sábado, 18 de junho de 2011

Odeta


O teu nome tem por étimo a palavra Ode, aquela composição de poesia maior destinada ao canto? Não creio. A tua graça mais parece conotar-se com um género novo: A Ode menor. Se não existirem Odes menores, como, aliás, estou convicto ser verdade, arrogo-me autor deste neologismo: Odeta - com essa novíssima significação. Se te chamasses Odete, caberias no meu dicionário antroponímico, que vive, algures, obeso, em permanente estado de hibernação, refastelado em cima de livrinhos, magriços e resignados, esmagados pelo seu peso. O teu nome não consta lá. É mais uma daquelas aberrações vindas de um qualquer Conservador do Registo Civil, infestado de carepas, em estado de artrite dolorosa, virado para os francesismos tardios. Nem tens lugar no lupanar dos nomes mais feios que por lá existem: Odeberta, Odefrida, Odorica...És, sem mais mistérios, uma vogal truncada, pela mera infelicidade de um descuido ortográfico.

Odeta. É estranho ter de chamar-te assim. Apetece-me rebaptizar-te: Odete, mas não posso, não posso mesmo. Tenho de chamar as pessoas pelos seus nomes correctos. É apenas por uma questão de coerência, nada mais. Não me interpretes mal. Sabes onde eu estava da primeira vez que falei contigo? Estava junto a uma gaiola enorme, cilíndrica e esguia, que afunilava até formar uma espécie de campânula, repleta de pássaros de bico de lacre, a assistir a uma chilreada tão grande que quase tinha de gritar para me conseguires ouvir. O dia estava lindo. Um sol esplendoroso flamejava ao de leve os pêlos dos meus braços, criando em mim uma sensação de energia tão agradável, que um estremecimento percorria em constante todo o meu corpo. Era o alvor de uma estação neófita, parida nas faldas esconsas das olheiras cavas e depressivas de um Inverno venéreo: estação escura, medieva, sempre acocorada com um medo inexplicável do poetar do sol. Eu a assistir a tudo isto e tu metida em casa. Francamente, Odeta, com um dia assim!

Odeta. Eu sei que ambos comungamos do mesmo padecimento, desbotado e feio, que habita dentro de nós, como uma vontade férrea, aclimatando-se ao nosso organismo, tal como o parasita vive à custa do seu hospedeiro. É isso, Odeta. É essa empatia que nos une, o íman que nos magnetiza para o alvoroço de um conhecimento mútuo. Receio não conseguir resistir ao teu apelo, enquanto me enleio neste solilóquio, passeio de adágio, que percorre estradas bordejadas por enormidades a que chamamos árvores: formas excêntricas, nodosas, com raízes que há muito se apoderaram do asfalto, à outrance, apelidadas com nomes hoje indisponíveis. Não me admiraria se, uns metros mais adiante, encontrasse refastelado num destes bancos de pedra esculpida, um dos meus parágrafos, aqueles que há muito lhes perdi o rasto, de perna traçada, a dar, a dar, com um chapéu de til enfiado na cabeça, a cumprimentar de forma circunflexa damas imaginárias. Tudo se me assemelha possível neste jardim onde trouxe a passeio a minha fantasia.

Não imagino, sequer, um coup-de-foudre, uma atracção por ti, que não seja um galanteio confortável, já vestido de robe e embrulhado num edredão, o estritamente necessário aos propósitos que ambos comungamos como tácitos. É talvez essa frontalidade, esse sentimento em carne viva, um querer adulto, sem hiatos, que me atrai em ti. Imagino-te sem toilette, sem artefactos ditados pelos supetões imperiais da moda. Faço ideia que sejas uma mulher simples, pragmática, não derrotada pela fealdade do teu próprio nome e tocada pela interioridade. Será que me engano assim tanto, Odeta? Continuas a achar que eu tenho um conhecimento privilegiado e intuitivo da alma humana? Quando me disseste isso, por escassos momentos, imaginei-me Rasputine: uma apócrifa reencarnação daquele curandeiro e visionário russo que, no início do século XIX, conquistou grande influência sobre o Czar e a Czarina, tendo acabado assassinado pelos seus detractores, movidos pela inveja e pelo ciume. Nem sei porque pensei tudo isto, sinceramente não sei. Acho que tenho de comutar os faróis de halogéneo da clarividência, para conseguir encontrar o cancelo de saída deste jardim de deambulações. Nem mesmo quando o sol se agacha à sombra das nuvens o jardim ganha um halo verossímil. Estes sons estridentes que cruzam o ar, como o grito do tucano quando faz soar o bico comprido; esta aragem fresca que murmura no chapéu das árvores; os raios de luz que trespassam a folhagem, tudo isto incita em demasia a minha tubular imaginação.

Cruzei os pórticos de um verde solífugo, sem olhar para trás, e achei-me diante de mim. Já era o entardecer. Junto aos muros, aglomeravam-se mulheres da aldeia, estridentes, buço bucólico, navalha em riste, sentadas em pose de excursão finda. Uma em especial tinha a idade no olhar. Penso em quanto choveu sobre a minha infância desde que estas silabas tropeçam agora no lusco-fusco. Desde então, o trigo já cresceu sobre o meu rosto; e, quanto mais envelheço, mais pueril é a luz, mas essa vai comigo. Também já me sentei algumas vezes às portas do crepúsculo, mas quero dizer que o meu comércio não é o da alma. Há igrejas de sobra e ninguém nos impede de lá entrar. Não me peçam a mim, que só conheço os caminhos da sede, que mostre a direcção das nascentes. Hoje, quero apenas adormecer sobre uma profusão de girassóis, e várias já foram as negligências do meu olhar. Sabes, Odeta. Só o desejo e a imaginação impedem a perversão da alegria. Pensa nisso.

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