terça-feira, 18 de agosto de 2015

Elegia de um funcionário



A Elegia de um funcionário

É necessária uma dose de imaginação reforçada - como aquelas vitaminas, ou remédios, que o melhor é tomar logo duas colheres, ou duas pílulas, para o efeito ser eficaz e duradouro – para fazer com que o dia-a-dia de um vulgar funcionário forneça algo de interessante à mente e apele à escrita. Como nada disso, regra geral, acontece, resta a adulteração dos factos, a efabulação de episódios triviais e o endeusamento do banal, travestindo de irrealidades episódios do quotidiano, para mitigar a pobreza do relatável.

Assim, vejamos: um funcionário que, logo pela manhã, troca a gravata e a fatiota cinza por um cesto de frutas à cabeça e canta nos corredores da repartição como a Carmen Miranda; outro, sozinho, ao fim da tarde, que se crucifixa numa secretária pregando-se com pioneses e tachas; uma funcionária que, todos os dias, se agrafa, nas orelhas e nos lábios, dizendo que usa «piercings du bureau»; uma colega, de longos cabelos loiros, que acumula vários teclados de computador diante de si e toca/escreve neles em simultâneo, o cabelo liso escorrido para diante, imaginando-se o Rick Wakeman dos Yes, rodeado de sintetizadores e teclados; um jovem estagiário que pinta quadros abstratos com a tinta dos carimbos e das impressões digitais, servindo-se de bases de copos de plástico como formas; um subchefe que utiliza o balcão para ensaiar passos de equilibrista, com o selo branco em cima da cabeça e os braços esticados; ou um chefe da repartição que dá reprimendas aos funcionários, com um nariz vermelho de palhaço sempre posto, sem admitir réplicas ou risinhos de escárnio da parte dos seus subordinados.
O que viria a ser isto?

Seria diferente, subvertido, não convencional? Um manicómio? Uma repartição disfuncional?

Subscreve-se, por momentos, aquela teoria subversiva de que o «Miguel Bombarda» tem muros altos em volta para ninguém se sentir tentado a saltar lá para dentro. Uma vez mais tudo se consuma no modo como se perspetivam as coisas: A loucura é como uma bolha com alguém lá dentro, aprisionado, incapaz de se libertar e, em simultâneo, crente de que realidade é outra. E não é?

O que pode acontecer de interessante numa repartição, no meio de um emaranhado de papéis, formulários, regras apertadas de escrita, minutas, técnicas áridas, colegas apostados em competir, minuto a minuto, acotovelando-se para dar graxa ao chefe, lambendo-o sofregamente de cima a baixo, tudo isto num espaço apertado e enfadonho? Que pode, nesse planeta de marmelada burocrática, pelejado de tédios, alimentar uma mente ávida por escrever? Nada! Talvez só mesmo a deturpação da realidade circundante, dando-lhe um desvio de génese patológica, esquizoide – sair, custe o que custar do real terrífico! - possa fazer com que o mofo da banalidade se esvaia, pois de outra forma não estou a ver como. É tudo uma questão de adaptação: se não gostas do que te rodeia, imagina-o ridiculamente diferente, dessacralizado das marcas mais duras que o compõem, despojado dos seus ritos mais absurdos. Surrealiza o que te circunda. Sê Breton, à vontade; Dali, e por aí fora. Sobretudo, não pares!

A maior loucura seria, talvez, começar a gostar dos quotidianos formulares como se de coisas admiráveis se tratassem. Essa, sim, seria uma atitude crepuscular, border-line, motivo de preocupação por demasiado conformada com os moldes da vida: olhar para a lombada de um dossier da Âmbar e compará-lo com um quadro de Veronese; achar que o texto de um ofício é profundo como um poema de Álvaro de Campos; ter êxtases consecutivos com a leitura de um despacho bem fundamentado; amar uma coletânea de legislação como se de romances bem escritos se tratasse... Ainda há almas assim, que veem beleza na crueza destas coisas; e isso é, para mim, deveras preocupante.

O funcionário inadaptado toma, logo pela manhã, colheres reforçadas de contenção e paciência. Veste o hábito conventual que lhe proporciona a subsistência e anestesia uma parte substancial da mente, da verve, e do espírito, para conseguir engolir os sapos verdetes, por vezes asquerosos, que o esperam num tabuleiro de penitências posto à entrada da repartição.

São os bons dias em dias maus; o sorriso de comissário-de-bordo, treinado às vezes na casa de banho, já dançando no rosto - não vá algum azedume que transpareça fazer com que o rotulem de antipático e lhe transformem a vida num inferno; é o tom de voz amistoso, cordato, por forma a não criar hostilidades, quantas vezes contragosto. É todo um mundo de contenção e cuidados pois, o mais das vezes, uma repartição não é muito diferente de um campo minado: o mais seguro é andar sempre por trilhos já picados e que se revelam seguros. Pisar solos inexplorados, tentar caminhos diferentes, para além de constituir um risco tremendo, é, geralmente, uma aventura solitária que não tem seguidores.

Há, no entanto, sempre, um certo sorriso sincero, algures guardado, pronto para ser ofertado, mesmo nos acertos e desacertos do quotidiano de uma repartição, sempre que se dão os tais «momentos de humanização» e a flagrante filha da putisse que carateriza o comportamento de muitos se ameniza. É nas alturas em que os competidores baixam um pouco as defesas – cansam-lhe os braços de tanto se elevarem – que se proporcionam os momentos, porventura, mais agradáveis. Parece que não, mas são essas lufadas de ar fresco, essas pausas no combate pela supremacia do: «ser o mais competente»; «ser o mais perspicaz»; «ser o mais sabedor»; «ser o mais bem informado», servem para retemperar as forças, para continuar a aguentar o embate constante.

O clima das repartições não se coaduna com peregrinações interiores e os estados de alma dos desatentos são notados pelos demais. É fácil dar com o tal funcionário desenquadrado no certame dos serventes diligentes. Geralmente é sempre aquele que menos vibra com "coisas supostamente vibráteis". Não alimenta longas conversas com assuntos de serviço; desatina com os modelos pré-oferendados e com a impossibilidade criativa; desconcentra-se com mais facilidade e tem um olhar vago, ausente, de quem está, e já não está. Presta mais atenção à janela, ao mundo exterior, do que os outros, ainda que esteja com a secretária transbordando de papéis soturnos, e não se acomoda ao redondo dos quotidianos banais.

É a esse burocrata moderno, culto, inconformado, não refém do atavismo dos carimbos e dos papéis, das formas de ação estandardizadas, capaz de superar a bitola estreita do «corretíssimo e insuperável procedimento administrativo», a quem me cumpre tirar o chapéu e desejar-lhe as boas vindas ao mundo do eternamente superável: um mundo onde não há impossíveis administrativos e a solução para os problemas das pessoas é uma coisa simples, passível de acontecer – não um milagre! - que não se esfrangalha nas muralhas ditatoriais de um funcionário marreta e aperuado.

Esse último, que tome as tais colherzinhas de pó da loucura, logo cedinho pela manhã, e o dia da gente vai correr muitíssimo melhor. E, já agora, que se cuide, pois tem os dias contados. Vem aí uma geração de funcionários com narizes vermelhos de palhaço, formados no Chapiteau, e um dia, não muito longínquo, uma repartição pública será um oásis de sorrisos na aridez dos quotidianos triviais.

Para que tal aconteça, prometo contribuir com a minha fatia de loucura. *


* Escrito em Lisboa



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