terça-feira, 9 de maio de 2023

Cats



Olhando para o cortinado de cetim verde da sala, totalmente rasgado, o cadeirão de veludo, com perto de 100 anos, com o encosto do braço esquerdo com a espuma à mostra, para não falar das cadeiras de couro do escritório numa completa ruína e os ímanes do frigorífico, recordações de Londres e do Rio, partidos um a um, não posso deixar de admitir que tenho sido demasiado tolerante para com a gataria que tem coabitado comigo durante todos estes anos. É verdade que são objetos de que eu gostava, alguns adquiridos em antiquário, outros recordações de viagens, mas o meu amor pelos felinos consegue ser superior aos desgostos que me causaram os danos provocados.

Os gatos são como as crianças pequenas: dão-nos muito amor mas fazem tropelias e estragam objetos que para eles são meros ótimos afiadores de unhas. O segredo é não carpir o desgosto pelas coisas estragadas e aceitar o prejuízo inevitável que os bichanos sempre provocam numa casa.

Fico perplexo sempre que oiço alguém dizer que tem gatos em casa mas eles não estragam nada. Das duas, uma: ou os animais vivem em zonas muito restritas da casa, fechados na cozinha ou numa marquise, ou têm as unhas muito bem cortadas. De qualquer forma, ainda assim, é impossível não estragarem nada. Está na sua natureza usar os dentes e as unhas.

Eu gosto de dormir com o meu Negrito e tê-lo perto de mim no escritório quando toco ou escrevo. O cadeirão de pele de vaca, em que neste momento me sento, encontra-se de tal forma estragado que grande parte da espuma encontra-se à mostra. São excrescências estranhas e inestéticas que me habituei a desvalorizar. A minha mãe, sempiterna amante de gatos, tinha uma filosofia própria no que respeita aos estragos dos bichanos: quando os gatos estragavam por completo os sofás da sala, atirava-os fora (os sofás, entenda-se) e comprava outros, às vezes em segunda mão, sabendo que a sua duração estava aprazada.

Acho que foi ela que me ensinou de algum modo a desvalorizar os prejuízos causados pelos nossos amigos felídeos e a aceitar os danos colaterais desta relação ternurenta.

Lembro-me que, teria eu cerca de 4 ou 5 anos, não mais, fiz um lindo desenho com lápis de cera na parede da sala e depois fui chamar a minha mãe para que ela apreciasse a obra de arte, uma vez que lhe era dirigida. Sei, contado por ela mais tarde, que na altura ficou muito zangada mas não teve coragem de me dar umas nalgadas bem merecidas. Assim sou eu com os gatos: barafusto, zango-me, mas não passa disso.




Sem comentários:

Enviar um comentário