sexta-feira, 10 de maio de 2019

Onde eu moro



Há onze anos que moro nesta urbanização e há mais de uma década que assisto ao despontar da primavera nos ramos das árvores e à chegada das aves que se tinham resguardado dos rigores do inverno em paragens mais quentes. A primavera é sempre acolhida como uma época de renovação e esperança. Se não tivéssemos inverno, a primavera não seria tão agradável e se não experimentássemos algumas vezes o sabor da adversidade, a prosperidade não seria tão bem-vinda.

Durante uma década muitas coisas aconteceram por aqui. Alguns moradores são os mesmos de sempre, embora mais envelhecidos e outros há que se mudaram; e, de alguns, nunca mais soube novidade. Não deixa de ser inquietante observar o crescimento das árvores do jardim fronteiriço, em cada ano que passa, com mais folhagem e ramos mais maduros e compridos, enquanto os moradores antigos, em contra-ciclo, definham a caminho da inevitável velhice. A natureza segue inexoravelmente o seu curso e a renovação é a regra.

No prédio em frente, do outro lado da rua, instalou-se há poucos anos um casal muçulmano. São bastante discretos. Não frequentam os cafés das redondezas e apenas os vi uma única vez no supermercado. A mulher usa sempre um lenço e uma túnica. Os turbantes e túnicas usados hoje nos países árabes são quase idênticos às vestes das tribos de beduínos que viviam na região no século VI. É uma roupa que suporta os dias quentes e as noites frias do deserto. Em casa ela não usa o lenço, mas se calha vir à varanda, coisa rara, vem com ele posto.

No prédio do meu lado esquerdo, morava até há poucos anos atrás, F., um ex-colega meu. Ao que consta, agredia a mulher, num contexto de violência doméstica, mentiras e infidelidades. Ela fartou-se e pediu o divórcio. No meio profissional, as canalhices dele eram comentadas à boca fechada, até porque a mulher também é uma ex-colega de profissão. Venderam o duplex e cada um rumou a outras paragens. O apartamento esteve mais de um ano à venda até que tiveram de baixar o preço pedido e lá conseguiram despachá-lo.

As bizarrias fazem parte da vida e, de uma forma geral, todos os condomínios têm gente excêntrica. A riqueza do meu advém da sua diversidade, se não veja-se: Uma vizinha que atira pedras aos automóveis que estacionam debaixo da sua janela; outra que mandou instalar um gradeamento na porta da entrada do apartamento; outros que riem, falam em voz alta e escutam música, noite dentro; outro, que ( já cá não mora, felizmente) furava as fechaduras de todas as portas de casa, para que a mulher não se pudesse trancar quando tentava fugir das suas agressões. Enfim. A PSP era uma visita constante do condomínio, mas as coisas nos últimos tempos, fruto da renovação da vizinhança, andam muito mais calmas. Há quem pense que isto só sucede em bairros degradados, mas não é verdade.

Agradável agora é a quase chegada do verão, que trás o ruído das crianças que brincam no pequeno jardim debaixo da copa das árvores e a algazarra das pessoas que se juntam na esplanada do único café da rua, bebericando cerveja e comentando resultados desportivos. Eu estou na varanda, com o olho nos gatos, não vá algum deles dar um salto kamikaze ( dois deles já caíram, felizmente sem grandes consequências), enquanto observo discretamente a vizinha muçulmana, sem o lenço posto, que passa a ferro a roupa da família. Não consigo deixar de pensar que ela já nasceu com um destino traçado. Por motivos de religião e pudor, foi-lhe negada a autodeterminação, como os ramos das árvores que não param de engrossar, ou as aves que sempre voltam para nidificar por estas bandas, tudo sem vontade própria.


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