Hoje, dez anos volvidos após a sua morte, recordo-me da Paula C., uma
amiga de infância que escolheu abreviar a vida, porque ela há muito lhe parecia
um fardo insuportável. Se fechar os olhos, consigo vê-la no pátio do Liceu de
Almada, nos finais anos 70, princípio dos anos 80: o cabelo cortado à Malvina,
aquela da novela «O Casarão», as mãos sempre enfiadas nos bolsos estreitos de
umas Levis ruças, uma camisa justa com folhos nos punhos e o eterno cigarro
aperrado no canto dos lábios.
Uma situação tremenda: um ser que, muitos anos antes de morrer – de facto
suicidou-se – há muito decidira alhear-se da própria vida e começara a agir
como se nada mais tivesse realmente importância. Vivia numa passividade extrema
perante tudo e tendia para os excessos, sem cuidar de refletir nas
consequências. Essas, pareciam-lhe indiferentes, risíveis até. Chegou a um
estado em que cessou de se projetar no futuro e apenas o presente contava. A
sua ligação à existência parecia-lhe tempo inútil, tempo a mais. A vida era
para ser vivida à velocidade de um foguete. E as frustrações da vida, com as
quais ela nunca conseguiu lidar, sublimava-as sempre com excessos, compensações
desnorteadas, inconsequentes, eternas fontes de sofrimento posterior.
Ainda hoje tenho uma certa dificuldade em incutir no pensamento, a certeza
de que a Paula se precipitou para a morte, atirando-se de um oitavo andar e
nunca mais a vou ver. Nós, os amigos, nem tivemos tempo para nos despedirmos
dela, tal a pressa que ela teve em se despedir da vida.
Que tão fortes motivos pode ter um ser que renuncia propositadamente à
vida, numa idade ainda relativamente jovem, antes de chegada a inevitável hora?
É um mistério total que encerra razões que a minha razão desconhece.
Não lhe conhecia doenças crónicas, mortais, ou enfermidades que
justificassem tal atitude. Apenas uma angústia profunda e uma inadaptação
constante aos ritos sociais ditos "normais", faziam-na viver num
drama interior que constantemente a sobressaltava. Foi doença mental, disseram
os entendidos nestes assuntos. Eu digo que ela morreu de tristeza.
Muitas vezes encontrei-a, quer durante os tempos do Liceu, quer mais tarde
na Universidade, afundada em desesperos (fomos colegas desde o liceu até à
licenciatura). Nem o seu casamento recente, a atual estabilidade laboral (era
chefe de divisão num Ministério - quadro superior da função pública - e gozava
de alguma folga económica), pelos vistos, lhe trouxeram paz ao seu conturbado
espírito.
A braços com os meus próprios dramas e problemas pessoais, hoje assumo que
a ameaça do ódio à vida, bem como a ancilose da capacidade de nos amarmos, são
conjuras que se podem urdir em qualquer momento e virar-se contra nós. E para
além da obscuridade de histórias fragmentadas que me alcançaram, sobre os
motivos que a levaram a tomar essa irrevogável atitude, ainda me custa
aceitá-las como razões suficientes.
Que lhe diria eu se tivesse podido? Eu que também conheço os silêncios do
vazio e a eterna espera da luz? Que poderia eu dizer-lhe, caso fosse a tempo de
lhe segurar um braço? Que poderia eu dizer-lhe sem a magoar, sem lhe dar a
impressão que não a queria compreender? Sem os ares de quem quer pregar a moral
da verdade e é o arauto da felicidade? Dir-lhe-ia, talvez, para tentar manter a
esperança e descortinar novos rumos para a felicidade, pois eles efetivamente
existem. Mas a obstinação doentia dos suicidas, cedo, ou tarde, acaba por
prevalecer. O mal é a fixação apoderar-se deles. A ideação toldar-lhes a mente.
Depois só há uma questão: o tempo e o modo.
O desaparecimento da Paula, sempre que o recordo, transformou por completo
a minha consciência acerca da morte. Revelou-me tudo o que havia de falso na
relação com a minha própria existência e com a minha própria morte. Mudei
definitivamente de ideias no que diz respeito a considerar que a morte não tem
nada a ver com a vida, que não nos diz nada, que não existe ligação possível
entre uma e outra, a menos que nos iludamos. Conseguiu libertar-me dessa absurda
convicção de que a morte não tinha nada a ver com a vida, que não representava
nada para mim. Pela primeira vez, senti com extrema agudeza, quão ténue, frágil
e efémero é o sopro de vida, que toca cada um de nós em cada dia que passa.
RIP, Paula C., hoje que passaram dez anos sobre o dia
da tua morte, relembro o fim que tu própria escolheste para ti: um salto em
forma de anjo, às primeiras luzências da manhã, da varanda do oitavo andar onde
moravas, na direção da calçada. És, desde há algum tempo, mais uma estrela no
céu.
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