sábado, 28 de março de 2020

Em nome da minha higiene mental




Desço até às garagens, depois de ter colocado luvas descartáveis e ter vestido o meu kispo quentinho forrado a penas. Abro o portão da minha box e retiro a mota para o lado de fora. São 18h30 e o sol quase desapareceu no horizonte, para dar lugar ao crepúsculo que anuncia a chegada da noite. Um frio insidioso faz-se sentir quando abro o portão principal.

Puxo o fecho eclair até à linha do pescoço e uno o velcro que me torna imune à baixa temperatura provocada pela deslocação do ar. Sigo devagar rumo ao centro da cidade que dista a 1700 metros.

As ruas estão praticamente desertas e, à parte um pedestre, carregado com sacos de compras, ou um desportista solitário, não se avista ninguém. Todos os estabelecimentos, com exceção de uma ou outra papelaria, farmácias, lojas da Vodafone, supermercados e um único café, estão encerrados. O percurso Polis, por excelência o passeio para lazer e desporto dos leirienses, encontra-se vedado com fitas que dizem "Policia de Segurança Pública".

Estaciono mesmo defronte do único café aberto no centro da cidade. À porta, o proprietário mandou colocar mesas alinhadas que impedem as pessoas de entrar no estabelecimento. Só é atendido um cliente de cada vez e tem de consumir no exterior. Uma funcionária de nacionalidade brasileira pergunta-me: " O que você quer moço?". Digo-lhe que quero um café. Pergunta-me se tenho dinheiro trocado ou qual a quantia que tem de dar de troco. Respondo-lhe que pago com um euro. Deixa-me o café em cima de uma mesa e o respetivo troco.

Nestes tempos de peste negra, com um epíteto diferente, o outro é o nosso potencial inimigo. Voltámos aos receios medievais. Apercebo-me do cuidado que a funcionária manifesta para não se aproximar demasiado de mim, como se eu fosse repugnante, mas encaro o gesto com a naturalidade que a situação merece. Tornámo-nos repulsivos para os nossos semelhantes, essa é a verdade.

Vou beber o café sentado na mota. Levanto a viseira, nunca tirei o capacete da cabeça, e bebo aos sorvos o café amargoso, servido num ordinário copo de plástico - que até há bem pouco tempo atrás seria pouco recomendável em termos ecológicos. Entretanto, um ciclista pára e também se dirige ao estabelecimento. Não há mais ninguém. Só o silêncio e a noite que engole a cidade.

Sentado na mota, olho por momentos o meu rosto no espelho retrovisor e cogito acerca da relatividade das coisas, e em como as circunstâncias podem mudar a nossa forma de pensar. Sempre achei ridículos os casais de meia idade que estacionam o automóvel na marginal da Nazaré, nas tardes invernais de domingo, voltados para o mar; e ali ficam uma boa parte do tempo sem dizer nada um ao outro, muitas vezes dormitando. Depois, acordam, sobressaltados com as horas que passaram, e, cumprido o sedentário passeio, nos assentos do automóvel, voltam para casa. Este meu passeio é muito mais vácuo do que os cochichos dos velhotes na marginal da Nazaré, no entanto é para mim uma higiene mental de quase sobrevivência.

Regresso à consciência. Meto-me na mota e vagarosamente rumo a casa, tomando o caminho mais distante, como se quisesse retardar o regresso ao confinamento que me espera, do qual os meus gatos não se queixam, pois estão no seu mundo querido, naquele que os conforta e que bem conhecem. Na minha zona de conforto, têm de fazer parte as quebras, ainda que ligeiras, desta rotina pastosa e doentia que parece não ter fim.

Estou de volta à garagem. O ponto de partida e chegada desta curta viagem de menos de uma hora. Arrumo a mota, fecho o portão e meto-me no elevador. Em casa, descalço as luvas descartáveis e lavo as mãos vigorosamente enquanto canto mentalmente duas vezes a canção "Yankee Doodle".

Em casa, basta ligar o computador ou a televisão, para ser inundado com más notícias que não cessam, números aterradores de mortes um pouco por todo o mundo. O universo dos filmes catástrofe, com vírus à solta e a potencial dizimação da população mundial, ganha vida. A até então ficção é afinal a antecipação de uma negra realidade. Espero que este filme (irr)real tenha um final melhor.

Dizem que é bom manter o máximo possível as rotinas quotidianas, para transmitirmos a nós mesmos sinais de alguma tranquilidade, mas em nome de uma quebra salutar, amanhã provavelmente repetirei, por outros caminhos, esta minha curta saga motociclista.

Agora posso voltar ao "meu" Gabriel Garcia Márquez, pois já dormitei um pouco sentado na minha mota junto ao mar da Nazaré.

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