluídos» há muito que entrou no léxico da competição laboral e quem não dominar com desenvoltura os ficheiros zipados, os scanners, os downloads e toda a panóplia de novas ferramentas, resta-lhe deixar-se ultrapassar pela voragem dos mais novos que, sequiosos de vencer e conquistar, vêm aos tropeções, ansiosos por provar que podem destronar os mais velhos das suas ciências rotineiras e caídas em desuso.

A minha capacidade para arrecadar passwords está perto de atingir o limite do suportável: é o código do alarme da repartição; são as palavras-chave para ter acesso às diferentes aplicações informáticas; a senha para iniciar o computador no ambiente de trabalho; o código do cofre; a senha para ter acesso ao telefone! Se a isto somarem as senhas que tenho para uso pessoal, desde o multibanco, ao blogue onde escrevo, passando pelas diversas caixas de correio eletrónico, verifico facilmente que vivo num mundo de segredos onde se, porventura, me esquecer de alguma das palavras mágicas – os diversos abracadabras que se me colam como sanguessugas indispensáveis – fico ao relento de quase todas as dinâmicas que atualmente compõem as facetas da minha vida.

Apetecia-me ensaiar um regresso às origens, no sentido mais real da expressão, e tornar a um tempo em que imperava a rotina dos momentos singelos. Quantas vezes não sinto vontade de me estender numa cama, acompanhado de uma sanduíche de marmelada e um copo de leite com Nesquick, e reler todos os livros da Enid Blyton, a começar pelas aventuras dos Sete. Deixar-me de segredos para sempre, que não fosse as maravilhas que esses tempos deambularam na minha mente. Esses, sim, eram os verdadeiros segredos; o néctar que fermentava os rasgos da  imaginação que transportavam ao sonho e à felicidade.

Leiria - 2012