Nos meus tempos de juventude a maioria de nós o que mais desejava era ser independente. Sonhávamo-nos libertários, encontrar fonte de sustento, arrendar um espaço, uma roulotte, com amigos ou com a namorada, sermos donos do nosso nariz; e, na medida do possível, vivermos de acordo com as nossas regras e valores. Eu, por força de circunstâncias várias, tornei-me autónomo num estádio muito precoce da vida. Antes dos 18 anos de idade já morava sozinho, trabalhava durante o dia, estudava à noite e ganhava para o meu dia a dia. Passei muitas dificuldades, sofrimentos, privações, momentos surrealistas na Lisboa de há mais de 40 anos, mas tudo isso depois de depurado no repositório das memórias, revelou-se um ganho de maturidade e capacidade de resiliência. Se a vida tivesse sido mais fácil, porventura não daria importância a valores que mais tarde vim a considerar essenciais. Refiro-me ao gosto pela autonomia, espirito de sacrifício e capacidade criativa perante circunstâncias adversas.
Algumas pessoas das gerações que vieram depois de mim têm vindo a perder esse amor pela independência, aquele espírito pós hippie que nos forrava a mente e que fazia com que desejássemos ardentemente viver longe da tutela paterna, livres como os pássaros, sem escutarmos constantemente alguém a ditar-nos a forma como tínhamos de viver. Na minha juventude, muitos perderam-se pelo caminho, fosse porque não tivessem horizontes, ambições, planos e força suficiente para levar a vida por diante ou porque circunstâncias demasiado adversas tenham-se revelado obstáculos intransponíveis; outros, pelo contrário, sobreviveram e construíram uma vida com alguma solidez. Os que escolheram o rumo da dependência das drogas, muito usual no final dos anos 70 e durante os anos 80, na sua maioria, faleceram precocemente ou levam uma vida atual lastimável.
Na altura, se alguém com o dom da adivinhação me dissesse que no ano de 2022 existiriam muitas pessoas com 40 anos de idade ainda a morar com os pais, eu provavelmente não iria acreditar. As circunstâncias atuais, pelos motivos que todos sabemos, são péssimas, mas nada que se compare com o inicio dos anos 80, a Troika em Portugal pela primeira vez, o país ainda fora da então CEE, transitando de uma nação quase rural para o universo da Europa desenvolvida, muito focada nos serviços, no comércio e na indústria. O desemprego nesse tempo era endémico e havia muitas pessoas a passar literalmente fome. Os da minha geração recordam-se seguramente, nos anos 80, em Lisboa, ser comum vermos pessoas a comer restos retirados dos caixotes do lixo. Mas - e se calhar até nos faz bem psicologicamente, porque nos defende da lembrança traumática - a nossa memória coletiva é curta e o rodar do tempo faz-nos concentrar em realidades temporalmente mais próximas; e muitos não compreendem, ou ainda não perceberam, que viver é sobretudo competir.
Vivemos num país de subsídio dependentes. Muitos esperam que o Estado Social seja uma espécie de mãe eterna que provê todas as nossas necessidades, como a ave que leva a comida ao ninho. A vontade de lutar, trabalhar, competir para ocupar um lugar razoável na pirâmide social, não é apanágio de todos. São poucos os que se sujeitam a laborar em trabalhos indiferenciados, mesmo sabendo que isso pode ser um trajeto necessário, uma via sacra obrigatória para atingir objetivos maiores.
A imagem do "menino" com 40 anos de idade, cuja mãe ainda lhe leva o leite à cama de manhã, permanece gravada na minha mente. Não tenho nada contra uma mãe levar o pequeno-almoço ao filho, seja qual for a idade que ele tenha. Ainda há poucos anos atrás, sempre que eu passava o fim-de-semana com a minha mãe, estando ela ainda em sua casa, era frequente levar-me um copo de leite com café e uma torrada à cama, quando eu preguiçava até tarde. Sentia nessa sua atitude um gesto de carinho e proteção enorme cuja memória me vai acompanhar até ao final dos meus dias. Para uma mãe, nós somos sempre pequeninos. Sei que ela nunca mais me vai levar o pequeno-almoço à cabeceira da cama, mas foi reconfortante ter tido esse afeto até há poucos anos atrás.
O "menino" com 40 anos que a mãe ainda lhe leva o leite à cama, pode muito bem ser a metáfora perfeita para alguns gentios que se recusam a deixar o lar paterno, alegando que as casas estão muito caras, não há empregos e a vida está complicada. Afinal, para quê deixar o conforto dos pais se têm um ninho acolhedor pleno de facilitismos onde podem resguardar-se das agruras da vida? O problema não está no afeto tremendo que é a mãe levar o pequeno-almoço à cama. O busílis da questão está na dependência total e na incapacidade de lutar pela vida que a excessiva proteção paterna ou materna podem causar. Imagino o meu gato, que nunca caçou - apesar de ser um felino e isso fazer parte da sua genética - nem teve de se preocupar em encontrar a próxima refeição, ser largado na rua entregue a si mesmo, sem qualquer tipo de treino de sobrevivência. O mais certo seria durar uns escassos dias até ser morto por um cão ou atropelado.
Na minha senda musical, toco num grupo com jovens muito empreendedores, que sonham, têm planos de vida, ambições e sobretudo disciplina e foco. É graças a isso que conseguimos aprender e ensaiar canções com bons resultados e cada vez maior rapidez. O sucesso advêm do empenho, perseverança e treino de repetição. Nenhum deles tem insucesso escolar, falta de motivação, preguiça e todos sabem muito bem o que querem para as suas vidas e aquilo que é preciso fazer para atingir os objetivos a que se propõem. Sinto-me honrado por conviver semanalmente com a Beatriz, o Simão e o Adelino, todos com 16 anos de idade, que me aceitam como o baixista da banda, porque partilhamos uma forte empatia que é o gosto pela música. Os meus meninos, como eu lhes chamo, são muito bem dispostos e virtuosos no que à música respeita e não se enquadram no estereótipo do "menino" cuja mãe ainda lhe leva todos os dias o leite à cama. São meninos assim que o futuro precisa.
2022