quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Levar o leite à cama



Nos meus tempos de juventude a maioria de nós o que mais desejava era ser independente. Sonhávamo-nos libertários, encontrar fonte de sustento, arrendar um espaço, uma roulotte, com amigos ou com a namorada, sermos donos do nosso nariz; e, na medida do possível, vivermos de acordo com as nossas regras e valores. Eu, por força de circunstâncias várias, tornei-me autónomo num estádio muito precoce da vida. Antes dos 18 anos de idade já morava sozinho, trabalhava durante o dia, estudava à noite e ganhava para o meu dia a dia. Passei muitas dificuldades, sofrimentos, privações, momentos surrealistas na Lisboa de há mais de 40 anos, mas tudo isso depois de depurado no repositório das memórias, revelou-se um ganho de maturidade e capacidade de resiliência. Se a vida tivesse sido mais fácil, porventura não daria importância a valores que mais tarde vim a considerar essenciais. Refiro-me ao gosto pela autonomia, espirito de sacrifício e capacidade criativa perante circunstâncias adversas.

Algumas pessoas das gerações que vieram depois de mim têm vindo a perder esse amor pela independência, aquele espírito pós hippie que nos forrava a mente e que fazia com que desejássemos ardentemente viver longe da tutela paterna, livres como os pássaros, sem escutarmos constantemente alguém a ditar-nos a forma como tínhamos de viver. Na minha juventude, muitos perderam-se pelo caminho, fosse porque não tivessem horizontes, ambições, planos e força suficiente para levar a vida por diante ou porque circunstâncias demasiado adversas tenham-se revelado obstáculos intransponíveis; outros, pelo contrário, sobreviveram e construíram uma vida com alguma solidez. Os que escolheram o rumo da dependência das drogas, muito usual no final dos anos 70 e durante os anos 80, na sua maioria, faleceram precocemente ou levam uma vida atual lastimável.

Na altura, se alguém com o dom da adivinhação me dissesse que no ano de 2022 existiriam muitas pessoas com 40 anos de idade ainda a morar com os pais, eu provavelmente não iria acreditar. As circunstâncias atuais, pelos motivos que todos sabemos, são péssimas, mas nada que se compare com o inicio dos anos 80, a Troika em Portugal pela primeira vez, o país ainda fora da então CEE, transitando de uma nação quase rural para o universo da Europa desenvolvida, muito focada nos serviços, no comércio e na indústria. O desemprego nesse tempo era endémico e havia muitas pessoas a passar literalmente fome. Os da minha geração recordam-se seguramente, nos anos 80, em Lisboa, ser comum vermos pessoas a comer restos retirados dos caixotes do lixo. Mas - e se calhar até nos faz bem psicologicamente, porque nos defende da lembrança traumática - a nossa memória coletiva é curta e o rodar do tempo faz-nos concentrar em realidades temporalmente mais próximas; e muitos não compreendem, ou ainda não perceberam, que viver é sobretudo competir.

Vivemos num país de subsídio dependentes. Muitos esperam que o Estado Social seja uma espécie de mãe eterna que provê todas as nossas necessidades, como a ave que leva a comida ao ninho. A vontade de lutar, trabalhar, competir para ocupar um lugar razoável na pirâmide social, não é apanágio de todos. São poucos os que se sujeitam a laborar em trabalhos indiferenciados, mesmo sabendo que isso pode ser um trajeto necessário, uma via sacra obrigatória para atingir objetivos maiores.

A imagem do "menino" com 40 anos de idade, cuja mãe ainda lhe leva o leite à cama de manhã, permanece gravada na minha mente. Não tenho nada contra uma mãe levar o pequeno-almoço ao filho, seja qual for a idade que ele tenha. Ainda há poucos anos atrás, sempre que eu passava o fim-de-semana com a minha mãe, estando ela ainda em sua casa, era frequente levar-me um copo de leite com café e uma torrada à cama, quando eu preguiçava até tarde. Sentia nessa sua atitude um gesto de carinho e proteção enorme cuja memória me vai acompanhar até ao final dos meus dias. Para uma mãe, nós somos sempre pequeninos. Sei que ela nunca mais me vai levar o pequeno-almoço à cabeceira da cama, mas foi reconfortante ter tido esse afeto até há poucos anos atrás.

O "menino" com 40 anos que a mãe ainda lhe leva o leite à cama, pode muito bem ser a metáfora perfeita para alguns gentios que se recusam a deixar o lar paterno, alegando que as casas estão muito caras, não há empregos e a vida está complicada. Afinal, para quê deixar o conforto dos pais se têm um ninho acolhedor pleno de facilitismos onde podem resguardar-se das agruras da vida? O problema não está no afeto tremendo que é a mãe levar o pequeno-almoço à cama. O busílis da questão está na dependência total e na incapacidade de lutar pela vida que a excessiva proteção paterna ou materna podem causar. Imagino o meu gato, que nunca caçou - apesar de ser um felino e isso fazer parte da sua genética - nem teve de se preocupar em encontrar a próxima refeição, ser largado na rua entregue a si mesmo, sem qualquer tipo de treino de sobrevivência. O mais certo seria durar uns escassos dias até ser morto por um cão ou atropelado.

Na minha senda musical, toco num grupo com jovens muito empreendedores, que sonham, têm planos de vida, ambições e sobretudo disciplina e foco. É graças a isso que conseguimos aprender e ensaiar canções com bons resultados e cada vez maior rapidez. O sucesso advêm do empenho, perseverança e treino de repetição. Nenhum deles tem insucesso escolar, falta de motivação, preguiça e todos sabem muito bem o que querem para as suas vidas e aquilo que é preciso fazer para atingir os objetivos a que se propõem. Sinto-me honrado por conviver semanalmente com a Beatriz, o Simão e o Adelino, todos com 16 anos de idade, que me aceitam como o baixista da banda, porque partilhamos uma forte empatia que é o gosto pela música. Os meus meninos, como eu lhes chamo, são muito bem dispostos e virtuosos no que à música respeita e não se enquadram no estereótipo do "menino" cuja mãe ainda lhe leva todos os dias o leite à cama. São meninos assim que o futuro precisa.

2022





segunda-feira, 6 de novembro de 2023

FIAT 850



Quando ultrapassamos as seis décadas de vida, começamos inevitavelmente a ter um repositório enorme de memórias do tempo passado.

Nos idos anos 60, uma época que compulsivamente me aflora a mente, talvez por nela ter vivido os tempos mais felizes da minha vida, somente as famílias da classe alta e média alta possuíam automóvel. O carro era um luxo a que muito poucas pessoas tinham acesso, a não ser que fosse uma viatura destinada ao trabalho.

Geralmente os automóveis duravam muitos anos no seio das famílias e não existia este moderno costume de mudar de veículo em cada x anos; tão pouco havia a facilidade de crédito que, nas suas diversas formas, está à disposição das pessoas nos nossos dias. Os Bancos privados eram escassos, pertenciam a famílias muito abastadas, aparentadas com o regime fascista e as taxas de juro cobradas eram altíssimas. Somente se concedia crédito a quem desse garantias reais de poder pagar os empréstimos nas condições requeridas pelos Bancos, geralmente proprietários ou industriais.

A mobilidade social era muito baixa e a linhagem do nascimento, regra geral, definia a condição futura das pessoas. Quem nascia pobre, pobre também seria a sua prole. Para o liceu, iam os filhos das classes alta e média alta, com vista a depois frequentarem a universidade, enquanto os cursos comerciais e industriais destinavam-se aos filhos das classes economicamente menos favorecidas. Ser "doutor" era um luxo de ricos, reservado aos filhos de pais que podiam custear 4 ou 5 anos de Universidade. Os jovens oriundos das classes mais desfavorecidas frequentavam preferencialmente um ensino que rapidamente lhes desse acesso a uma profissão e ao mercado de trabalho.

Recordo-me que eu tinha 7 anos de idade quando o meu pai comprou o seu primeiro automóvel. Era um Fiat 850, modelo de 1968, branco frigorífico, com os estofos vermelhos e o motor traseiro. Aquecia muito em filas de trânsito ou em subidas que exigissem esforço do motor e o espaço interior era bastante reduzido. No dia em que o meu pai o comprou, a família (os meus irmãos mais novos ainda não eram nascidos) decidiu ir ao Cristo Rei para estrear a novíssima máquina italiana, vinda de Turim para o agente da Fiat em Almada. Nunca me esqueci da matrícula - EF-42-31, pois fixar matrículas era um dos grandes passatempos da minha infância.

O meu pai, no início, era bastante maçarico a conduzir e enervava-se com facilidade, mas ninguém, para além da minha mãe, podia rir-se das suas constantes aselhices. Há mais de 6 anos que ele já não está entre nós, e, ainda que consiga ler os meus escritos, com toda a certeza não vai levar a mal que eu conte este episódio por ele protagonizado na estreia do 850.

Todos já estavam a bordo, o meu pai colocou o motor em funcionamento, engrenou a marcha atrás, não sem antes arranhar várias vezes a mudança da caixa de velocidades, mas o carro parecia não querer sair do mesmo sítio. Ele acelerava e nada. Entretanto começava a cheirar a queimado e o nervosismo instalava-se entre todos os membros da família. O meu pai bradava aos céus que a porcaria do carro novo já estava a dar problemas logo no primeiro dia.

Providencialmente, o dr. Silvestre, advogado com escritório frente à nossa casa, junto ao Externato Frei Luís de Sousa, amigo do meu pai e dono de um fabuloso Mercedes negro, passava na rua naquele mesmo instante. Foi ele quem disse para o meu pai destravar o carro, caso contrário nunca iriamos sair dali.

Lembro-me que a manobra de marcha à ré teve a assistência de grande parte dos populares que por ali passavam. Ditavam ordens para o meu pai virar o volante para a direita e depois para a esquerda. No percurso até ao icónico monumento da cidade de Almada, o carro foi abaixo inúmeras vezes, mas chegámos a casa sãos e salvos. Por ordem expressa da minha mãe, o pai teria de praticar sozinho durante mais algum tempo até que a família pudesse viajar em segurança. E assim foi. Ele, entretanto, tornou-se um excelente condutor e levou-nos muitas vezes pelas estradas da Europa e do Norte de África. Em 1971, o 850 foi trocado por um Ford Cortina, um sedan com três volumes que durou muitos anos na sua posse.

Em Almada, as famílias do nosso convívio e as pessoas em geral, eram identificadas pelo automóvel que possuíam. Os Inácio tinham um Taunus 12 M, com uma cor azul peculiar, quase verde; os Lamelas um Opel 1700 Rekord cinzento mate; os Valverde um Austin 1300 verde azeitona; os Rebelo um Ford Cortina 1300 branco; os Santos um Opel Kadett azul claro e assim sucessivamente. Existiam muito menos automóveis e os veículos eternizavam-se na posse dos seus proprietários. Quando alguém se queria referir a uma pessoa que o interlocutor não estava a reconhecer dizia-lhe: - É aquele que tem um Taunus 20M azul escuro!

Os tempos felizmente mudaram para uma maior equidade social, a disparidade entre pobres e ricos reduziu-se bastante e aqueles que se queixam das atuais condições de vida - felizmente não era o caso da minha família - não imaginam o que era ser pobre há mais de 50 anos atrás. Ninguém consegue ser feliz sem ter as suas essencialidades garantidas, bem como a saúde preservada, mas a abastança não é necessariamente um passaporte para a felicidade.

Creio veementemente que é possível ser-se feliz vivendo com os bens materiais essenciais, desde que tenhamos família, harmonia, amor, ética e doses substanciais de alimento espiritual. Se me fosse possível escolher uma viagem na máquina do tempo, não me importava regressar àquelas manhãs chuvosas de outono em que o meu pai me levava no Fiat 850 até à Escola Conde Ferreira. Sentia-me o menino mais importante do mundo quando chegava ao portão da escola.




sexta-feira, 6 de outubro de 2023

De novo a Justiça...


Se perguntarem a alguém o que entende por Justiça, o mais certo é que todos se sintam aptos a responder. Mas a resposta, a meu ver, não é assim tão fácil e evidente; e é bem provável que as opiniões resultem díspares e acabem por refletir um pouco o pulsar de cada um em relação ao modo como encara aquilo que acha que deve ser “o viver” dentro do tecido social.

O conceito de «Justiça», mercê da permeabilidade de várias correntes doutrinárias, tem, ao longo dos tempos, vindo a sofrer contínuas alterações – que lhe alteraram a forma e a substância - em resultado do espírito da época e das correntes de pensamento mais fortes que em cada momento vigoraram.

Tenho por assente que a crença daquilo que é justo e injusto [sem querer entrar em querelas impróprias, além de chatas e inúteis, acerca da validade e anterioridade do Direito Natural e Divino, como realidades metafísicas e superiores aos ditados humanos], não é uma constante mas algo que acompanha a evolução das mentalidades e sobretudo das novíssimas conveniências e contingências que vão surgindo e metamorfoseando-se.

A definição daquilo que é justo ou injusto, surge como uma espécie de plasticina apta a moldar-se e transfigurar-se ao sabor de realidades bem mais sórdidas do que o conceito de Bem. O resultado de tudo isto é evidente: o que dantes era considerado injusto, hoje pode ser valorado de forma oposta e vice-versa, tudo à bolina de conveniências que, muitas vezes, pouco ou nada têm a ver com uma preocupação altruísta do legislador em criar uma sociedade mais igualitária – a igualdade será, porventura, um dos paradigmas do conceito de Justiça, mas, ainda assim, também ela padece de imensas interpretações.

Este conceito, após interiorizado no tecido social, deveria presidir à feitura de qualquer normativo jurídico, para servir a finalidade de “fazer justiça”, que é, afinal, aquilo que todos nós, individualmente ou em coletivo, queremos: a consagração dos valores que temos como nossos, com os quais nos identificamos e reconhecemos, alicerçados na ideia de BEM, refletidos em normativos que devem ser cumpridos sob pena da sanção individual, imposta pelo coletivo na pessoa do Estado.

Um dos grandes objetivos que habitualmente se consideram inerentes ao Direito é a Justiça. Haverá poucas palavras com ressonância social e histórica mais majestosas, e poucas haverá também que sejam mais difíceis de analisar racionalmente e prescindindo dos estímulos emotivos que suscita.

Podemos, aliás, utilizar a aceção justo/injusto em diversos sentidos: podemos, por exemplo, dizer que uma sentença judicial é justa no sentido de que nela se aplicou a lei, sem entrar em juízos de valor sobre esta. Neste sentido justo equivale a legal, o que não é necessariamente verdade. Noutra vertente, chamamos justo um ato ou mesmo à própria lei enquanto respeita um critério básico de igualdade. Este significado é tradicional no pensamento ocidental desde Aristóteles e exprime-se no principio de que: «Os iguais devem ser tratados como iguais e os desiguais como desiguais». Nenhum Direito dito «civilizado» deixará de levar em linha de conta esta máxima anterior.

Mas, com salvaguarda dos direitos ditos inalienáveis de carácter prioritário, como sejam: o direito à vida, à propriedade privada, à liberdade de expressão e dos diferentes credos religiosos, manifestações políticas incluídas, sinto, em tese geral, um progressivo decrescendo nos arautos inerentes a todas as liberdades conquistadas - o mais das vezes com o sacrifício de milhares de vidas - e que espelham a civilização ocidental e humanista que conhecemos, onde vivemos e em que acreditamos.

A Justiça e a Segurança, encaradas tradicionalmente como traves mestras da existência do Direito, e como um corpo de normas apto a regular as relações entre sujeitos num determinado grupo social, também tem servido de álibi aos maiores abusos.

Em nome do presuntivo interesse do coletivo, saído de eleições democráticas, aquilo que se assiste paulatinamente é ao favorecimento das elites políticas e o enriquecimento progressivo e constante da classe economicamente dominante.

Ler John Rawls, ou qualquer outro filósofo político bem intencionado e iluminado por astros flamejantes, não basta. Por vezes, quiçá não seria necessário o ressurgimento de uma ação coletiva para acabar com um Direito injusto; e, caso obtivesse êxito, repor uma nova legalidade, desta feita baseada em conceitos que tivesse efetivamente a ver com a ideia de BEM.

Creio que este conceito não é de interiorização tão difícil, assim fosse possível eliminar à nascença a nossa propensão genética para o egotismo, a visão umbilical que temos da vida e o medo dos "radicalismos", das mudanças abruptas, mas seguramente eficazes. Julgamos ficar a salvo, inertes, num eterno registo de preferência por uma "paz social" podre - "eles, os políticos, são todos iguais!

O Direito do mais forte é, infelizmente, o único Direito que parece auspiciar um futuro risonho; e deixem-me rir quando oiço falar em Direito Internacional e na possibilidade de se aplicarem sanções, por incumprimento, a países que detêm um poderio militar e económico que subordina os restantes.

Talvez a manutenção da ideia peregrina de que existe Direito Internacional Público e a possibilidade de o aplicar coercivamente seja, afinal, a ideia mais risível que alguma vez o Homem fantasiou da Justiça…

Sou formado em Direito e....em desilusão, tantos os anos, as teorias, os livros, e os manuais de boas intenções que li, decorei, e que sempre esbarraram contra esta regra implacável: o mais forte (quase) sempre vence.

Por isso mesmo, para grandes males, grandes remédios e a História testemunha-nos ser sempre esse o antídoto único e eficaz. Almejar uma mudança no tecido social sem fazer uma revolução, isto é, sem mudar radicalmente a balança negativa dos desequilíbrios e injustiças flagrantes, é o mesmo que desejar que uma árvore floresça e dê frutos sem lhe podarmos os ramos podres e previamente prepararmos a terra. E, por radical que a minha opinião surja aos olhos de quem me lê, todos sabemos quão verdadeira é.

Isto é: se gritamos contra as injustiças cometidas contra nós, se nos indignamos com a corrupção que medra na classe política, se nos conformamos com a fome de muitos e a aviltante e cada vez maior riqueza de outros; se nada fazemos e continuarmos a pensar que a correção destas desconformidades esquizoides resolvem-se com eleições - mais do mesmo, temos, afinal, aquilo que merecemos. Nós somos quase onze milhões. Quantos são eles, numericamente falando?





quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Como é que o teu pai se chama?



Efeméride

- Como é que o teu pai se chama? Importas-te de repetir?

Carlos Fernando Luís Maria Victor Miguel Rafael Gabriel Gonzaga Xavier Francisco de Assis José Simão de Bragança Sabóia Bourbon e Saxe-Coburgo-Gota, foi o penúltimo Rei de Portugal. Nasceu em Lisboa, no Palácio da Ajuda, a 28 de Setembro de 1863, e morreu na mesma cidade, no Terreiro do Paço, a 1 de Fevereiro de 1908.

O nosso penúltimo rei não morreu de morte natural, foi chumbado pelo Manuel Buíça e outro comparsa, quando seguia numa caleche aberta no Terreiro do Paço, no regresso de Vila Viçosa. O regicídio encontra-se assinalado numa placa discreta no local onde aconteceu o atentado.

O monarca D. Carlos tinha um nome do tamanho do comboio de Chelas, pelo mesmo motivo contrário que eu somente tenho dois nomes próprios e dois apelidos. As pessoas de sangue azul, aparentadas com a nobreza, têm imensos nomes porque são o resultado dos muitos cruzamentos com gente de linhagem com vista a apurar o pedigree. O pior de tudo são os barrabotas, que não têm onde cair mortos, mas apresentam-se forrados de catrefadas de títulos, apelidos e nomes sonantes.

Tratar o nosso filho por menino ou por você é superlativar às últimas consequenciais a presunção de que se é nobre e diferenciado da arraia miúda. As nossas tias de Cascais e as socialites são eximias nisso. Mas aqui pela cidade do Lis também conheci uma fulana que, além de flibusteira, mentirosa e intriguista, arrogava-se ser Condessa da Marinha Grande e doutoranda, sem nunca ter metido os pés numa Universidade. O ridículo, infelizmente, nunca conheceu limites, nem tampouco a noção, pelo próprio, do mesmo.



quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Baleia Azul



A baleia azul, como todos sabemos, é um mamífero marinho e o maior animal que habita o planeta, podendo pesar mais de 300 toneladas e atingir os 30 metros de comprimento. Acontece que há cerca de uma década, ao que parece, numa rede social russa, nasceu uma espécie de jogo, extremamente perigoso e idiota, associado normalmente a adolescentes, a que se deu o nome de “Baleia Azul” e que nada tem a ver com o referido mamífero aquático. A brincadeira implica uma série de desafios muitas vezes perigosos com consequências potencialmente fatais, entre os quais automutilação. O jogo já terá provocado, um pouco por todo o mundo, mas principalmente na Rússia e no Brasil, dezenas de mortes.

Os participantes no jogo são, regra geral, recrutados entre adolescentes com problemas de autoestima, comportamentos autolesivos, depressão ou isolamento. Quanto mais frágeis, mais aptos a entrarem neste jogo perigoso, que os incita à automutilação e ao suicídio.

Apesar de ter pouca adesão em Portugal, também por cá deixou marcas. Segundo li, são cada vez mais os rapazes e as raparigas que chegam às urgências hospitalares com o corpo cortado com navalhas, facas, lâminas e x-atos.

Normalmente são casos de miúdos em grande sofrimento psicológico, a atravessar períodos de depressão e tristeza que os fragiliza e transforma em alvos fáceis para jogos do mesmo género.
No passado domingo, um homem de 35 anos de nacionalidade britânica foi encontrado morto, com marcas de esfaqueamento, no meio da floresta de Pedrógão Grande, no distrito de Leiria. O suspeito, de 32 anos, entregou-se à Guarda Nacional Republicana e revelou que o crime ocorreu na sequência de um jogo das redes sociais, conhecido como “Baleia Azul”.

Pelos vistos, também os adultos são vitimizados por este jogo hediondo e completamente insano, o que nos leva a questionar: como é possível influenciar pessoas a este ponto?



Guerra



Em tempo de guerra - it's an old saying, como dizem os ingleses - enquanto uns choram os outros fabricam os lenços. São os comentaristas de serviço e os de ocasião, que ganham fortunas por bolsarem opiniões e adivinhações nas várias estações televisivas; são as empresas de energia que têm lucros fabulosos por conta da subida dos preços; é o governo que obtém uma receita fiscal com resultados inesperados e sem precedentes; é a industria de armamento e, de um modo geral, todas as empresas ligadas à produção conectada com a guerra que arrecada lucros gigantescos; são as empresas fornecedoras de bens alimentares, com grandes stocks comprados a preços baixos, que têm lucros imensos ao venderem os seus produtos a preços inflacionados. Se demorasse mais tempo a refletir, certamente que me recordaria de outras pessoas que obtêm vantagens com o atual conflito. A guerra sempre foi uma grande oportunidade de negócio.

No final de tudo isto, quem sofre, quem se lixa, em português vernáculo e por todos entendível, é sempre o consumidor final, aqueles que não podem fazer repercutir os aumentos dos preços em ninguém; os que estão na base da pirâmide social, com especial enfoque para os mais desfavorecidos, economicamente tornados ainda mais vulneráveis face todos estes acontecimentos.

Não tarda, virá o incumprimento das prestações bancárias, as famílias que perdem as suas casas, a fome, o desespero, o rasgar de uma parte do tecido social. O mundo de 2022 ficará na História como um ano infame.

Inevitavelmente, muitas vezes é preciso fazer a guerra para conquistar a paz. E sempre assim foi ao longo dos séculos. O contrário disso, a submissão, a aceitação da chantagem, resultaria numa situação muito pior. O mundo democrático, livre, com todos os defeitos que tem, que ainda assim é o melhor modelo societário que conheço, deixaria de existir. O estranho é que a grande maioria das pessoas com quem falo, está mais interessada nos resultados desportivos, nas realidades comezinhas do dia-a-dia, porque acha que ver noticias sobre a guerra é depressivo e indispõe. Não é pelo facto de nos tentarmos alhear dos problemas que eles desaparecem e sendo um facto que nenhum de nós tem uma solução mágica para remediar o que está a acontecer, nada justifica a alienação da realidade.

Fosse eu substancialmente mais novo, e quem bem me conhece sabe que não faço afirmações vãs, estaria provavelmente na Ucrânia a defender a Democracia e os valores em que acredito e baseio a minha vida.

2022




2022

domingo, 24 de setembro de 2023

A F da FDL



Estando eu numa clínica privada cá do burgo, aguardando consulta, eis que reencontro a F., magistrada judicial na cidade, antiga colega da FDL, desde sempre moradora na cidade do Lis. Depois das perguntas triviais - só nos encontramos de tempos a tempos e sempre por casualidade -, contou-me, com os olhos marejados de lágrimas, que tem o filho de 16 anos com graves problemas no estômago e o seu marido, com 56 anos de idade, acabou de remover o dito órgão, face a um cancro maligno que entretanto lhe surgiu.

À F., sempre lhe conheci um temperamento forte e resiliência - sei que apesar de estudar à noite na Faculdade, trabalhar e morar a mais de 150 kms de distância, nunca pensou desistir do curso, do trabalho ou do namoro ( que na época já mantinha com o agora marido e pai dos seus filhos). No entanto, nunca a tinha visto tão fragilizada e esfrangalhada dos nervos. Tudo isto, acontecido em pouco tempo, deitou-a abaixo.

Despedi-me da F., falámos apenas alguns minutos e, no caminho de regresso a casa, não pude deixar de pensar sobre o quão frágeis somos. O que hoje é, num instante deixa de ser. Não há certezas absolutas, planos e vidas que não possam desmoronar em pouco tempo. Face às circunstâncias da sorte, ou da falta dela, a nossa vida pode cambiar num instante e ninguém está realmente preparado.


quarta-feira, 2 de agosto de 2023

A rapariga do lenço à pirata



Já há muita gente na sala e ainda há pouco a manhã começou. Tira uma senha e diz bom dia ao rapaz que está atrás do balcão. É um moço bem parecido, bastante novo, tem dois piercings, um no nariz, outro na sobrancelha esquerda. É um funcionário diligente, simpático e muito educado.

Ele recorda que, quando era jovem e saudável, também ele era belo. As pessoas olhavam-no na rua e as raparigas, quando seguiam em grupo, viravam a cabeça para trás e davam risadinhas. Ele corava e seguia o seu caminho, lesto, com os olhos ainda mais firmes no chão.

Senta-se numa cadeira vaga, com a senha número setenta na mão e dispõe-se a aguardar a chamada. Pela primeira vez olha com mais atenção em seu redor. A numeração ainda vai nos cinquenta e pouco mas as funcionárias das análises trabalham rápido a extrair a seiva vital. O numerador eletrónico avança com rapidez, à razão de um número por cada três minutos. Ele cronometra o tempo e tenta calcular quanto falta até chegar à sua vez.

Aflige-se com o cenário que o rodeia. Há tanta gente doente! Será que os que estão neste momento lá fora, longe deste ambiente insano, os que ainda trabalham, sorriem despreocupadamente, divertem-se, amam, conduzem a velocidades estonteantes e espreguiçam nas esplanadas da cidade, pensam que vão ficar eternamente sãos, como se fossem deuses? Saberão eles que as coisas não são assim? Que a sombra da morte surge sempre algures numa curva da vida...?

Não param de entrar mais pessoas no espaço cada vez mais atulhado. Os funcionários continuam simpáticos, calmos e diligentes para com os pacientes, como se estivessem a atender clientes numa loja comercial. Ele fica contente por ver que, afinal, as mentalidades sempre mudam; que os jovens trazem uma mais valia aos serviços públicos, devido à sua maior instrução e diferente postura.

Quer relatar o que está a acontecer diante dos seus olhos, ele que é um vulgar utente de um hospital. Aqui não há doutores nem engenheiros, ricos ou pobres: são todos doentes e carecem de tratamento.
Sofrimento é: olhar para o canto da sala e ver uma rapariga – não terá mais de vinte e poucos anos – magricela, a pele como um pergaminho, num rosto de olheiras cavas, como duas fundas negras, expandindo um olhar tristonho, vago, como se fora uma lâmpada apagada.

Acompanham-na os pais. Ampara-se no ombro da mãe. Andar é um custo. Tudo é um custo. O pai carrega, dentro de envelopes acastanhados enormes, os cardápios dos exames, das radiografias, dos tacs, das ressonâncias magnéticas – ele receia que tudo não seja senão um périplo de notas negativas, más notícias, chumbos nas disciplinas vitais à continuação da saúde, da vida, daquela rapariga tão jovem. A rapariga aparenta um estado irremediável.

Ele quer, sobretudo, evadir-se desta visão que o obriga começar a pensar. O lenço às flores. O lenço que ela usa na cabeça, enrolado à moda dos antigos piratas que dantes povoavam o mar das Caraíbas. Um lenço posto de modo tão simples. Um símbolo. O símbolo da quimioterapia.

As coisas de que ele mais gosta são, não necessariamente por esta ordem: os livros; a escrita; as artes; as flores; o campo; o mar; os rios e toda a água corrente; a fruta deliciosa que cai madura das árvores; a brisa que sopra suave no final da tarde; as horas na relva a ver o céu, sonhando; amar e ser amado. Gosta de beijar e ser beijado. Disso gosta muito.

É fácil desviar o olhar. Fixá-lo no branco das paredes, abrir o livro fininho que sempre transporta na mão. Dar uma mirada no final da novela, apaziguando uma curiosidade irreprimível. Olhar repetidamente os ponteiros do relógio, para nada. Remexer no telemóvel, como se fosse um tique e apagar mensagens e chamadas perdidas que já nada significam. Apagar alguém, desse modo, seria fácil. A morte, afinal, mais não é do que uma súbita falha de luz, de energia.

Fecha os olhos. Sempre detestou agulhas. Sente a picada. Dói. O que é a dor? A dor é subjetiva e ninguém a sente do mesmo modo. Ao seu lado há mais lenços de pirata. Alguns doentes não têm sobrancelhas, nem luz, nem gordura, nem consistência, nem esperança.

A vida é esperança. Viver implica (ter) esperança.

Lá fora está frio. Muito frio. O sol brilha ténue no meio do dia azuláceo. Apetecem sempre dias assim. Sente-se vivo. É por ora tudo quanto lhe importa.

Lisboa 2004





Edelweiss


Ontem, em Leiria, passou por mim uma mulher. Tinha os olhos perfeitamente azuis, como dois lagos profundos, os ossos da cara largos, os lábios desenhados e vivos, com um andar desengonçado e um indisfarçável ar germânico. Presumo que fosse alemã ou austríaca.

Recordei uma das minhas primeiras viagens feita há bastantes anos à Áustria. Em Salzburg, armado em saloio, fui visitar, entre outras maravilhas, o Palácio da família Von Trappen – um percurso lindíssimo pela montanha – e, tal como os camaradas turistas, engoli todas as historietas que a guia local, que falava um péssimo castelhano, entendeu contar – o meu alemão é deplorável e datado.

Edelweiss, sim é esse nome que tinha em mente, é uma flor que se pode encontrar no alto das montanhas e Alpes da Suíça, da França, da Áustria e da Itália. Desenvolve-se de modo espantoso nos cumes mais elevados da montanha e o seu nome significa "branco precioso", pois trata-se de uma linda flor em formato de estrela.

Dizem que quando se quer presentear alguém com algo que signifique amor ou amizade eterna, oferece-se uma flor de Edelweiss a essa pessoa, a flor eterna. Diz-se, também, que a sua duração, depois de seca, é superior a cem anos.

Tenho uma Edelweiss, dentro de uma caixa de vidro, adquirida há cerca de 18 anos numa loja de lembranças, em Salzburg, na Áustria, e, realmente, não noto que tenha ocorrido qualquer mudança na sua morfologia desde então. Hoje, mesmo, li – facto que desconhecia em absoluto – que a dita flor já é considerada Património da Humanidade, pela sua raridade e carga simbólica que encerra.

Sei que a Edelweiss inspirou poetas um pouco por todo o mundo e uma das composições mais lindas e intemporais é essa que leva o nome da flor: "Edelweiss" - tão bela e emocionante quanto a flor. A música é da autoria de Richard Rodgers e Óscar Hammestein, e é realmente maravilhosa. Pertence ao musical The Sound of Music, de 1959, interpretada por Christopher Plummer, que todos quantos pertencem à minha geração recordam - " Música no Coração" e em "brasileiro", o nome mais foleiro com se podia batizar um dos filmes mais premiados de sempre: "A Noviça Rebelde".


domingo, 23 de julho de 2023

A distância de um abraço


Há doze anos que percorro com alguma regularidade a estrada entre a cidade do Lis e Almada. Sempre que posso, evito a autoestrada e opto pela nacional 1. Atualmente chamam-lhe IC 2, mas nos meus tempos de menino, quando em família viajávamos até ao Porto ou em excursões à Serra da Estrela, chamávamos-lhe simplesmente a "estrada para o Porto". O troço da autoestrada entre Lisboa e Vila Franca de Xira, foi inaugurado no ano do meu nascimento, mas somente em 1991, volvidos 30 anos, as duas maiores cidades do país ficaram ligadas por autoestrada.

Nos anos sessenta, a modernidade acabava quando deixávamos o troço da autoestrada em Vila Franca de Xira e nos embrenhávamos na estrada nacional, enfileirados atrás dos vagarosos camiões que transportavam mercadorias entre as duas cidades principais. A "Ponderosa", para os lados de Alenquer, era paragem obrigatória dos excursionistas. Um eventual arranjo entre os donos do café/restaurante e os motoristas, que a mim, criança, me passava despercebido, fazia com que todos os autocarros de excursão parassem naquele lugar, para satisfação das necessidades fisiológicas e um cafezinho.

Se a paciência abunda e a pressa de chegar não é soberana, vou sempre pela nacional. Conduzo uma Yamaha X MAX 250cc que, além de ser bastante confortável, económica e segura, faz velocidades de cruzeiro relativamente baixas, o que permite o deleite integral da paisagem. Quando conduzia a Yamaha FJR 1300 ou mesmo a Aprilia Caponord ETV 1000, chegava mais rápido ao meu destino, mas gastava incomensuravelmente mais combustível e as únicas sensações que retenho dessas viagens, são as ultrapassagens estrondosas e uma estranha incapacidade para conduzir no respeito dos limites de velocidade permitidos.

Hoje tenho tempo. É bom ter tempo e não viver confinado à ditadura dos prazos, dos horários, do tempo controlado e imposto à nossa vontade.

Sigo direito à Batalha e passo rente ao mosteiro, que agora tem umas barreiras acústicas celebérrimas, para salvaguarda dos impactos de ruído e poluição sobre o Mosteiro de Santa Maria da Vitória, declarado património da Humanidade pela UNESCO. E tudo por causa do "impacto ambiental" - adoro esta expressão, mas ainda gosto mais do vocábulo "sustentável". Tudo o que não seja "sustentável", nos dias que correm, não presta, pelo menos até à invenção de uma nova expressão ou teoria.

São Jorge, Cruz da Légua e Aljubarrota vão ficando rapidamente para trás. Saí de casa às 13h00, pois almocei bastante cedo, e sigo viagem em bom ritmo. Há pouco trânsito. Tenho o depósito atestado e não conto parar. A manhã, a principio bastante nebulosa, deu lugar ao início de uma tarde solarenga com uma temperatura convidativa ao passeio. Depois da Benedita e da Venda das Raparigas - o meu falecido pai tecia sempre piadas de franco mau gosto cada vez que passámos por este lugar - a paisagem começa a ser deveras encantadora. À minha esquerda, na Serra de Aires e Candeeiros, as enormes ventoinhas eólicas não cessam de rodopiar, enquanto um ou outro estorninho faz rasantes à roda dianteira da mota e os mosquitos vão-se estatelando na viseira do capacete. Pouco antes do corte para Rio Maior, a Serra dos Candeeiros fica para trás e a sensação de nos encontrarmos no Ribatejo adensa-se. A seguir vem Alcoentre, terra sobejamente conhecida por albergar um dos maiores estabelecimentos prisionais do país; e depois Aveiras de Cima e Aveiras de Baixo, terra que só tem significado para mim como nome dado a uma estação de serviço da autoestrada.

Sigo na direção da Azambuja - terra da antiga fábrica da Ford - e Vila Nova da Rainha, que tem um avião de caça à beira da estrada, para relembrar que é o berço da aviação portuguesa e onde existiu a primeira escola militar de aviação. Depois, segue-se o Carregado, a localidade com o maior outlet do país e onde teve início a primeira viagem de comboio em Portugal, Castanheira do Ribatejo e finalmente Vila Franca de Xira. Agora, à medida que me aproximo de Lisboa, o trânsito é muito menos fluído. As paisagens campestres dão lugar a edifícios feios, urbanizações caóticas, lixo urbano, grafitis nas paredes, cartazes rasgados e estradas esventradas. Um pouco por toda a parte a pegada humana faz-se sentir. Os detritos da nossa existência tomaram conta do que outrora foram campos semelhantes àqueles que alguns quilómetros havia deixado para trás. Pouco já há para saborear no que à paisagem respeita e o interesse é chegar rápido.

Deixo para trás, Alhandra, Vialonga e Póvoa de Santa Iria. Todas partilham da mesma fealdade pragmática dos subúrbios. São ilhas onde se concentram pessoas de baixos recursos que não conseguem comprar ou arrendar casa na capital. De semáforo em semáforo, vou volteando pelo meio do trânsito, com manobras próprias de muitos anos de motociclista, até encontrar uma escapadela para a 2ª Circular em direção ao Eixo Norte-Sul. Antes das 15h00 já me encontro em cima da Ponte 25 de Abril a saborear uma aragem fresca que alivia o calor que sinto na cabeça. Já só penso em ver-me livre do capacete.

Subo a Avenida Bento Gonçalves e estaciono a mota frente ao Café Central de Almada. Acabei de perfazer cerca de 180 kms. A primeira personagem com que me deparo é o Zé Sobral. Tanto quanto recordo, nos anos 70, já invariavelmente o avistava todos os dias naquele local. O Zé Sobral mora a poucos metros do Central e fez toda a sua vida naquela circunscrição geográfica. Dantes, sei que vendia droga e ocupava-se de pequenos delitos, no intervalo de outros expedientes mais honestos. Encontro-o bastante magro, pele e osso, as tatuagens dos braços e do pescoço mirradas na pele queimada por muitos anos de sol, mas o mesmo semblante de sempre. Arruma cadeiras numa esplanada do outro lado da praça, levanta as mesas e varre o chão. Ao que me disseram, ganha para o tabaco e para alguma bucha. Tem uma doença qualquer. Não parece reconhecer-me ou, se calhar, finge não saber quem eu sou. Desvio o olhar em sinal de respeito pela sua condição e entro no café. Ao balcão peço um bolo podre. Há cinquenta anos atrás, elegi-o como o bolo da minha predileção e sempre que me davam uns trocos, juntava dinheiro para comer um. À época, era das maiores satisfações que a vida me dava. Uma homenagem ao travo das coisas simples.

A X Max 250cc ficou no parqueamento subterrâneo do Pingo Doce, pois Almada é terra de larápios. Logo em frente é a casa da minha mãe. Subo no elevador e rodo a chave na porta. Entro na sala de estar e a minha velhinha nem me deixa pousar a mochila. Levanta-se, abraça-me e diz: "Meu rico filho. Tenho rezado tanto por ti!". Também a abraço e ficamos juntos no sofá a ver a televisão sem som. A mãe é surda e não acha necessário subir o volume do som. E eu não me importo. Estamos juntos.

Almada, 2018