domingo, 29 de julho de 2018

Quando a bota não bate com a perdigota


É da natureza das coisas que as afinidades atraiam pessoas a interagirem entre si. Normalmente, a afinidade é definida quando há um encontro de identidades ou personalidades semelhantes entre duas pessoas. Ter afinidade é ter sintonia com as mesmas ideias, gostos e sentimentos característicos de outra pessoa. É também o sentimento de pertença a um mesmo grupo social e a convicção que ambos partilham de se encontrarem “ao mesmo nível”, seja por se acharem ambos atraentes, terem estaturas físicas semelhantes, níveis de cultura idênticos, ou, porventura, situarem-se no mesmo patamar social. Os motivos que levam duas pessoas a sentirem atração uma pela outra, são muitas vezes o somatório de características comuns e a empatia, dizem, é a base para um bom relacionamento. 

Mas se é verdade que comummente vemos médicos casados com médicas e/ou enfermeiras, professores consorciados com professoras, advogados com companheiras que trabalham na área da Justiça, membros do exército e dos corpos policiais que encontraram a sua parelha nas instituições a que pertencem e invisuais ou surdos-mudos que encontram parceiro/a em virtude de uma deficiência comum, as exceções não são tão insignificantes como se possa julgar. 

É natural que encontremos a nossa cara-metade dentro da mesma profissão ou no seio dos grupos onde mais interagimos, mas as redes sociais e a possibilidade atual de se conhecer alguém fora do nosso universo socioprofissional e geográfico, vieram possibilitar o que outrora seria estatisticamente improvável. Conheço, inclusive, pessoas que desejariam conhecer alguém, com intuitos relacionais, de preferência, fora do seu circuito profissional e social. No entanto, as regras que ditam a aproximação entre duas pessoas, ainda continuam a ser a empatia e o sentimento de identidade comum. 

Decidido a comprovar empiricamente estes pensamentos, desde há alguns dias que observo com curiosidade os casais que passam por mim. Para não parecer um voyeur ou um qualquer tarado em fase maníaca, decidi que o melhor seria observar as pessoas numa grande superfície onde, à falta de imaginação fértil, os casais passeiam regularmente aos fins-de-semana. As pessoas estão entretidas a ver as montras e eu posso estar tranquilamente sentado num daqueles sofás bué de confortáveis, colocados à disposição das almas mais fatigadas. 

Observo o par que está sentado à minha frente. São o protótipo do casal aldeão de meia-idade que, de quando em quando, vem à cidade, mais concretamente, ao shopping, lavar as vistas com coisas chiques. Parecem estafados da caminhada pelos longos corredores e nota-se que não se sentem à vontade com os trajes domingueiros que envergam. Ela usa uns brincos de oiro parecidos com os da minha avó materna, que nunca os tirava, e que um dia vi na palma da mão da minha mãe. Fora ela, minha mãe, quem lhos retirara das orelhas já no leito de morte; e, sendo a única filha sobreviva, ficara com eles. 

O marido usa um chapéu dos anos 50, suspensórios de elástico e tem uma barriga tão proeminente que parece ir rebentar a qualquer momento. Não interagem um com o outro, nem há quaisquer mostras de carinho ou cumplicidade. Limitam-se a estar sentados em silêncio e olham no vazio do longo corredor. Estão provavelmente cansados e a ganhar forças para o regresso a casa. Mas parece-me evidente que estão unidos por um destino comum, incapazes de viver um sem o outro, quem sabe, juntos o tempo de uma vida, até que a morte os separe. 

Ao meu lado sentou-se um casal relativamente novo. Não têm mais de trinta e poucos anos. São ambos obesos e comem com sofreguidão o conteúdo de dois baldinhos de gelados Häagen-Dazs, acabados de comprar na loja em frente. Cada um deles exibe uma tatuagem semelhante, desde o ombro até ao antebraço, em forma de flor de cor púrpura e azul anil. Vestem roupas muito idênticas e são fisionomicamente parecidos. Não tenho dúvidas que nasceram marcados para se conhecerem. Ela foi a primeira a acabar o gelado. Limpou-se a um lenço de papel e já está a surfar no telemóvel. Utiliza com bastante destreza o polegar direito para fazer deslizar as páginas que vão passando no écran. Usa e abusa do “bué da fixe”, ri alto, sem se importar com quem está ao seu redor, enquanto vai visionado publicações no Facebook. O companheiro, ainda de volta da lambedura do gelado, vai deitando o olho ao telemóvel dela e, sempre que não tem a boca cheia, exclama com veemente aprovação: “Épico, minha, épico!”. 

Nos meus tempos de estudante liceal, o género épico era uma narrativa em versos, que enaltecia episódios heróicos da história de um povo. Acho curiosa a apropriação que a juventude atual faz destes termos para uso em contextos diametralmente diferentes. 

Não tenho qualquer dúvida de que esta parelha nasceu para se complementar. Houve tempos em que ser gordo era sinónimo de bem-estar social e algo benigno. Magros eram os pobres. Na atualidade inverteram-se os valores e a realidade – os alimentos ultraprocessados e mais baratos ao alcance dos menos abonados criaram obesos, com acrescento de culpa. Mas nada disto gera preocupação neste anafado casal que, suspeito, muito faz ranger as molas do colchão lá por casa. 

A minha vista concentra-se agora num casal gótico que acabou de passar. Estando nós em Julho, acho estranho ver estas personagens por aqui, uma vez que o Festival Extramuralhas, um dos maiores eventos do género a nível europeu, dedicados à cultura gótica, que acontece todos os anos na cidade de Leiria, tem tradicionalmente lugar nos últimos dias de agosto. 

Usam piercings em ambas as orelhas, as tatuagens cobrem-lhes quase por completo as partes do corpo expostas, trajam de negro e calçam fracas imitações de botas Doc Martens. Ela tem o cabelo pintado de negro azeviche e os lábios de roxo. Ele tem o cabelo rapado e a cabeça tatuada com símbolos esotéricos. São fiéis representantes da identidade do grupo gótico e fazem questão de exibir os símbolos e comportamentos comuns associados à tribo a que sentem pertencer. 

Foi em Londres, corria o ano de 1978, que tomei contacto pela primeira vez com esta subcultura urbana, que teve início no Reino Unido durante o final da década de 1970 e início da década de 1980. Os meus 17 anos de idade e especialmente o facto de viver num país recém-saído de 40 anos de trevas, não me conferiam qualquer preparação para o que me foi dado ver na capital inglesa no final dos anos 70. O que agora observo neste casal passante é uma reprise mal-amanhada das personagens desse movimento de contra cultura, o punk - descaradamente violento, quer nas expressões musicais, no culto gratuito da discórdia ou na agressividade do vestuário – que à época vi surgir na Grã-Bretanha e do qual os góticos são uma variante suave. 

O casal está em perfeita consonância. Aliás, nem imagino um gótico gostar de um tipo como eu. Um gótico só pode juntar-se a outro gótico, tal como um crente fervoroso de um culto religioso não se imagina emparelhado com um ateu ou um praticante de um culto oposto. E o curioso é que eles devem achar que eu sou um careta insignificante, farinha do mesmo saco, com a mesma petulância com que eu, em pensamento, os rotulo de outsiders e inviáveis. Nestes casos, pertencer-se a uma tribo comum, é uma condição inultrapassável para um acontecimento relacional de cariz amoroso. 

O meu olhar dirige-se agora para um casal na casa dos 40 anos. São os dois altos, bonitos, com ar inteligente e saudável. Vestem roupas caras mas bastante confortáveis. Ele calça sapatos de vela, polo Ralph Lauren e calças chino Sacoor Brothers, tudo a condizer. A mulher traja um vestido branco com bordados azuis e calça uns ténis de marca. Não se limitam a ver as montras, pois transportam sacos com os logótipos de lojas de referência. São pessoas com posses. Passam de relance, mas consigo de imediato ver neles a empatia necessária à completude de uma casal. Nota-se que “foram feitos um para o outro”. 

Decido levantar-me e dar uso às pernas. Erguer-me desta nuvem de preguiça, que me faz estar refastelado no sofá verde, sem me apetecer fazer mais nada que não seja observar os casais que passam, ignotos da minha aventura voyeurista. 

Dirijo-me à porta de saída do shopping e passa por mim um casal assaz curioso. Ele tem o cabelo rapado e uma longa barba com reminiscências jihadistas. Da orelha direita, pende-lhe um brinco de argola tão grande, que dava para pendurar as chaves de casa e mais algumas utilidades. Veste umas jardineiras e calça uns ténis simples. A rapariga é loira, bastante bonita e é seguramente 10 cm mais alta do que ele. Além disso, é mais nova. Usa umas calças às riscas, que lhe realçam as formas voluptuosas, e uma túnica curta. Parecem formar um casal feliz, descomplexado e, com franqueza, não os imaginava juntos. É a primeira desconexão a que assisto ao fim de meia hora de observação. Mas depois, já na rua, comecei a ver com mais regularidade outras assimetrias e constatei que a regra tem tantas exceções, que chega a ficar ameaçada a sua condição de regra. 

Enquanto me dirigia para o automóvel, absorto no pensamento da inutilidade de todo este meu exercício, dei uma mirada instintiva na enorme superfície vidrada das portas do centro comercial e, de relance, observei a minha figura refletida. Assustei-me com a imagem que a vidraça me devolveu, pois não encontrei semelhanças mínimas com qualquer das criaturas objeto da minha observação. E todas as mulheres que passaram por mim e que imaginava podendo fazer parelha comigo, tinham a seu lado um indivíduo totalmente diferente da minha pessoa. Posso imaginar que jamais me escolheriam como parceiro, mas procuro refúgio no consolo da exceção que contraria a regra, na bota que não bate com a perdigota. E se as afinidades são cruciais para uma comunicação plena e para o bom funcionamento de uma relação amorosa, muitas vezes são as particularidades do outro, as diferenças, e as assimetrias que fazem alguém apaixonar-se. Se no final a coisa resulta bem, é outra conversa que aqui seguramente não vai ter lugar.

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